- Author, Thais Carrança
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @tcarran
Bárbara Bretas Coelho, hoje com 38 anos e moradora de Belo Horizonte, engravidou de sua única filha quando tinha 22.
Depois de uma gestação marcada por mal-estares e enjoos, ela se viu próxima a dar à luz em um calorento mês de janeiro. Mas o parto acabou só acontecendo de fato em 2 de fevereiro, um sábado de Carnaval.
“Quando o anestesista chegou, me falou: ‘Você, hein, nossa senhora, não podia escolher um dia melhor para parir, não? Sábado de Carnaval, eu tive que sair do bar para fazer isso aqui, que inconveniência! Não podia esperar a Quarta-feira de Cinzas, não?'”, lembra a mãe de Cecília, hoje com 16 anos.
Bárbara conta que ficou muito desconfortável com o comentário feito pelo médico em tom de deboche.
“Já estava apavorada com a ideia de tomar aquela anestesia no meio da coluna e daí o cara me diz ‘Eu tive que sair do bar’, eu pensei ‘Meu Deus, ele estava tomando uma cerveja e vai enfiar uma agulha no meio da minha coluna. Que loucura é essa? Não pode beber e dirigir, mas pode beber e enfiar agulha na coluna?'”, recorda Bárbara.
“Mas eu já estava na posição, de camisola, com a bunda de fora, ia falar o quê? Não falei nada, mas aquilo me deixou muito mais tensa.”
Apesar da situação desagradável, ela viu a filha nascer saudável, com mais de 3kg, por meio de uma cesariana, em um hospital privado.
Por conta de situações como a vivida por Bárbara, muitas brasileiras temem ter filhos no feriado prolongado de Carnaval.
Isso contribui para um fenômeno estatístico peculiar: uma queda acentuada de partos durante a folia e um aumento nos dias antes e depois da festa.
O que eles encontraram é um resultado curioso.
Por um lado, há um efeito negativo: uma redução de peso em bebês frutos de partos de alto risco, antecipados para evitar o feriado.
Mas há outro impacto, estatisticamente até mais relevante: uma extensão do período gestacional, suficiente para resultar em uma redução das mortes neonatais.
Melo e Menezes Filho constataram que isso é fruto do adiamento de partos que, de outra forma, teriam sido realizados antes do tempo, por meio de cesarianas agendadas.
Isso fica claro, segundo os autores, no aumento no número diário de partos naturais pós-Carnaval.
Para Melo, o resultado desse “experimento natural” propiciado pelo feriado de Carnaval serve de alerta e pode ajudar a pautar decisões de políticas públicas de saúde.
“Esse resultado deixa bem evidente que os partos no Brasil estão acontecendo em uma idade gestacional sub-ótima [antes do tempo ideal] e que os resultados de saúde ao nascer poderiam ser melhores se melhorássemos as práticas de cuidado ao nascimento”, diz a pesquisadora à BBC News Brasil.
Procurada para comentar os resultados do estudo, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) concorda com a análise.
“O Brasil figura em segundo lugar do mundo em cesarianas, com o sistema privado tendo quase 90% dos partos acontecendo por essa via”, destaca em nota o médico obstetra Romulo Negrini, vice-presidente da Comissão de Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Febrasgo.
“Isso é péssimo, pois, apesar da falsa impressão de segurança que a cesariana traz, ela se relaciona a um risco três vezes maior de morte materna, especialmente por tromboembolismo e hemorragia.”
Por que analisar Carnaval e nascimentos
Carolina Melo conta que seu interesse pelo tema começou no doutorado, quando pensou em mensurar os efeitos da cesariana sobre os resultados de nascimentos.
No entanto, ela explica que é difícil isolar os impactos do procedimento médico sobre os resultados de parto, uma vez que a realização de cesáreas está correlacionada com outros fatores, como o nível de educação da mãe e suas condições de acesso à saúde — questões que também afetam os indicadores de saúde da gestante e do bebê.
