- Author, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
A escritora e jornalista americana Sadie Dingfelder conta que uma vez estava em um supermercado quando viu seu marido com um pote de pasta de amendoim que ele sempre detestara.
Ela foi até ele, arrancou o pote da mão dele e estava prestes a fazer uma piada sobre o assunto.
Mas… o homem que estava com o pote não era seu marido. E Sadie demorou para perceber a situação.
O marido de verdade estava confuso, observando toda a cena de longe.
O engano não foi algo corriqueiro. Mesmo parada diante do homem, Sadie não conseguia reconhecer que não se tratava do homem com quem estava havia anos.
Sadie sempre soube que era um pouco diferente das demais pessoas, mas nunca soube dizer exatamente por quê. Quando criança, ela era bastante solitária, e sofria com a hostilidade de outras crianças. Quando adulta, ela estranhava que tantas pessoas estranhas a conheciam. Por um tempo, ela chegou a pensar que talvez fosse famosa, de tanto que era abordada por estranhos.
Os relatos na internet eram perturbadores: mães com medo de buscar seus filhos na escola e não os reconhecerem, homens que haviam ignorado suas namoradas ao encontrá-las na rua, mulheres que estavam sendo perseguidas e não reconheciam seus stalkers.
Sadie tratou o problema como ela costuma lidar com esses assuntos em sua profissão de jornalista e escritora de ciências: buscou especialistas.
E um exame revelou que sua condição era pior do que pensava: ela não só tinha cegueira facial como estava nos níveis de 2% do espectro da condição.
“Isso significa que eu tenho a [mesma] capacidade de reconhecer rostos de uma criança de 3 anos?”, ela perguntou ao médico.
“Eu diria mais como a de um macaco pouco desenvolvido”, respondeu o médico.
Uma das coisas que mais chocou Sadie é que ela só descobriu essa condição aos 39 anos.
Foi quando resolveu escrever sobre o assunto. O resultado é o livro publicado este ano Do I Know You?: A Faceblind Reporter’s Journey into the Science of Sight, Memory, and Imagination (em tradução livre: “Eu conheço você?: A jornada de uma repórter com cegueira facial na ciência da visão, memória e imaginação”).
A cegueira facial é causada por um dano em uma área do cérebro chamada área facial fusiforme, que fica próxima das orelhas, nos dois lados do cérebro. O dano pode ser inato ou causado por algum trauma ou derrame.
Sadie sugere que a melhor forma de compreender como uma pessoa com cegueira facial vê o mundo é olhar fotos de pessoas famosas de cabeça para baixo.
“Você consegue ver nitidamente as feições das pessoas, mas provavelmente elas não fazem mais sentido. Você pode até identificar algumas celebridades facilmente com a foto no sentido certo, mas algumas ficam completamente irreconhecíveis de cabeça para baixo”, diz ela.
Sadie conversou com dezenas de especialistas e pacientes sobre sua condição e pesquisou sobre a história da doença.
Ela encontrou de tudo. Um homem que resolveu viver isolado do mundo em uma fazenda por não conseguir reconhecer nenhum rosto — mas que conseguia reconhecer todas as suas ovelhas pelo rosto. Um homem que reconhecia rostos, mas não conseguia identificar objetos, como cadeiras. Ou o neurocirurgião Oliver Sacks, pioneiro nos estudos e autor do livro O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu, que só descobriu ter cegueira facial depois dos 50 anos. Ou o cofundador da Apple, Steve Wozniak, que adquiriu a condição após um acidente de avião.
O mais assustador para Sadie foi descobrir que a cegueira facial era apenas um de seus problemas.
Ela descobriu também ter algo conhecido como cegueira estéreo — seu cérebro é incapaz de combinar as imagens que ela vê dos dois olhos. Cada imagem é “processada” no cérebro separadamente, e isso faz com que ela não consiga ver o mundo em três dimensões.
