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Jair Candor rastreia comunidades indígenas isoladas na Amazônia há 35 anos

Jair Candor consegue ler a floresta melhor do que qualquer outra pessoa.

Ele dedicou quase toda a vida a percorrer as partes mais remotas da floresta Amazônica, procurando povos indígenas que vivem isolados. Sua intenção é proteger essas pessoas.

Candor é indigenista e trabalha na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Seu trabalho é demonstrar a existência dessas comunidades isoladas para proteger legalmente suas terras.

Muitas vezes, sua tarefa é uma corrida contra outras pessoas, como agricultores e madeireiros, que têm seus próprios interesses sobre as terras indígenas.

Candor percorre a floresta em busca de pistas que indiquem a localização das comunidades indígenas. Se o lugar tiver chão de barro ou areia, ele procura as pistas no solo. Se o lugar for seco, a busca é feita nas árvores.

“À medida que se movimentam, eles quebram um galho aqui, outro ali”, explica Candor, em referência aos indígenas. “Então, começamos a segui-los. A floresta sempre aponta para algum lugar.”

Mas existe uma pessoa que detém mais conhecimento sobre a floresta do que Candor. Seu nome é Tamanduá – o único indígena Piripkura que continua vivendo como nômade na Floresta Amazônica. Tamanduá passa a vida caminhando com um facão e uma tocha.

Apenas três membros continuam vivos de um povo que, um dia, reuniu centenas de pessoas. E dois deles decidiram se estabelecer em um local fixo.

Esta é a história de como Jair Candor se tornou rastreador de povos isolados. Sua jornada levou anos até que ele encontrasse os Piripkura – nome que significa “borboleta”, pela agilidade com que eles percorrem a floresta.

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Jair Candor em um dos seus encontros com os indígenas Piripkura: Tamanduá e Pakyi, também conhecido como Baita

Crescer no Amazonas

Candor se consagrou como expedicionário, em parte, porque ele próprio cresceu em meio à floresta. Sua família se mudou do Paraná para a região amazônica quando ele ainda era criança, com seis anos de idade.

“Havia um programa do governo para explorar a Amazônia”, ele conta. “Meus pais eram agricultores e as terras que tínhamos no Paraná eram muito pequenas.”

Os pais de Candor sonhavam em ter uma grande plantação de café. E este sonho ia ao encontro dos planos da ditadura militar (1964-1985), que pretendia levar sua própria visão de desenvolvimento para a Amazônia: infraestrutura e agricultura.

Na época, o controle do Brasil sobre o vasto território da Amazônia era muito limitado. Afinal, a floresta engolia as estradas muito mais rápido do que a manutenção feita pelas autoridades.

Por isso, viajar era muito difícil. A família de Candor, por exemplo, levou nove dias para chegar do Paraná até Rondônia.

Milhares de outras famílias também se mudaram para a Amazônia naquela época. Mas a façanha de construir a vida em meio à floresta não era tarefa fácil.

“Todos os dias, havia gente morrendo de malária, febre amarela…”, recorda Candor.

Quando criança, Candor foi ensinado que os indígenas “eram perigosos, que matavam, eram canibais e odiavam a gente”.

Questão de sobrevivência

A tentativa da família de ter uma vida melhor na Amazônia logo fracassou. A mãe de Candor morreu e seu pai vendeu a terra três anos depois da chegada.

A família se desintegrou e cada um precisou tentar sobreviver isoladamente. E, com apenas nove anos de idade, Jair Candor começou a procurar trabalho nas plantações de café.

“Às vezes, trabalhávamos em troca da comida, porque o dono não tinha como nos pagar”, relembra ele. “Eles me davam um prato de comida, outro para levar e assim foi.”

Mais tarde, ele conheceu um grupo de seringueiros. Na época (meados dos anos 1970), os seringueiros já trabalhavam há pelo menos um século nas profundezas da floresta.

Candor conta que encontrou uma comunidade entre os seringueiros.

“Como eles me tratavam muito bem, eu me adaptei a viver com eles”, ele conta. “Foi ali que eu comecei a entender e aprender como sobreviver na Amazônia.”

“Aprendi a caçar. Aprendi a pescar. Aprendi sobre umas pequenas larvas que vivem dentro dos cocos do babaçu e são muito nutritivas e saborosas.”

E aprendeu a gostar daquela vida.

“O trabalho não era muito pesado”, ele conta. “Eu trabalhava na sombra das árvores e ganhava algum dinheiro. Para mim, estava tudo bem.”

Crédito, Arquivo Pessoal

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Candor aprendeu a pescar com os seringueiros e os indígenas

O encontro

Trabalhando como seringueiro, Jair Candor encontrou uma daquelas comunidades indígenas que ele tinha sido ensinado a evitar. Candor morava perto de um grupo indígena gavião.