“O que temos consolidado na ciência hoje é que a antecipação de parto é um problema”, observa Melo.
“Ainda que seja por um dia, a literatura mostra que ela é prejudicial ao bebê.”
Outro conhecimento consolidado, diz a pesquisadora do Insper, é que as manipulações de datas de partos estão altamente correlacionadas com a escolha da cesariana — procedimento que tem altíssima incidência no Brasil, representando em média 55% dos partos no país, percentual que chega a 86% em hospitais privados.
A cesárea é um recurso que pode ajudar a salvar vidas. Mas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), taxas de cesariana acima de 10% não contribuem para a redução da mortalidade materna, perinatal ou neonatal.
No Brasil, considerando as características específicas da população local, a taxa de cesárea desejável seria de 25% a 30%, segundo o Ministério da Saúde — ou seja, muito abaixo dos atuais níveis no país.
Melo observa que a opção pela cesariana agendada tem motivos diversos, como a conveniência do médico e da gestante; ou a diferença de nível de conhecimento sobre os prós e contras dos procedimentos entre o médico e a grávida.
Também há casos em que isso ocorre por uma busca do médico por evitar riscos. E, ainda, há mães que preferem não ter seus bebês em dias específicos, como o Dia da Mentira, o dia de Finados, entre outras datas.
“A cesariana traz bastante conveniência para o agendamento do parto, e há até um grande negócio por trás disso, de serviços adicionais, como festinhas de nascimento, preparação da mãe com depilação, maquiagem e outras coisas, que só são viáveis quando a mãe sabe quando o parto vai acontecer”, diz Melo.
A pesquisadora observa que a literatura científica também mostra que, em torno de feriados prolongados, há uma manipulação das datas de partos, já que há uma percepção de que, nessas ocasiões, com equipes reduzidas, os hospitais podem ficar pior preparados para receber gestantes, principalmente as de alto risco.
Por conta disso, os economistas decidiram se debruçar sobre os efeitos do Carnaval sobre os nascimentos no Brasil.
“Escolhemos o Carnaval porque é a festividade mais longa e que mais mobiliza o país, não temos nenhum outro feriado que pare tudo dessa forma”, diz Melo.
Os pesquisadores chegaram a analisar outros feriados, como Corpus Christi, e encontraram efeitos parecidos, mas em menor magnitude.
Como o estudo foi feito
Para fazer a pesquisa, Carolina Melo e Naercio Menezes analisaram dados do DataSUS de nascidos vivos e mortalidade neonatal.
Como o feriado de Carnaval cai em datas diferentes a cada ano, os pesquisadores padronizaram a análise ao considerar a terça-feira de Carnaval de cada ano como o ponto zero.
Por exemplo, em 2012, quando a terça de Carnaval caiu no dia 21 de fevereiro, o primeiro dia do ano seria o dia -51 (ou seja, 51 dias antes do Carnaval), a terça-feira de Carnaval o dia zero, a Quarta-feira de Cinzas o dia 1, e assim por diante.
Assim, para cada dia do ano, os pesquisadores tinham uma quantidade de nascidos vivos e características médicas desses bebês.
Depois, eles definiram uma janela de análise em torno do Carnaval, de 20 dias antes e 14 dias depois da terça-feira.
Essa janela corresponde ao período em que a soma dos partos realizados antes e depois da festa, descontados os partos que deixaram de ser feitos no Carnaval, se aproxima de zero.
Definido isso, os pesquisadores comparam os nascimentos ocorridos dentro dessa janela do Carnaval, com nascimentos ocorridos em outros dias do ano.
Um resultado surpreendente
“Confesso que a gente achava que ia encontrar um efeito negativo sobre os resultados de nascimento, principalmente por causa da antecipação de partos”, diz Melo.
“Há uma proporção parecida de antecipações e postergações, mas o efeito da postergação é tão forte, que é capaz de reduzir a mortalidade neonatal. Isso foi um tanto surpreendente.”