Sua percepção do mundo é como se tudo fosse achatado — como em uma fotografia. Ela tem dificuldades enormes em tarefas que costumam ser simples para outras pessoas, mas que exigem percepção 3D, como dirigir um carro ou pegar um frisbee.
Sadie também descobriu ter SDAM — sigla em inglês para memória autobiográfica gravemente deficiente.
Essa condição impede que as pessoas consigam lembrar de eventos com muitos detalhes. E ainda descobriu uma quarta condição: afantasia, ou a incapacidade de visualizar imagens.
Todas as condições estão interrelacionadas, por serem todas oriundas de modificações no cérebro. Mas Sadie conta em seu livro que a ciência ainda sabe muito pouco sobre a causa dessas condições. Nenhuma delas tem cura ou tratamento.
Sadie é considerada pela ciência neurodivergente — que são pessoas que possuem um cérebro diferente, que as faz perceber o mundo de uma forma diferente.
A jornalista resolveu revisitar seu passado para entender alguns episódios que viveu. Procurou no Facebook diversos colegas de escola e ouviu relatos que a surpreenderam: muitos disseram que ela simplesmente passou a ignorá-los, depois de ter se tornado amiga delas.
Hoje ela percebe que simplesmente não reconhecia muitas das pessoas com quem fizera amizade. Alguma colega poderia, por exemplo, ter cortado o cabelo ou modificado o visual, e Sadie simplesmente não a reconheceu mais — gerando ressentimentos.
Passado o choque inicial das descobertas, ela conta que aos poucos foi percebendo algumas vantagens de ser neurodivergente. O fato de não reconhecer rostos a fez desenvolver diversas habilidades: como a de prestar atenção minuciosa a diversos detalhes (que não sejam rostos) para se lembrar de pessoas e situações.
Ela conta que ser neurodivergente em um mundo de pessoas neurotípicas a ensinou muito sobre a diversidade da experiência humana.
Em um artigo de 1974 intitulado Como é ser um morcego?, o filósofo americano Thomas Nagel argumenta que nunca seremos capazes de realmente entender como outras espécies percebem o mundo. E isso vale também para as pessoas.
Sadie conta em seu livro uma parábola que ilustra bem essa dificuldade.
Um peixe passa por um cardume de peixinhos e pergunta: “Ei, como está a água hoje?”
“O que é água?”, responde um dos peixinhos.
“Para esses peixes jovens entenderem o que é água, eles precisam de algo para compará-la — talvez o ar, ou o vácuo do espaço, ou algo realmente estranho, como a experiência de nadar em chocolate derretido. Eu sou o peixe que acabou de descobrir que vivo em um mar de chocolate derretido, e vou tentar descrever como é para que você possa entender o líquido em que você está nadando”, escreve Sadie.
A escritora e jornalista americana conversou com a BBC News Brasil sobre o seu livro.
BBC News Brasil: Quanto tempo você viveu sem saber que tinha essa condição?
Sadie Dingfelder: Eu achava que era totalmente neurotípica por 39 anos. Quando estava prestes a completar 40, lembro que pensei: ‘não é muito legal chegar à meia idade, mas pelo menos eu me conheço bem. Pelo menos uma coisa eu sei’. E como eu estava errada!
Minha vida era normal. Quando criança eu tinha dificuldades de fazer amigos. Mas depois, quando fui para a faculdade, comecei a ter muitos amigos. Eu achava que isso acontecia porque as crianças são más e as pessoas mais velhas são melhores.
Mas eu [percebi que] estava errada quando recebi meu diagnóstico de cegueira facial.
Quando descobri isso, procurei pessoas do meu tempo de colégio no Facebook. Perguntei a muitas pessoas porque elas não eram minhas amigas no tempo de escola, e descobri coisas incríveis.
Uma mulher escreveu que em algum momento no ensino médio eu comecei a ignorá-la.