“Nós começamos a nos comunicar com eles”, conta o indigenista. “Eu fui à aldeia, joguei futebol com eles, comi com eles.”

“Comecei a perceber que nós é que estávamos invadindo o território deles e não eles, o nosso.”

Os indígenas viviam na Amazônia desde muito tempo antes dos forasteiros.

Mas a chegada de famílias como a de Candor, vindas de outras partes do Brasil, significou deslocamentos para os indígenas, no melhor dos casos. E, em muitos outros, comunidades indígenas inteiras foram massacradas.

Candor aprendeu a falar um pouco do idioma dos indígenas gaviões. Ele também aprendeu a caçar e pescar como eles.

“Aprendi que eles são pessoas que vivem sem nada”, relembra ele. “Não são como o homem branco, que quer tudo.”

Assim como a postura de Jair Candor frente aos indígenas, a forma como o governo abordava aquelas comunidades também mudou com o passar do tempo.

A Funai foi criada em 1967, depois que um relatório devastador revelou os maus-tratos sofridos pelos povos indígenas no Brasil – desde assassinatos e torturas até exploração sexual e roubo de terras.

Para proteger os indígenas e, especialmente, resguardar suas terras contra os interesses de madeireiros e agricultores, a entidade precisava determinar quem vivia em qual lugar. E esta não era uma tarefa fácil, já que algumas comunidades são nômades e vivem em enormes extensões de terra.

Por isso, a Funai precisava de pessoas que pudessem rastrear e monitorar esses grupos. E foram os amigos indígenas de Candor que o recomendaram para essa função.

Mas rastrear comunidades que não querem ser encontradas traz um dilema.

“Nós só entramos em contato em caso de risco iminente, se há um conflito com uma população indígena contatada ou com agricultores ou garimpeiros, alguma coisa assim”, explica Candor. “Caso contrário, nosso trabalho é só de monitoramento.”

“Os povos isolados não têm ninguém que fale por eles, eles precisam de alguém que lute por eles, que os proteja. Senão, amanhã ou depois de amanhã, só conheceremos a história de mais um grupo de indígenas não contatados que, como tantos outros, foi massacrado.”

Um ano caminhando

Jair Candor e outros homens empreenderam uma expedição pelo Estado de Mato Grosso em 1988, em busca dos Piripkura. Eles sabiam que, antes, existiam centenas deles, mas na época já restavam apenas alguns poucos.

No meio da viagem, o chefe de Candor ficou doente, com gripe.

“Se nós estivermos com gripe, encontrarmos um grupo de indígenas e um deles for infectado, é provável que muitos morram, porque eles não têm imunidade”, explica ele.

Por isso, a expedição ficou nas suas mãos.

“Éramos apenas quatro”, ele conta. “Eu, outro homem branco e dois indígenas.”

“Caminhamos por todo o ano de 1988. Vimos muitos dos caminhos deles, muitos acampamentos, mas não encontrávamos nada.”

Até que, um dia, em meio a uma intensa chuva, eles ouviram os indígenas.

“Nós nos aproximamos. Um deles estava subindo em uma árvore e o outro estava no chão”, relembra Candor. O homem que estava no chão saiu correndo e o outro suplicava para que não o matassem.

Candor e sua equipe precisaram de um bom tempo para convencê-lo de que eram amigos. “Depois de duas horas, ele se acalmou.”

Os dois homens eram Pakyi (também conhecido como Baita) e Tamanduá.

Existem fotografias desse encontro. Algo chama imediatamente a atenção: Candor parece gigante ao lado dos dois homens Piripkura.

“Eles medem no máximo 1,40 metros. São muito baixinhos”, explica Candor. E também são muito ágeis, rápidos e inteligentes.

Pakyi e Tamanduá se tornariam pessoas especiais para Candor.

Crédito, Arquivo Pessoal

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Primeiro encontro entre Candor e Tamanduá e Pakyi Piripkura

Jair Candor passou anos repetindo esta missão com muitos outros povos indígenas e ficou conhecido como um dos melhores rastreadores da Amazônia.

Ele começou a se sentir mais em casa nas profundezas da floresta do que na sua própria cidade. Ou, pelo menos, a Amazônia se tornou a prioridade da sua vida, o que não foi muito bom para suas relações pessoais.

“Acabei perdendo meu próprio casamento”, ele conta. “Tínhamos tudo marcado. Eu disse: ‘bem, vou trabalhar, mas vou voltar a tempo’. Mas a expedição demorou muito e acabei chegando uns 15 dias depois da data do casamento.”

“De qualquer forma, foi bom porque acredito que [o casamento] não teria dado certo.”

Mesmo assim, Candor conheceu outra pessoa e se casou. Ele tem dois filhos e uma neta.