Os partos que ocorreram durante a janela do Carnaval tiveram, em média, 3,5 dias a mais de gestação, segundo o estudo do Insper.
“Esse resultado considera tanto partos antecipados como postergados, o que significa que os postergados provavelmente foram adiados em mais do que 3,5 dias”, diz Melo.
“Qualquer coisa a mais do que isso são muitos dias, o que permite avaliar que, na ausência do Carnaval, esses partos estavam ocorrendo bem antes do que deveriam, e essa postergação é capaz de reduzir mortalidade neonatal em uma magnitude bem alta.”
A redução de mortalidade neonatal constatada foi de 15 a 17 casos a cada 1 mil nascidos vivos.
É preciso levar em conta que a mortalidade neonatal é um resultado de saúde muito extremo, observa Melo.
“Se a gente é capaz de prevenir mortalidade neonatal com alguns dias de postergação da data de nascimento, deve ser que esses bebês que nascem mais cedo têm uma saúde pior do que poderiam ter”, considera.
O que fazer diante desses resultados
“A grande lição — se fôssemos dar uma recomendação de políticas públicas — é que o governo deveria incentivar as gestantes a não anteciparem o parto, a esperarem um pouco mais para terem os bebês.”
Melo observa que, desde 2016, uma portaria do Ministério da Saúde regulamenta que a gestante só pode optar por uma cesariana agendada a partir da 39ª semana de gestação, seja no setor público ou privado.
Romulo Negrini, da Febrasgo, lembra que o próprio Conselho Federal de Medicina já se manifestou sobre o tema, em uma resolução, que estabelece que cesarianas a pedido sem indicação clínica somente devem ser realizadas a partir de 39 semanas.
“Isso não é mera deliberação: crianças que nascem de forma não espontânea abaixo dessa idade gestacional chegam a ter dez vezes mais chances de desconforto respiratórios e, consequentemente, maior probabilidade de doenças pulmonares crônicas, como asma”, destaca o médico.
Para a pesquisadora do Insper, uma das formas de assegurar que essa norma seja cumprida é através da conscientização de médicos e gestantes.
“Temos uma cultura muito forte de cesariana no Brasil, é quase um símbolo de status no país. Isso tem mudado, há uma onda de humanização do parto acontecendo, mas não parece ser suficiente”, avalia Melo.
Para ela, seria necessário também mudar os incentivos para os médicos, porque, se eles são remunerados por parto, a cesariana vale mais a pena, por ser mais rápida e permitir ao profissional fazer mais partos, em horários mais convenientes.
Outra questão, relacionada à prática médica no setor privado brasileiro, é que médico e gestante desenvolvem uma relação próxima, de muita confiança.
“Mas a atenção ao parto deveria ser feita por uma equipe médica para que, se for necessário uma pessoa da equipe viajar no feriado para descansar, outras pessoas fiquem à disposição da gestante”, afirma Melo.
“Isso raramente é o caso e dá muito poder ao médico. Se ele fala: ‘Vou viajar no feriado, se você quiser fazer o parto comigo com certeza, vamos ter que antecipar’, isso deixa a gestante muito insegura, porque ela confia naquela pessoa mais do que tudo e ela está num momento vulnerável da vida dela.”
O representante da Febrasgo concorda com a análise e cita ainda outros três fatores que levam médicos e pacientes a preferirem a cesariana: a cultura de que o parto vaginal é doloroso; o medo dos médicos de processos judiciais diante de intercorrências no trabalho de parto; e a falta de treinamento prático para dificuldades no parto dos médicos em formação.
Negrini defende que, além das mudanças já sugeridas pela pesquisadora do Insper, seria necessária a melhoria do ensino em obstetrícia com maior uso de simulações que repliquem situações práticas; maior participação da enfermagem em partos, pois estudos mostram que isso reduz intervenções e aumenta a taxa de partos naturais; e infraestruturas hospitalares adequadas ao parto vaginal.