O que pode ter acontecido é que ela cortou o cabelo, ou algo assim. E por isso ela ficou invisível para mim, ou comecei a tratá-la como uma estranha, e isso a ofendeu e magoou. Então ela começou a me tratar como uma estranha. E eu perdi uma amiga. Acho que isso aconteceu diversas vezes em minha vida.
BBC: No livro, você conta muitas histórias que são até engraçadas, mas que você só foi perceber o lado engraçado delas depois de 39 anos. O que mais você percebeu e lembrou depois do diagnóstico?
Dingfelder: Uma história eu só fui lembrar depois que o livro já estava publicado. Quando eu era criança, um dos meus tios me deu uma foto dos meus três primos e eu botei o porta-retratos em uma estante de livros.
Ele ficou ali por anos até que um dia minha vizinha viu o porta-retratos e disse: “você tem que jogar fora a foto que vem com o porta-retratos”.
E eu disse para ela: “Do que você está falando? São meus primos: Ariel, Morgan…”
Ela pegou o porta-retrato, tirou a foto e no lado de trás dava para ver um código de barras. Claramente era uma foto que veio com o porta-retrato. E eu tive que admitir: não eram meus primos.
BBC: Você começa a sua jornada no livro descobrindo que tem cegueira facial. Mas esse é só o começo. Depois você descobre outras condições, e todas elas parecem estar ligadas entre si. O que mais você descobriu?
Dingfelder: Sim. Primeiro descobri a cegueira facial, e isso me fez repensar toda minha vida até aquele momento. E comecei a pensar: por que tenho isso? É algo genético, e eu não encontrei ninguém na minha família com esse problema. Minha família é cheia de políticos e pessoas que são boas de reconhecer rostos e nomes.
Pesquisei mais a fundo e descobri que também tenho cegueira estéreo, que é algo mais comum do que se pensa. O que acontece é que meu cérebro não integra os dois campos de visão em uma imagem tridimensional. Meu cérebro só registra o que um olho vê e depois o que o outro olho vê, e por causa disso meu mundo é muito plano.
Se você conseguisse entrar na minha cabeça, veria um mundo achatado, como se tudo fosse feito de recortes de papel ou fosse uma fotografia. Para mim, fotografias são tão tridimensionais quanto o mundo real. Mas aparentemente para as demais pessoas não é isso que acontece.
BBC: Você foi bastante a fundo na sua pesquisa, no lado científico. Você conversou com diversos cientistas e chegou a ser tema de artigos científicos. A ciência ajudou a responder as perguntas que você tinha?
Dingfelder: Talvez uma pessoa normal tivesse procurado um neurologista ou oculista. Mas eu sou jornalista de ciência e quis imediatamente entender quais mecanismos estavam envolvidos. Eu aprendi tanto. E me fez apreciar o quão boa é minha visão, apesar de não ser ótima.
As pessoas não entendem como a visão é complexa, porque não é algo consciente. Você abre os olhos e o mundo inteiro está diante de você, certo? Mas nos bastidores seu cérebro está trabalhando muito, fazendo juízos e projetando o que ele espera. E tudo isso acontece de forma muito rápida e abaixo do seu nível de consciência. E geralmente funciona bem, certo? Como quando você pega uma bola que jogam para você. Isso é um milagre do cérebro. Você precisa prever onde a bola vai para conseguir pegá-la. O fato de tudo isso funcionar é incrível. Funciona na maioria das vezes.
O que descobri é que nosso cérebro é uma espécie de funcionário ruim, que tenta esconder seus erros. Ele tenta jogar para baixo do tapete os seus erros.
BBC: Que tipo de resposta você recebeu dos cientistas sobre a sua condição? Pelo que você conta no livro, testes mostraram que seu caso era bastante extremo dentro do espectro.
Dingfelder: Eu estava entre os 2% com pior capacidade de reconhecimento facial. Eu sabia que eu não era boa de lembrar das pessoas, mas achei que estaria abaixo da média. Eu não percebia o quão boas as pessoas normais são em reconhecer rostos. Seres humanos têm uma parte do cérebro acima das orelhas que é 100% dedicada a reconhecer rostos. É só isso que ela faz. Os cientistas adoram essa parte do cérebro, chamada área facial fusiforme.
