- Author, Sarah Rainsford
- Role, Correspondente da BBC News no Leste Europeu
No dia em que a cidade de Beslan, na Rússia, começou a enterrar seus mortos, havia tanto carro na rua levando caixões que se formou um engarrafamento a caminho do cemitério.
Na pequena cidade do Cáucaso, todos haviam perdido um parente ou conheciam alguém que havia morrido no cerco à Escola Número Um.
O ataque terrorista, lançado por militantes fortemente armados, principalmente da Chechênia, durou três dias.
No total, 334 pessoas morreram — sendo 186 crianças.
No início de setembro (3/9), o cerco que terminou repentinamente com explosões devastadoras completou 20 anos, mas ainda é possível ouvir o lamento das mães de Beslan.
O luto tomou conta da cidade em ondas.
Consigo imaginar o caixão branco aberto de Alina, de 11 anos, no quintal da casa dela, com suas bonecas colocadas cuidadosamente ao seu lado.
E vou sempre lembrar de Rima, que passou três dias amontoada no sufocante ginásio da escola com os netos e centenas de outros reféns, com bombas presas às cestas de basquete acima deles.
Na época, ela afirmou que tinha vergonha de ter sobrevivido.
Enquanto ela e os netos corriam para a saída, em meio aos tiros, eles tiveram que passar por cima do corpo morto de um garotinho.
“Deus nos perdoe por isso”, suplicava Rima, em meio a lágrimas.
Primeiras lições da doutrina de Putin
Em 2004, o sofrimento de Beslan foi sentido em toda a Rússia — e repercutiu no mundo todo.
Antes de mais nada, a tragédia foi causada pelas dezenas de homens e mulheres que invadiram a escola, atirando para o alto e fazendo centenas de pessoas petrificadas como reféns.
Eles encurralaram mães com bebês e balões, e meninas com laços brancos enormes no cabelo. Famílias inteiras que estavam comemorando o primeiro dia de volta às aulas.
Os militantes encheram o ginásio com explosivos, e começaram a executar os reféns homens.
Naquele verão, a guerra brutal de Vladimir Putin contra os separatistas na Chechênia — lançada quatro anos antes — já havia ultrapassado as fronteiras da república do sul da Rússia.
Um dia antes do início do cerco de Beslan, 10 pessoas foram mortas quando uma mulher-bomba chechena detonou explosivos do lado de fora de uma estação de metrô de Moscou. Antes disso, militantes suicidas explodiram dois aviões em pleno voo — e houve um ataque mortal em um festival de música.
Mas, há duas décadas, há perguntas persistentes e preocupantes sobre como Putin e seus oficiais lidaram com o ataque em Beslan, em sua determinação de não “ceder” diante dos terroristas.
Será que eles, ao menos, tentaram negociar?
Por que alegar que os autores do ataque não fizeram exigências políticas quando haviam pedido que as tropas russas se retirassem da Chechênia?
Será que mais crianças poderiam ter sido libertadas?
E, mais gravemente, por que as equipes de resgate efetuaram disparos de tanques e usaram lança-chamas quando ainda havia centenas de reféns dentro da escola?
Para muitos, o cerco de Beslan ofereceu as primeiras lições cruciais sobre o Putinismo, incluindo que ele não pouparia nada nem ninguém para acabar com aqueles que o desafiassem.
Proteção da imagem
Levou 20 anos para Putin visitar as ruínas da Escola Número Um.
Mesmo assim, ele não participou dos eventos de aniversário da tragédia com as famílias. Ele simplesmente viajou para lá há duas semanas, e foi sozinho.
Algumas paredes destruídas da escola foram deixadas de pé como um memorial, cobertas com uma mortalha dourada, em algumas ocasiões, e fotografias emolduradas dos mortos no massacre.
No meio do ginásio em que os reféns foram mantidos, Putin colocou flores sob uma cruz de madeira.
Para a maioria dos líderes mundiais, seria inimaginável não ter visitado este local antes. Foi o ataque terrorista mais mortal da Rússia. Mas Putin sempre preferiu ser filmado em um caça de combate ou rodeado por soldados.