“Na equação para sucesso do parto vaginal, precisam entrar três elementos: infraestrutura, equipe profissional e pacientes”, conclui o médico.
Atenção ao parto como um trabalho em equipe
Em São Paulo, desde 2018, um grupo formado por médicas, enfermeiras obstétricas e obstetrizes (profissionais especializadas no acompanhamento de gestações, partos e pós-parto) busca colocar em prática a ideia da atenção ao parto como um trabalho coletivo.
Com uma taxa de cesárea de 13%, o Coletivo Nascer trabalha com a promoção do parto normal e em esquema de plantão para atendimento 24 horas, sete dias por semana.
“De maneira geral, no setor privado, a mulher tem um médico que fica à disposição dela da 37ª à 41ª semana e daí, seja lá que dia da semana ou que horas o parto aconteça, ou quanto tempo ele dure, é só ele para fazer tudo”, diz Ana Cristina Duarte, obstetriz e coordenadora do Coletivo Nascer.
“Esse modelo é muito difícil de executar e nossa taxa de cesárea no Brasil é muito alta em grande medida por causa disso.”
No coletivo, cada profissional tem seu horário de atendimento. Então é uma equipe que presta serviço particular, mas que atende em regime de plantão – um plantão com a qualidade controlada e onde os profissionais seguem protocolos rigorosos.
A disponibilidade de profissionais, que trabalham em turnos de 12 horas e por isso estão sempre descansados, contribui para a taxa elevada de partos naturais feitos pela equipe, segundo Duarte.
Com o sistema, o coletivo também consegue oferecer partos mais baratos do que aqueles realizados no setor privado que trabalha sob o esquema tradicional, diz a coordenadora.
Experiência internacional
Ana Cristina Duarte diz que a inspiração do coletivo vem de modelos internacionais de assistência a gestantes, nos quais não vigora uma cultura comum no Brasil em que um único médico acompanha o pré-natal e faz o parto.
Essa cultura, segundo a especialista, é fruto de uma busca por conforto que deturpa a assistência, por não ser um modelo sustentável.
No Reino Unido, por exemplo, quando não há riscos para a mãe ou para o bebê, o NHS (sistema de saúde público britânico) indica o parto normal e oferece algumas opções para a hora de dar à luz.
Além do hospital, é possível parir em casa com a ajuda de parteiras (chamadas por lá de midwives) ou em clínicas conhecidas como centros de nascimento, que têm um ambiente mais caseiro que o dos hospitais.
A cesariana planejada ou a de emergência são admitidas em poucas circunstâncias.
“No mundo inteiro de primeiro mundo, onde você tem os melhores resultados [de nascimentos], a mulher é atendida por plantões. Não é uma pessoa, são equipes grandes, que vão dividir o trabalho”, diz Duarte.
“O Coletivo Nascer foi pioneiro no Brasil em fazer isso [na saúde privada] e agora já há iniciativas similares em outros lugares, como Curitiba, Rio de Janeiro e outros.”
Segundo a obstetriz, as vantagens da maior taxa de partos naturais incluem menor ocorrência de infecções e hemorragias, recuperação pós-parto menos problemática por não se tratar de um procedimento cirúrgico e, para os bebês, menos chance de eles desenvolverem asma, bronquite, obesidade, diabetes e doenças autoimunes.
“Não quer dizer que nenhum vai ter, mas todos os riscos diminuem com o parto normal.”
Diante da sua experiência com a assistência ao parto, Duarte destaca a importância do estudo realizado pelo Insper sobre o efeito do Carnaval nos nascimentos.
“Esse é mais um estudo que reforça uma tese antiga, mas é importante manter a pesquisa viva para que os tomadores de decisão não se esqueçam desse problema, porque esse é um problema crônico, que depende de políticas públicas”, diz a obstetriz.
“Nossa chaga é a cesariana marcada, porque ela é justamente a cesariana desnecessária. Falta vontade pública de tomar decisões difíceis para mudar isso.”
Fonte: BBC
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