Há cientistas que estão mais interessados em reconhecimento de objetos — como sabemos que uma cadeira é uma cadeira, quando elas têm tantos formatos diferentes. Ou como reconhecemos a letra “L”, que pode ser escrita com cursiva ou letra de forma, por exemplo.
O reconhecimento de rostos é um bom estudo de caso — é uma espécie de pedra Rosetta para se entender de forma mais ampla como o cérebro funciona.
Por isso os cientistas adoram encontrar pessoas com cegueira facial, porque somos excelentes estudos de caso — apesar de que pessoas como eu, que sempre tiveram essa condição, não são tão boas para estudo quanto pessoas que adquiram esse problema por causa de algum dano no cérebro.
BBC: Lendo o seu livro, fiquei pensando: como é possível uma pessoa chegar aos 39 anos e ter uma carreira bem-sucedida, uma vida social agitada, e ter essa condição — e ainda por cima estar entre os piores 2%?
Dingfelder: Pois é, eu me sinto um pouco burra de não ter percebido isso antes. Mas a maior parte das pessoas não percebe que têm cegueira facial até depois dos 20 anos.
O Oliver Sacks [cientista britânico que estudou essa condição] só foi descobrir que ele tinha depois dos 50 anos, e ele era um neurologista que escrevia sobre neurociência. A verdade é que nós só temos a nossa própria experiência. Você não tem nenhuma base de comparação. Uma pessoa que sofre dano cerebral perceberia que algo está errado. Mas eu cresci assim.
Em festas, eu às vezes conhecia uma pessoa e 20 minutos depois eu a encontrava e começava a mesma conversa. E ela dizia: “nós acabamos de falar sobre isso”.
E eu fazia piada sobre isso. Considerava que era um lapso comum. Eu não percebia que não possuía essa habilidade humana de percepção que é muito básica.
Imagine que eu te desse uma pedra. E 20 minutos depois pedisse que você identificasse essa pedra entre várias outras. Você não conseguiria. Mas com rostos, você conseguiria — e é porque você tem essa ferramenta inata que te ajuda.
Desde cedo, bebês reconhecem rostos. Nós humanos somos obcecados com rostos. Outro grande exemplo é pareidolia, quando você vê rostos onde eles não existem, como em um carro ou em uma tomada. Somos completamente focados em rostos.
BBC: No livro, você questiona o que é normal e o que são diferenças que formam as pessoas. Você conclui que algumas dessas diferenças, na verdade, são o que formam nossa personalidade. No seu caso, a sua condição proporcionou diversos talentos específicos. Pode falar um pouco sobre isso?
Dingfelder: Definitivamente isso me fez ser uma criança muito solitária. Mas por ser solitária, eu sempre li muito. E isso é ótimo treinamento para quem depois vira jornalista e escritora.
E quando você tem cegueira facial, tem duas opções: pode tratar todo mundo como um estranho ou tratar todo mundo como um amigo muito próximo.
Algumas pessoas, como Oliver Sacks, viram introvertidos, com timidez e ansiedade em situações sociais. E pessoas como eu fazem o oposto.
Tem um senador americano que também tem cegueira facial. É difícil imaginar um político deste nível com essa condição, mas para ele funciona, porque ele trata todo mundo calorosamente. E eu faço a mesma coisa.
Eu não percebia por que fazia isso, mas eu fazia isso porque qualquer pessoa que eu encontro pode ser uma pessoa que eu já conheço.
Eu acho que ter cegueira facial a minha vida inteira me fez sentir confortável com não entender toda a situação ao meu redor. Como repórter, eu constantemente preciso descobrir tudo sozinha. Como no caso desse livro: eu não entendia o básico sobre a neurociência da visão, mas eu sabia que quando começasse a investigar, acabaria descobrindo. A cegueira facial me dá muita confiança para lidar com esse nível de ambiguidade.
