- André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Herson Capri tinha nove anos quando sua mãe, Yole, o levou para ouvir o relato do naufrágio do Príncipe de Astúrias da boca de um de seus sobreviventes: o tio Renato, de 60.
O futuro ator cresceu ouvindo a heroica epopeia de dois membros da família Capri que, vindos de Verona, na Itália, chegaram a nado ao Brasil. Literalmente. Mas Herson nunca teve o privilégio de ouvir a história narrada em primeira pessoa.
Título dado ao primogênito do rei da Espanha, o Príncipe de Astúrias era o nome do mais luxuoso transatlântico da frota espanhola da época.
Tão luxuoso que o “palácio flutuante”, como era chamado, tinha restaurante, biblioteca, ambulatório e até salão de música.
Com mais de 150 metros de comprimento, podia alcançar velocidade de 18 nós (33 km/h) e transportar até 1.890 passageiros: 150 na primeira classe, 120 na segunda, 120 na segunda classe econômica e 1.500 na terceira classe.
Os ambientes da primeira classe eram ricamente decorados com móveis de mogno, poltronas de couro e tapetes persas.
A viagem entre Barcelona e Buenos Aires durava, em média, 17 dias. Ao longo do trajeto, o Príncipe de Astúrias fazia escala em sete portos: Valência, Almería, Málaga, Cádiz, Las Palmas, Santos e Montevidéu.
Em sua sexta viagem, o navio zarpou de Barcelona no dia 17 de fevereiro de 1916 e, depois de passar dez dias em mar aberto, chegaria à capital argentina em 5 de março.
Renato, então com 16 anos, e sua família embarcaram em Barcelona, no dia 17 de fevereiro. Ele, o pai Ângelo, a mãe Sophia e três irmãos, Ângela, Stephano e Carlo, viajavam clandestinamente na segunda classe, fugindo dos horrores da Primeira Guerra Mundial. Usavam identidades falsas.
Na manhã do dia 28, o Príncipe de Astúrias cruzou com o Infanta Isabel a menos de duzentos metros de distância. Os dois navios, gêmeos em luxo e conforto, eram operados pela mesma companhia, a Pinillos Izquierdo.
“O encontro ocorria todos os meses, porque as embarcações faziam a mesma rota, em direções opostas”, relata o jornalista José Carlos Silvares, autor de Príncipe de Astúrias — O Mistério das Profundezas (2006) e Naufrágios do Brasil — Uma Cultura Submersa (2011).
A bordo do Infanta, o espanhol Manuel Balda registrou a última imagem do Príncipe de Astúrias. Dali a seis dias, o navio espanhol sumiria do mapa.
“Apesar do mar calmo, (o navio) estava muito carregado e parcialmente adernado para bombordo”, observa Silvares.
Na noite de 4 de março de 1916, a tripulação transformou o restaurante do Príncipe de Astúrias em salão de baile. Era sábado de Carnaval.
Fantasiados de pierrôs, colombinas e arlequins, os passageiros cantaram marchinhas, ergueram taças de champanhe e jogaram confete e serpentina uns nos outros.
De madrugada, muitos já tinham ido dormir quando, por volta das 4h15, os poucos foliões que ainda dançavam no salão ouviram um estrondo que abafou o som da orquestra.
Um relâmpago iluminou a madrugada. Na cabine de comando, o capitão José Lotina Abrisqueta avistou os rochedos. “É terra?”, perguntou, horrorizado. “É terra!”, confirmou o segundo-piloto Rufino Onzain y Urtiaga.
O comandante ainda ordenou aos seus homens: “Toda força a ré! Todo o leme a boreste!”. Mas, era tarde demais.
Na madrugada de 5 de março de 1916, poucas horas antes de fazer escala em Santos, o Príncipe de Astúrias colidiu com a Ponta da Pirabura, em Ilhabela, no litoral de São Paulo.
A colisão abriu um buraco de 40 metros no casco duplo do navio. A água gelada invadiu a casa das máquinas e provocou pane em duas das cinco caldeiras. Passageiros e tripulantes foram lançados ao mar.