Candor vê sua família cerca de cinco vezes por ano, quando vai para casa. Sua vida é assim desde que os filhos eram pequenos. Ele também perdeu o nascimento de um deles – e reconhece que sua esposa precisou ser mãe e pai dos seus filhos.

“Sou mais casado com a floresta do que com a minha esposa”, diz.

Ameaças e doenças

O trabalho de Jair Candor é perigoso. Muitas pessoas com trabalhos parecidos acabaram assassinadas por agricultores ou madeireiros.

“Sou ameaçado, muito ameaçado na região onde trabalho”, afirma ele. “Sei que o risco é grande, mas não tenho medo.”

Em 2019, Candor sobreviveu a um tiroteio, durante uma invasão à base onde ele ficava.

“Nós trocamos disparos e eles acabaram perdendo”, ele conta. Os invasores eram supostamente relacionados a um grupo de madeireiros.

Desde então, a Força Nacional de Segurança Pública protege a base 24 horas por dia. Mas este não é o único risco enfrentado por Candor.

“No ano passado, eu completei 45 malárias”, ele conta. “Hoje, para mim, é até normal.”

Os Piripkura

Dentre todas as comunidades isoladas que foram monitoradas por Candor ao longo de mais de 30 anos, sua relação com os Piripkura é a que tem mais importância para ele. Os encontros foram poucos, mas sua relação com eles já dura décadas.

Existe um vídeo da última vez em que eles se encontraram, depois de uma longa busca. Candor não os via há anos e precisava comprovar que eles estavam vivos para proteger suas terras.

Depois de muita procura, de repente, eles encontraram duas figuras nuas, Pakyi e Tamanduá.

Foi um encontro entre amigos. Os dois indígenas estavam felizes por encontrá-lo e também precisavam dele: sua tocha havia apagado.

“Eles haviam acendido sua tocha uma vez, acho que em 1998”, explica Candor. “E ela só apagou em 2017. Eles cuidam do fogo com muito cuidado.”

Os Piripkura são o menor grupo indígena do Brasil. Apenas três integrantes permanecem vivos: Tamanduá, Pakyi e uma mulher chamada Rita.

Pakyi recorda que, anos atrás, uma embarcação dos Piripkura foi interceptada por seringueiros. Eles foram levados para a margem e decapitados. Esta é uma das razões que levaram o povo a ficar tão reduzido.

É claro que já não existe a possibilidade de reprodução física dos Piripkura.

Crédito, Amazon Prime

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Tamanduá e Pakyi, no documentário ‘Piripkura’ (2017), do diretor Bruno Jorge, disponível na Amazon Prime

Vida ou morte

Jair Candor tenta não interferir demais na vida dos grupos que monitora. Mas ele interferiu uma vez, quando Pakyi e Tamanduá precisavam de assistência médica com urgência.

“Em uma das expedições, nós os encontramos na floresta e Tamanduá não conseguia caminhar”, ele conta.

“Nós o trouxemos para a base em uma maca e o médico descobriu que ele precisava ser operado da cabeça. Ele tinha um coágulo na cabeça. Precisava ir para São Paulo.”

“Eles já haviam ouvido o som de um avião sobrevoando quando estavam na floresta, mas não sabiam que ele servia para transportar as pessoas”, relembra Candor. “Foi meio complicado [levá-los para São Paulo], mas nós conseguimos.”

Pakyi e Tamanduá passaram mais de um mês em São Paulo, em tratamento médico.

“Foi traumático para eles”, relembra Candor. “Eles saíram de viver na floresta para viver em uma floresta de cimento, sem árvores, nem rios para pescar, nem castanhas para colher.”

Assim que voltaram para a Amazônia, Pakyi e Tamanduá fugiram o mais rápido que puderam. Mas, desde esse episódio, os encontros entre os Piripkura e Candor passaram a ser mais frequentes.

“Com certeza, temos amizade”, prossegue ele. “Eles me contam histórias da floresta. Que fugiram da onça, que a onça fugiu deles. Nós trocamos ideias.”

Pakyi passou a morar perto da base de Candor. Ele já não vive de forma independente.

Mas Tamanduá anda sozinho pela floresta. É o último Piripkura nômade. Ele não é visto há mais de um ano, mas eles têm bastante certeza de que continua vivo.

Crédito, Arquivo Pessoal

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Jair Candor no meio da Floresta Amazônica, longe de se aposentar por enquanto

Jair Candor tem hoje 63 anos e é difícil para ele pensar em aposentadoria.

“Esta é outra briga que tenho comigo mesmo”, ele conta. “Eu também tento decidir me aposentar, mas sei que não será fácil para mim.”

“Por enquanto, vou fazer o que fiz no meu casamento. Vou perder a minha aposentadoria.”