• André Biernath – @andre_biernath
  • Da BBC News Brasil em Londres

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A microbiota intestinal é composta de mais de 100 trilhões de bactérias e outros seres microscópicos

Diferentes espécies de bactérias estão sob risco de extinção — e a melhor maneira de preservá-las é depositar amostras de fezes e outros materiais biológicos de todas as partes do mundo num grande cofre localizado na Suíça.

Essa é a proposta de um grupo de cientistas, que já começou a trabalhar nessa coleção de micro-organismos. Os pesquisadores defendem que esse esforço é essencial para entender melhor o papel que muitos desses seres vivos desempenham na nossa saúde.

No futuro, a iniciativa, que reúne universidades de várias partes do mundo, também pode resultar em novos tratamentos contra várias doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade e asma.

Mas qual a importância de criar esse banco de fezes? E o que está por trás desse sumiço generalizado de bactérias ao redor do mundo?

Uma extinção silenciosa

Conhecido como Microbiota Vault (“Cofre de Microbiota”, em tradução livre), o projeto, que está na fase piloto, foi inspirado numa outra outra iniciativa similar: um banco de mais de 1,1 milhão de tipos de sementes de todo o planeta que está depositado em Svalbard, um arquipélago que pertence à Noruega.

O objetivo do banco de sementes é guardar esses materiais num lugar seguro — e, assim, ter uma reserva que garanta o suprimento de comida no futuro, caso essas espécies desapareçam da natureza por algum motivo, o que colocaria em risco a segurança alimentar de um ou mais povos.

O mesmo princípio se aplica ao cofre de bactérias. A microbiologista Maria Gloria Dominguez-Bello, que lidera a iniciativa internacional, explica à BBC News Brasil que a diversidade desses seres microscópicos caiu drasticamente nas últimas décadas.

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No site oficial, a iniciativa fala em criar um ‘cofre para a humanidade’

Ao estudar povos indígenas da Amazônia, ela observou que a variedade de bactérias que eles carregam no intestino era praticamente o dobro do que é detectado num indivíduo dos Estados Unidos que vive numa cidade grande.

“E, quando olhamos mais a fundo, os povoados que começaram a ter contato com serviços de saúde e passaram a receber antibióticos também sofreram uma perda de diversidade bacteriana muito rapidamente”, descreve a cientista, que é professora da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos.

Vale lembrar aqui que a microbiota intestinal é um complexo sistema de micro-organismos que carregamos no sistema digestivo. Estimativas mais recentes apontam que ela é composta de 100 trilhões de seres vivos, que são fundamentais para a nossa saúde.

Essa verdadeira cidade microscópica dentro de nossas barrigas é composta por várias espécies de bactérias. O que os pesquisadores começaram a detectar nos últimos anos é justamente a perda dessa diversidade: diferentes tipos de micro-organismos estão desaparecendo aos poucos.

E, como você verá mais adiante, essa perda está relacionada a uma série de doenças crônicas, que se tornam um problema cada vez maior, especialmente em ambientes urbanos de países industrializados.

O microbiologista Christian Hoffmann, que por ora é o único representante brasileiro que colabora com o Microbiota Vault, explica que esse desaparecimento de bactérias não se limita ao nosso intestino.

“Da mesma forma que estamos perdendo plantas e animais, também passamos por um processo de extinção de micro-organismos que vivem dentro da gente e também na natureza”, alerta.

“Trata-se de um problema sério, que ocorre de forma muito acelerada”, complementa o pesquisador, que é professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP).

Mas o que está por trás desse desaparecimento das bactérias?

Comodidades da vida moderna

Hoffmann explica que o processo de extinção dos micro-organismos se iniciou com a Revolução Industrial, na virada dos séculos 18 e 19.

“A partir dessa época, conseguimos refrigerar e preservar melhor os alimentos e fazer com que eles ficassem disponíveis em grande quantidade. As carnes, por exemplo, se tornaram baratas, acessíveis e fáceis de manter em casa”, diz.

“Por um lado, isso representou mais segurança a uma fatia grande da população. Por outro, alterou profundamente os nossos hábitos alimentares”, completa.

E essas modificações na dieta se aprofundaram ainda mais nas últimas décadas, com a maior disponibilidade dos alimentos industrializados, ultraprocessados ou de baixo valor nutritivo.

“Nos últimos 20 anos, o brasileiro diminuiu consideravelmente o consumo de feijão, que era uma das bases da alimentação no país e uma das principais fontes de fibras da dieta”, lembra Hoffmann.