BBC: Mas não foi só cegueira facial que você descobriu. Além também da cegueira em estéreo, descobriu outras condições que afetam como você forma imagens mentais e a sua memória?
Dingfelder: Sim. Essa última que você mencionou soa como algo terrível. É chamada memória autobiográfica severamente deficiente (SDAM, na sigla em inglês). Mas a pessoa que descobriu isso estava tentando observar o fenômeno oposto — uma condição conhecida como memória autobiográfica altamente superior. São as pessoas que você vê na televisão de vez em quando, que são capazes de dizer exatamente o que estavam fazendo, por exemplo, em 13 de outubro de 1996, qual era o clima naquele dia, o que elas comeram no café da manhã. É um nível de detalhamento incrível, mas o lado ruim para eles é que eles costumam se perder em um mar de detalhes, e acabam tendo dificuldades de ter uma visão mais ampla sobre suas vidas.
Mas para pessoas como eu, é o oposto. Não consigo lembrar dos detalhes.
As pessoas costumam lembrar de suas vidas como histórias. Se você já leu Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, tem um trecho muito famoso em que o personagem principal come um doce madeleine e de repente ele é transportado no tempo para a sua infância. O sabor do doce trouxe de volta toda a memória visual de sua infância. Eu sempre achei que isso era algo poético. Eu não percebia que as pessoas realmente têm experiências assim.
É o caso de pessoas com síndrome de estresse pós-traumático, que têm flashbacks. Eu não entendia que essas pessoas vivem novamente experiências traumáticas que tiveram. Então um dos benefícios do SDAM pode ser que nós nos recuperamos rapidamente de perdas.
Quando eu era mais jovem, costumava me recuperar bem rápido de namoros que acabavam. Morei com um namorado por anos, mas quando acabou eu consegui superar tudo em duas semanas. Enquanto isso, eu tenho uma amiga que quatro anos depois de acabar seu namoro ainda não conseguiu deixar isso para trás.
Do meu ponto de vista, ela é dramática. Mas agora eu entendo que o ex-namorado dela vive dentro da cabeça dela. E ela consegue reviver experiências que teve com ele, mentalizá-lo. Eu não consigo fazer nada disso. Então entendo por que ela para ela tudo é mais difícil.
BBC: Achei curioso que no seu livro, em uma seção de recomendações a pessoas que podem sofrer com condições parecidas, você não aconselha que as pessoas busquem um diagnóstico formal para si ou seus filhos. Por quê?
Dingfelder: É porque não existe um diagnóstico formal. Há duas “bíblias” de diagnóstico no mundo. Uma delas é a DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), da Sociedade Psiquiátrica Americana e a outra é a ICD (International Classification of Diseases), que é produzida pela Organização Mundial da Saúde. E nenhuma delas lista cegueira facial como um diagnóstico. Então elas não existem nesses livros.
Ter um diagnóstico não te qualifica para um tratamento. Aliás, nem existe tratamento.
Pode vir a haver no futuro, mas hoje isso não te qualifica para nenhum serviço especial por incapacidade.
BBC: Mas você recomenda que as pessoas tentem entender o que está acontecendo? Se você pudesse voltar no tempo e contar para você mesma, quando criança, o que estava acontecendo, você faria isso?
Dingfelder: Com certeza. Não vá ao médico em busca de um diagnóstico, mas certamente tente fazer parte de estudos. Ainda mais se você tiver a sorte de morar perto de uma universidade que estuda cegueira facial, que é um tópico bastante popular, principalmente com pacientes criança. E é muito difícil encontrar crianças para estudos. E achar crianças para estudos pode ser a chave para se descobrir como resolver o problema.
Existe evidência de que ensinar crianças a prestar atenção em determinadas coisas pode ajudar a melhorar a condição.