Muitos corpos foram recolhidos em praias distantes, como a de Ubatuba, a 40 quilômetros do local do naufrágio.
Eram tantos os cadáveres que, por vezes, os caiçaras os enterravam na areia, depois de retirarem joias e outros objetos de valor. Não por acaso, uma das praias do arquipélago é conhecida como a Praia das Caveiras.
Na hora da colisão, a maior parte dos passageiros dormia em suas cabines. Renato Capri tentou reencontrar a família na terceira classe, mas não conseguiu descer: a água subia rapidamente pela escadaria que levava ao convés. Desesperado, o rapaz pegou um colete salva-vidas e pulou na água.
Ângelo, seu pai, também tentou resgatar a mulher e os filhos, mas não teve sorte. Em alto-mar, sentiu uma criança se agarrar às suas costas. Certo de que era o seu caçula, nadou rumo à praia.
Houve náufrago, como o tripulante Gregório Siles Peña, que precisou nadar por até 18 horas, agarrado a um pedaço de madeira, até chegar a terra firme.
Em apenas cinco minutos, o orgulho da Marinha espanhola desapareceu nas águas do Atlântico. A título de comparação, o Titanic, depois de colidir contra um iceberg, levou duas horas para submergir, quatro anos antes, em abril de 1912.
Foi tudo tão rápido que o telegrafista não teve tempo de transmitir o S.O.S., nem a tripulação de baixar os escaleres, espécie de bote salva-vidas, de proa fina e popa larga, movido a remo. O único usado no naufrágio se desprendeu sozinho. Graças a ele, mais de 60 pessoas se salvaram.
O naufrágio do Príncipe de Astúrias entrou para a história como o pior desastre marítimo de todos os tempos no país.
“Meu tio e meu avô nadaram umas três ou quatro horas até chegarem à terra firme. Os dois se reencontraram, horas depois, numa praia do litoral de São Paulo”, relata Herson Capri, de 70 anos.
“Logo, o ‘nonno’ descobriu que a vida que ele ajudou a salvar não era a de um de seus filhos e, sim, a de um garoto argentino que, na hora do desespero, se agarrou ao primeiro pescoço que apareceu”.
Em homenagem à avó materna, o ator deu o nome dela à sua caçula, Sofia, hoje com sete anos.
‘Jamais esquecerei os gritos’
Oficialmente, o Príncipe de Astúrias transportava, entre passageiros e tripulantes, 588 pessoas. Dessas, 445 morreram — a maioria imigrantes espanhóis que fugiam da miséria na Europa — e 143 se salvaram — 86 tripulantes e 57 passageiros.
Entre os sobreviventes, um brasileiro: gaúcho de Sant’Ana do Livramento, José Martins Vianna, de 20 anos, estudava Engenharia em Genebra.
“Quando saí da cabine e cheguei ao convés, o navio já estava sendo engolido pelas ondas”, declarou o rapaz ao jornal A Noite na edição de 21 de março de 1916. “Eu me salvei, mas jamais esquecerei os gritos das pessoas morrendo afogadas”.
José Martins Vianna desistiu de continuar seus estudos na Europa. Casou com uma prima, Virginia, e teve três filhos. A camisa branca que usou no dia do naufrágio foi doada ao Museu de Naufrágios e Biologia Marinha da Fundação Mar, em São Sebastião. Vítima de trombose, morreu em 1970, aos 73 anos.
O total de vítimas fatais pode chegar a 1.000. Afinal, muitos imigrantes viajavam clandestinamente. Por essas e outras, o Príncipe de Astúrias é conhecido como o ‘Titanic brasileiro’.
Cinquenta e cinco dos 143 sobreviventes foram resgatados pelo vapor francês Vega e levados, sãos e salvos, para Santos. O capitão Auguste Poli foi recebido como herói na cidade.
José Carlos Silvares trabalhava no jornal A Tribuna de Santos quando, “num plantão chuvoso de 1981”, recebeu a ligação de um radioamador argentino chamado Juan Carlos que queria saber detalhes sobre o naufrágio que matou o avô de um amigo.
