- Rafael Abuchaibe (@RafaelAbuchaibe)
- BBC News Mundo
Em setembro de 1998, no primeiro dia de aula, Marty Tankleff, um adolescente americano de 17 anos, acordou e encontrou sua mãe morta e seu pai gravemente ferido em seu escritório.
O jovem fez o que qualquer pessoa sensata teria feito naquela situação: ligou para o serviço de emergência, acessado nos EUA discando 911.
“[Eu estava] em pânico total, em choque. Não há como descrever o momento porque o que aconteceu comigo é algo pelo qual ninguém deveria passar”, disse Tankleff ao programa Outlook da BBC.
Marty nunca imaginou que depois daquela ligação ele se tornaria o principal suspeito do assassinato de seus pais – e que passaria 17 anos na cadeia por um crime que não cometeu.
Preso em 1990 e solto em 2007 – quando um tribunal revisou seu caso e rejeitou as acusações – Marty Tankleff conta sua história, anos depois de ter recuperado sua liberdade e reconstruído parte de sua vida.
Uma infância feliz
Arlene e Seymour Tankleff adotaram Marty ainda antes de ele nascer, criando-o no subúrbio de Long Island, Nova York.
“Meu pai nunca teve nada quando criança, mas quando eu estava crescendo eles eram mais estáveis financeiramente, então algumas das coisas que meu pai ou minha mãe gostariam quando criança foram dadas para mim”, diz ele.
Além disso, como Arlene e Seymour eram mais maduros e financeiramente estáveis, eles podiam passar mais tempo com Marty. Eles compartilharam viagens, atividades escolares e comunitárias.
É uma das muitas razões pelas quais Marty não consegue entender por que naquela fatídica manhã de setembro, em vez de levá-lo a um hospital ou mantê-lo em casa, a polícia o levou a um interrogatório brutal, do qual não existe nenhum registro.
“Eles me viram como suspeito desde o início”, conta.
O interrogatório
Marty lembra que o interrogatório começou como era de se esperar, com perguntas por meio das quais os policiais tentavam obter detalhes sobre a relação do jovem com seus pais ou quem poderia ser um possível suspeito.
Marty nomeou Jerry Steuerman – um sócio de seu pai em um negócio de bagels – como a pessoa que ele acreditava estar por trás do crime.
Em um processo de dezembro de 1988, representantes de Seymour Tankleff alegaram que Steuerman devia ao pai de Marty quase US$ 900.000
Steuerman estava em casa jogando pôquer com seus pais e outros convidados até as primeiras horas da manhã.
“Mas houve uma virada em que as perguntas deixaram de ter um tom de investigação e passaram a ser acusatórias”, diz.
O principal investigador do caso Tankleff foi o detetive James McCready, falecido em 2015, e que em diversas ocasiões discutiu o caso com a imprensa.
Em entrevista à rede americana CBS, McCready descreveu uma das táticas que usou durante o interrogatório.
“Fui até uma mesa, peguei o telefone e disquei o ramal mais próximo da sala de interrogatório, levantei e fui atender minha própria ligação. Fingi que estava falando com outro detetive”, disse o detetive.
McCready descreveu à CBS que depois de desligar a chamada falsa, ele foi para a sala de interrogatório e mentiu para Marty, dizendo-lhe que seu pai havia sido acordado com adrenalina e que ele havia acusado seu filho de ser o atirador.
“Nos Estados Unidos, os interrogadores podem mentir para os suspeitos, e foi isso que eles fizeram”, diz Marty, contando as mentiras que ouviram.
“Disseram que encontraram meu cabelo nas mãos da minha mãe, não é verdade. Disseram que encheram meu pai de adrenalina e ele me identificou como a pessoa que o atacou, não é verdade.”
A polícia descartou Steuerman como suspeito quando ele apareceu na Califórnia uma semana depois, dizendo que havia fugido com medo de ser acusado de envolvimento no assassinato.