Mas o principal é que é importante ter autoconhecimento. É um pouco uma sensação mista. Porque eu passei minha vida toda achando que eu tinha uma autoconfiança especial, e hoje eu sei que parte disso é por causa da cegueira facial. Mas eu acho que saber ajuda a entender a si próprio e como os outros te veem, e isso pode ser uma ferramenta importante para se ter sucesso na vida.
BBC: Você desenvolveu vários truques para lidar com a cegueira facial. Quais são alguns deles?
Dingfelder: O engraçado é que percebi que sempre tive amigos com características físicas bem distintas. Meu marido tem mais de 1,92 metros. Ele é gigante, então eu costumo encontrá-lo simplesmente procurando a pessoa mais alta que estiver por aí.
Uma das minhas melhores amigas é bem pequena e tem cabelo comprido e azul. Mesmo que ela não tivesse cabelo azul, ela é cheia de energia, é difícil não percebê-la, por conta da sua personalidade.
É engraçado, porque talvez haja muitas pessoas legais que simplesmente tem características físicas comuns, medianas — mas eu sempre fui atraída por pessoas com características mais marcantes.
Outro truque é que sou boa em conversar com alguém para arrancar informações delas. Pelo menos uma vez por dia, alguém chega para mim e diz “Oi, Sadie” e eu não tenho a menor ideia de quem ela seja. Um dos meus truques é falar “Oi, faz um tempinho que não falamos”. E isso faz com que a pessoa comece a falar sobre a última vez que nos encontramos. É um bom truque, porque é genérico. Se eu tiver falado com a pessoa há cinco minutos, ela vai achar que eu estou fazendo graça ou sendo sarcástica.
Isso tudo me preparou para ser boa repórter, porque estou constantemente tentando arrancar informações das pessoas. Faço isso para saber quem elas são.
BBC: Então, de certa forma, as soluções que você encontrou para lidar com a cegueira facial acabaram a transformando em uma espécie de superjornalista, com superpoderes?
Dingfelder: Sim. Sofri quando criança, mas isso me faz pensar em um grão de areia, que é transformado em pérola pela ostra. Da mesma forma, você acaba construindo uma personalidade e habilidades ao redor do problema, até que isso se torna parte de quem você é.
BBC: Você mencionou no seu livro que algumas pessoas descobriram que são daltônicas graças a algoritmos do TikTok, que sugeriam conteúdo sobre daltonismo a pessoas que nem sabiam que tinham a condição. Você acha que algoritmos podem ajudar no futuro na detecção de condições?
Dingfelder: É incrível. Algoritmos estão ajudando as pessoas a se descobrirem. Eu não entendo como o TikTok consegue. Mas acho que às vezes o TikTok acaba só mostrando o que você quer ver. Se você está convencido de que tem alguma condição, o algoritmo só mostra vídeos dessa condição. Então não sei.
Pessoalmente, eu estou no TikTok e publico várias coisas sobre cegueira facial e minhas outras condições, e recebo comentários de várias pessoas que descobrem que possuem algo igual.
O que eu mais gosto de ter publicado meu livro é que recebo e-mails de pessoas dizendo que possuem condições parecidas.
Outra condição que tenho é a afantasia, que é uma incapacidade de visualizar qualquer coisa. Ou seja, quando eu fecho meus olhos, eu só vejo as minhas pálpebras. Eu nunca entendi quando as pessoas diziam que visualizavam o rosto de quem ama. Eu sempre achava que isso era uma metáfora.
Ou a ideia de contar carneirinhos para dormir. Eu não consigo visualizar um carneiro pulando. Eu só consigo contar os números.
BBC: As condições que você descobriu – a afantasia, a cegueira estéreo, a cegueira facial — elas estão ligadas entre si?
Dingfelder: Sim, elas definitivamente ligadas. Mas muitas pessoas só têm uma das condições.
Nossos cérebros são muito complexos. Por isso eu acho que boa parte dos termos que usamos hoje — como autismo ou transtorno de déficit de atenção e hiperatividade — vão soar completamente vagos e sem sentido no futuro. Nós vamos aperfeiçoar os diagnósticos e conseguir definições mais estritas.