Os túmulos de crianças que ele não conseguiu salvar não contribuem em nada para sua imagem de homem de ação.
Na verdade, ele já havia estado em Beslan antes, mas a visita passou quase despercebida.
Logo após o fim do cerco, ele embarcou na calada da noite para visitar um hospital.
Ele disse à comunidade de Beslan que toda a Rússia estava de luto com eles, mas ao amanhecer já havia ido embora.
“Ele chegou muito tarde”, me lembro de ter ouvido as famílias de luto dizerem. “Deveria ter ficado conosco.”
Mas Putin não se atreveu.
Quatro anos antes, um encontro anterior com mulheres de luto o havia marcado e assustado. Quando o submarino Kursk afundou em 2000, Putin levou cinco dias para interromper suas férias — e, quando finalmente se reuniu com os parentes das vítimas, foi esculhambado.
Foi assim que Putin começou a fazer de reuniões cuidadosamente coreografadas uma marca registrada da sua presidência: apenas pequenos grupos previamente selecionados. Tudo sob controle.
Números e mentiras
No mês passado, em Beslan, apenas três mães foram levadas para se encontrar com o presidente.
“Foi um ato terrível de terror que tirou a vida de 334 pessoas”. Assim Putin descreveu a tragédia diante das mulheres e das câmeras da televisão estatal.
“Deste número, 136 eram crianças”, acrescentou.
As mães não estavam sendo enquadradas pela câmera naquele momento, mas elas certamente estremeceram com o erro dele. Porque 186 crianças foram mortas em Beslan.
É um número que está gravado na mente de todos os moradores da cidade. É algo que você não esquece.
Mas Putin não visitou Beslan para demonstrar empatia. As mães vestidas de preto eram apenas um acessório.
Ele as estava usando para provar algo.
Duas décadas atrás, ele lembrou aos russos que lutou e venceu sua guerra contra o terror. Agora, ele estava lutando contra “neonazistas” e um Ocidente hostil na Ucrânia, e jurou que venceria esta guerra também.
A distorção e as mentiras já faziam parte do manual de Putin em 2004. Na ocasião, as autoridades informaram que havia um número bem menor de reféns em Beslan do que havia de fato.
Cheguei à cidade no primeiro dia do cerco — e logo percebi que havia três vezes mais reféns mantidos naquela escola do que as autoridades estavam admitindo.
Todos os moradores nos diziam isso. Mas os jornalistas da TV estatal, seguindo instruções, continuaram a repetir a mentira.
As pessoas temiam que as tropas estivessem se preparando para invadir a escola, então as autoridades estavam jogando para baixo o possível número de vítimas.
Lições para Putin
Sempre me perguntei o que aconteceria com um governo em uma democracia ocidental após um ataque que terminasse com muito mais reféns mortos do que terroristas.
Acho que teria dificuldades de sobreviver à inevitável investigação oficial ou à próxima eleição.
Putin não precisou se preocupar com nenhuma das duas coisas.
Em 2017, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos determinou que a Rússia havia falhado em seu dever de proteger os reféns — e havia usado “força indiscriminada” quando o cerco ruiu.
O processo foi aberto por mães de luto que estavam desesperadas em busca de justiça.
Mas não houve nenhuma nova investigação na própria Rússia. Nenhum alto funcionário foi responsabilizado.
Quando as três mães de Beslan reclamaram com Putin sobre isso durante o encontro deste ano, em agosto, ele demonstrou surpresa e prometeu investigar.
Ele teve 20 anos para fazer isso.
Ele tratou de uma coisa, no entanto, logo após o cerco.
Em 2004, Putin anunciou que estava cancelando as eleições diretas para governadores nas regiões da Rússia, alegando que isso ajudaria a melhorar a segurança. Não havia nenhuma conexão com o ataque de Beslan.
Quando o Parlamento se reuniu para votar a medida, políticos da oposição fizeram piquetes no prédio alertando sobre uma ditadura iminente.
Duas décadas depois, já não há mais oposição.
A imprensa estatal foi totalmente domada. A democracia foi esmagada.
A principal lição que Putin tirou do cerco de Beslan foi sobre aumentar o controle.
Fonte: BBC
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