Ao tomar conhecimento da tragédia, Silvares resolveu escrever um livro sobre o assunto. Incansável, viajou incontáveis vezes para Espanha, Inglaterra e Argentina e visitou museus marítimos, centros náuticos e bibliotecas públicas.
Dos muitos personagens do naufrágio, Silvares destaca a espanhola Marina Vidal Castro, de 26 anos, e o argentino Luís Descotte Jourdan, de 41.
Natural da Galícia, Marina Vidal embarcou em Cádiz, viajava sozinha e ocupou uma cabine na segunda classe. Representante de uma famosa boutique de Paris, vendia roupas e artigos femininos, como chapéus, vestidos e lingeries.
Na madrugada do dia 5, esperava acordada no convés para avistar as luzes do Carnaval no Rio de Janeiro, onde morou dois anos antes e chegou a ter uma loja na Rua da Assembleia.
“Foi considerada uma heroína por salvar cinco náufragos”, relata Silvares. “Os passageiros relataram seus atos de bravura aos jornais”. Traumatizada, a heroína do Príncipe de Astúrias nunca mais pôs os pés em um navio. Morreu em 1974, aos 84 anos.
Luís Descotte Jourdan era empresário, tinha uma loja de móveis e artigos de decoração em Buenos Aires e voltava de uma viagem a Zurique. Era casado na Argentina e tinha uma amante na Suíça.
Anos depois, descobriu-se que Jourdan era o avô do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984). “Seu corpo foi identificado pela barba, pelas roupas e pelas iniciais L.D. na camisa”, observa Silvares. “Deixou uma viúva de cada lado do Atlântico: Julieta, em Buenos Aires; e Victoria, em Zurique”.
As possíveis causas
Mais de um século depois, a razão do naufrágio do Príncipe de Astúrias ainda é motivo de controvérsia. A versão oficial sustenta que o navio foi à pique devido às péssimas condições meteorológicas: chuva forte, neblina intensa e baixa visibilidade.
Mas, há outras hipóteses, nunca confirmadas. Em uma delas, o navio teria sido atingido por um torpedo. Noutra, o naufrágio teria sido criminoso para justificar o sumiço do ouro.
Segundo essa versão, o capitão José Lotina teria mudado a rota e, na calada da noite, descarregado uma carga valiosa entre as ilhas de Búzios e Vitória. Ao tentar voltar à rota original, o comandante colidiu com a Ponta da Pirabura e submergiu.
O cadáver do capitão, aliás, nunca foi encontrado. Reza a lenda que, ao ver o navio ir a pique, Lotina e seu imediato, Antonio Salazar, teriam cometido suicídio, com um tiro na cabeça. “Meu filho, estamos perdidos… Pobre gente!”, teriam sido suas últimas palavras.
O Príncipe de Astúrias transportava um grande carregamento de ouro. Algo em torno de 11 toneladas.
As hipóteses são muitas: o ouro pertencia à Coroa espanhola e seria usado para financiar a Revolução Mexicana, liderada por Emiliano Zapata (1879-1919); pagar a Argentina pelo trigo fornecido durante a Primeira Guerra ou, ainda, abrir um banco em Buenos Aires.
“Que fim levou o carregamento de ouro que o Príncipe de Astúrias trazia da Espanha?”, indaga o cineasta Eduardo Sallouti, codiretor do documentário Naufrágio — Mistério e Morte na Catástrofe do Príncipe de Astúrias (2010). “Bem, essa é a pergunta de um milhão. Ou, quem sabe, muito mais”.
Em seu compartimento de carga, o Príncipe de Astúrias transportava, também, 20 estátuas de bronze, em tamanho natural, destinadas ao monumento La Carta Magna y las Cuatro Regiones Argentinas.
Das 20 estátuas, apenas uma, avaliada em 400 mil dólares, foi resgatada dos destroços do navio, em 1990. Hoje, ela enfeita os jardins da Marinha, no Rio de Janeiro. Todas as outras permanecem desaparecidas.
Apenas oito meses depois do naufrágio do Príncipe de Astúrias, outro navio da Pinillos Izquierdo, o Pio IX, também afundou. Morreram 40 tripulantes, incluindo o capitão Manuel Oginaga.