Quando conseguirmos mapear os cérebros e entender o que está acontecendo em um nível molecular, será possível identificar vários sintomas.
Se você tem dor no peito e vai na emergência, a primeira coisa que os médicos fazem é ver se você está tendo um ataque cardíaco ou se a dor vem de algum outro lugar.
Mas no caso de saúde mental ou para algumas condições, a única coisa que temos é o sintoma. Por isso, os tratamentos são baseados em tentativa e erro. Mas acho que no futuro, teremos categorias específicas, tipo “ah, você tem cegueira facial do tipo 152.4”.
BBC: Você conversou com outras pessoas que têm essa condição. Algumas famosas, como Steve Wozniak, co-fundador da Apple. Como foi essa experiência? O que você aprendeu com essas pessoas?
Dingfelder: Steve Wozniak é um exemplo interessante, porque a cegueira facial dele é adquirida. Ele sofreu um acidente de avião e teve um traumatismo no cérebro. E essa experiência fez com que ele se interessasse por cérebros. Ele voltou para a faculdade e concluiu seu curso. Então ele é uma pessoa que conseguia reconhecer rostos, e que de repente perdeu essa habilidade.
Isso não o afetou tanto porque ele já era famoso quando tudo isso aconteceu, e ele já conhecia tanta gente, que as pessoas não esperavam que ele fosse lembrar de todos os rostos.
Uma mulher que conheci me contou uma história engraçada sobre cegueira facial que aconteceu há muitos anos. Ela disse que estava em Los Angeles e que começou a conversar com um jovem atraente. Ela perguntou qual era a sua profissão e ele disse que era ator. Depois disso, uma amiga dela disse: “eu não acredito que você estava falando com o Brad Pitt!”
Isso deve ter sido uma experiência e tanto para Brad Pitt. Conversar com alguém que não o reconhece.
BBC: Você foi descobrindo todas as condições praticamente ao mesmo tempo?
Dingfelder: Sim. E sinceramente acho que há mais coisas no meu cérebro. Uma vez que o seu cérebro sai do caminho neurotípico, você começa a ter diversos problemas interessantes e também pontos fortes.
O que diferencia uma pessoa neurodivergente de uma neurotípica é que nós temos um perfil que oscila muito — somos extremamente bons com algumas coisas e extremamente ruins em outras.
As pessoas não entendem isso. Como você pode ser tão boa em escreve e ao mesmo tempo não saber se localizar dentro de uma loja, por exemplo?
Definitivamente é algo que pesa muito. Houve dias em que chorei muito, mas em geral eu abordei tudo com uma curiosidade intensa, porque eu realmente queria entender o que estava acontecendo no meu cérebro, e o que acontece nos cérebros de pessoas neurotípicas.
BBC: E agora que você descobriu tudo isso, o que você pretende fazer?
Dingfelder: Aprendi que os cientistas estão finalmente começando a estudar as experiências subjetivas interiores pela primeira vez em 100 anos.
Passei minha vida toda presumindo que a minha experiência é basicamente a mesma das demais pessoas, e quase aos 40 anos eu descobri que não. A maioria das pessoas vive uma vida muito diferente da minha. Suas vidas interiores e suas percepções são muito diferentes.
Mesmo entre pessoas neurotípicas, há várias diferenças. Algumas pessoas não têm um monólogo interno, outras são cheias de camadas de monólogos internos. E acho que a experiência humana é muito escondida. Existe uma diversidade escondida da experiência humana.
Descobrir isso me ajudou a apreciar e ser menos impaciente com as outras pessoas.
Para mim, algumas coisas são tão fáceis que eu não entendo como outras pessoas não conseguem fazer. E eu sou horrível em tantas outras. Como pegar uma bola, por exemplo. Eu às vezes acabo menosprezando essas coisas que eu não consigo fazer. Digo a mim mesma: “pegar bolas é uma bobagem”.
Fonte: BBC
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