Como explica Marty, a estratégia dos investigadores em seu caso foi baseada em “tirar seu chão” o suficiente para que ele dissesse o que eles queriam ouvir.
Isso ficou demonstrado no julgamento, que começou dois anos depois, diante dos olhares das câmeras.
Uma das principais evidências que a Promotoria apresentou durante o julgamento foi um documento, escrito pelo detetive McCready, mas sem a assinatura de Marty, ao qual foi dado o peso de uma confissão.
Marty diz que não se lembra bem do que poderia ter dito durante o interrogatório, mas garante que poderia ter dito qualquer coisa.
“Se você pega um jovem suspeito, que acabou de passar por algo traumático – você o isola, repreende, abusa verbalmente – você o faz pensar que só há uma maneira de sair daquela sala, e isso requer dizer qualquer coisa.”
Steuerman também serviu como testemunha no julgamento, dizendo que havia escapado buscando um seguro de vida que pudesse deixar para sua família, por medo de acabar na prisão, porque Marty o havia mencionado como suspeito. “Eu não fiz isso”, disse Steuerman durante o julgamento.
Marty foi condenado a duas penas de prisão perpétua consecutivas, cada uma com possibilidade de liberdade condicional após 25 anos.
“O que eu me lembro daquele dia”, diz Marty, “é que eles me levaram para a cadeia do Condado e o funcionário da sala de pertences me perguntou: ‘O que você está fazendo aqui? Não é possível que tenha sido considerado culpado’.”
Durante seu tempo na prisão, Marty estudou para se tornar advogado para poder contribuir em sua própria defesa.
Além disso, ele escreveu para inúmeros promotores aposentados pedindo que revisassem seu caso.
Assim se passaram 14 anos.
Liberdade
Em 2004, após anos coletando informações, depoimentos de quase 20 testemunhas e novas evidências, a defesa pediu um novo julgamento.
Os advogados obtiveram pelo menos 20 novos testemunhos – além de evidências físicas – que viraram os holofotes de volta para o parceiro de Seymour Tankleff.
Um deles foi o testemunho de Glenn Harris, que alegou ter dirigido o carro em que dois pistoleiros, Joe Creedon e Peter Kent, usaram para chegar à casa de Tankleff.
Ainda assim, o recurso foi negado.
Com isso, a defesa passou a se concentrar em tentar levar o caso de Marty para outra jurisdição, já que – como disse o advogado de defesa Barry Pollack – “não haverá justiça para ele no Condado de Suffolk”.
Levaria mais três anos para o tribunal de apelações do Brooklyn revisar o caso e retirar a condenação de Marty porque “não há provas suficientes” para provar sua culpa no crime.
Marty conta que naquela ocasião demorou mais de 24 horas para entender o que estava acontecendo com ele.
“Só no dia seguinte, quando um guarda me trouxe o jornal e vi meu rosto na primeira página, é que realmente entendi o que havia acontecido. Foi algo que trabalhei por tanto tempo, que só consegui entender quando vi impresso.”
Quando Marty foi solto, havia passado metade de sua vida em liberdade e a outra metade atrás das grades. Por isso, diz que foram impressionantes os primeiros passos que deu depois de ir para casa.
“Quando estávamos saindo da prisão, eu disse aos que me acompanhavam para andarem mais devagar, e quando me perguntaram por quê, eu disse a eles que esses eram meus primeiros passos para a liberdade e queria dar-lhes devagar.”
O mundo mudou entre 1990 e 2007 – assim como a vida das pessoas ao seu redor. Marty se formou em Direito após os 35 anos e teve de se adaptar a um mundo dominado pela tecnologia.
“É difícil aceitar [o que aconteceu], e é uma das razões pelas quais me tornei advogado. Estou amargo porque o sistema falhou comigo e amargo porque houve pessoas que se comportaram intencionalmente de uma maneira que levou à minha condenação.”
“Mas enquanto houver pessoas que saibam a verdade, tenho uma sensação de alívio”, diz ele.
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