Na noite de 9 de setembro de 1919, outra tragédia: o transatlântico Valbanera, da mesmíssima companhia, desapareceu em meio a uma tormenta, com 488 pessoas a bordo. Entre as vítimas, três marinheiros do Príncipe de Astúrias.
O fim do Vega, o navio francês que socorreu os sobreviventes do Príncipe de Astúrias,também foi trágico. Em 12 de abril de 1916, foi atacado por um submarino alemão U-34, perto de Barcelona, na Espanha. Foi a pique em menos de 15 minutos.
Por sorte, os 41 tripulantes, incluindo o capitão Poli, se salvaram. O bote do Príncipe de Astúrias, recolhido do mar junto com os sobreviventes do navio espanhol, afundou com o Vega.
Destroços ‘mal-assombrados’
Naufrágios como o do Príncipe de Astúrias conferiram à Ilhabela o macabro apelido de “Cemitério de Navios”.
Segundo o Sistema de Informações de Naufrágios, banco de dados criado pelo mergulhador Maurício Carvalho em 1995, em suas águas jazem os escombros de pelo menos 23 embarcações, desde o vapor inglês Crest em 1882 até o petroleiro grego Alina P. em 1991.
“As rochas de Ilhabela, de origem vulcânica, contêm minérios que desregulam as agulhas das bússolas e fazem os navios perderem o rumo”, explica a escritora Isabel Vieira no livro Príncipe de Astúrias — O Titanic Brasileiro (2014).
O local do naufrágio é também um dos mais disputados pontos de mergulho do país. O mergulhador Clécio Mayrink é um dos muitos que já visitaram os destroços do Príncipe de Astúrias. Quatro vezes, sendo a primeira delas em 2003.
“Particularmente, não gosto de lá. É um lugar sombrio”, define. O navio jaz a 40 metros de profundidade. Entre os achados do naufrágio, há desde o capacete de um escafandro (traje usado por mergulhadores) até a cabeça de uma boneca de porcelana. Essas e outras “relíquias” estão guardadas no Museu Náutico de Ilhabela, atualmente fechado para reforma.
Mergulhador há mais de 40 anos, Mayrink explica que a prática não é recomendada para iniciantes. Um dos maiores perigos é aventurar-se pelo interior do navio e, por falta de lanterna, bússola ou carretilha, ficar preso lá dentro.
Outro risco: as chapas de aço, afiadas como navalhas, podem ferir os exploradores ou danificar seus equipamentos de mergulho.
“Já houve ocasião em que os mergulhadores não conseguiram encontrar o Príncipe de Astúrias”, relata Mayrink. “Ficou encoberto por areia durante um bom tempo.”
Mergulho em naufrágio, explica Mayrink, requer um curso de 12 horas de aulas teóricas, quatro de aulas práticas em piscina e mais quatro de mergulho em mar aberto.
“É mais arriscado do que mergulhar em caverna”, compara. “O risco de desmoronamento é grande. Isso sem falar que, no caso de Ilhabela, a correnteza é forte e a visibilidade, baixa”.
Tirar fotos do que sobrou do Príncipe de Astúrias é, de fato, missão quase impossível: em dias de sol, a visibilidade não passa de dois metros…
Não bastasse tudo isso, o ‘Titanic brasileiro’ ainda tem fama de mal-assombrado. Da primeira vez que mergulhou lá, Mayrink passou por uma experiência, para dizer o mínimo, sinistra.
“Ouvi gritos de mulher”, confessa. “Já mergulhei em naufrágios onde houve mortes, mas nunca vi nada parecido. Depois disso, soube de outros casos. Os mergulhadores não tocam no assunto com medo de não serem levados a sério”.
Pelos registros da Marinha, os 8.500 quilômetros do litoral brasileiro abrigam 2.128 naufrágios. Apenas 155 foram localizados.
O primeiro de que se tem notícia em águas brasileiras aconteceu em 1503. A caravela do explorador português Gonçalo Coelho (1451-1512) afundou no dia 10 de agosto depois de colidir contra recifes na altura de Fernando de Noronha. Não houve vítimas.
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