As fibras são essenciais para a nossa saúde. Uma parte delas serve de alimento para as bactérias que compõem a microbiota intestinal. Em equilíbrio, esses seres microscópicos nos ajudam a aproveitar os nutrientes da comida.

A outra parcela das fibras é primordial para formar um bolo fecal com boa consistência, capaz de passar pelo intestino e ser expelido pelo ânus sem grandes dificuldades.

Os acadêmicos apontam um segundo motivo por trás da extinção silenciosa dos micróbios: o advento dos antibióticos.

Essa classe de medicamentos é primordial para combater infecções bacterianas — e salvou milhões de vidas a partir de sua descoberta, em 1928 —, mas seu efeito na microbiota pode ser prejudicial.

Isso porque os antibióticos funcionam como uma bomba: eles matam qualquer tipo de bactéria, independentemente de elas serem maléficas (como aquelas que estão causando a infecção) ou benéficas (como as espécies que habitam o intestino e nos ajudam a fazer a digestão).

Ou seja: quando tomamos um remédio desses, causamos um desequilíbrio da microbiota. A morte das bactérias “do bem” diminui a diversidade e pode abrir alas para que micro-organismos “do mal” tomem conta do pedaço.

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Antibióticos tratam infecções bacterianas, mas também matam micro-organismos essenciais à saúde

O terceiro fator por trás do fenômeno é o aumento de partos via cesárea. Isso porque, quando o bebê passa pelo canal vaginal durante o parto normal ou natural, ele “toma para si” muitas das bactérias do corpo da mãe. Esse conjunto servirá para formar a microbiota do recém-nascido dali em diante.

Isso não ocorre na cesárea. Nesse procedimento estéril, o bebê nasce a partir de um corte do ventre e quase não tem contato com os micro-organismos da mulher.

Nenhum desses três elementos é intrinsecamente ruim. A industrialização permite que as pessoas tenham mais acesso à comida. Os antibióticos tratam infecções bacterianas que são potencialmente fatais. A cesárea representa uma alternativa segura de parto nas ocasiões em que há risco para a mulher ou para o bebê.

Todas elas, porém, produzem esse efeito colateral na diversidade das bactérias — e esse impacto é maior nos países ricos e altamente industrializados, onde o acesso a muitas dessas comodidades é facilitado, em comparação com as comunidades rurais ou afastadas.

“Para completar, nós estamos destruindo os ecossistemas. E a unidade fundamental de qualquer ambiente é a bactéria. Então, essa extinção que está acontecendo com nossa microbiota intestinal ocorre no solo, na água e em todo o ambiente natural”, acrescenta Dominguez-Bello. A pesquisadora também participa do documentário The Invisible Extinction (“A Extinção Invisível”, em tradução livre), que trata justamente desse assunto.

Mas quais são as repercussões da extinção microbiana na nossa saúde?

A ascensão das doenças crônicas

Dominguez-Bello cita que há dois tipos de evidências sobre o impacto da extinção silenciosa dos micróbios no organismo humano.

“O primeiro deles vem da epidemiologia. Os dados mostram uma associação significativa entre ter nascido de cesárea ou o uso de antibióticos com a maior incidência de algumas doenças, como a asma”, diz.

A pesquisadora pondera que os estudos encontram conexões, mas não determinam uma relação de causa e efeito. Em outras palavras, esses trabalhos ainda não permitem entender a fundo como uma coisa (antibióticos ou cesárea) provoca a outra (enfermidades).

“A segunda evidência vem de experimentos com animais. Quando você interfere na microbiota de cobaias muito jovens, elas geralmente ficam maiores e mais obesas ao longo da vida”, exemplifica a microbiologista.

Essas investigações preliminares também mostram que o transplante de uma microbiota de um animal saudável para outro que está doente também pode funcionar como uma espécie de tratamento — e melhorar condições crônicas e inflamatórias, como obesidade, diabetes e asma.

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Perfil de bactérias que habitam o intestino pode influenciar no aparecimento de uma série de doenças

Para Hoffmann, todas essas observações só reforçam a dependência entre bactérias e outros seres vivos (como nós mesmos).

“A vida no planeta depende desse equilíbrio e desse desenvolvimento em conjunto de vários organismos. As bactérias dependem de nós e nós dependemos delas”, raciocina.

Preservar o que (ainda) não conhecemos

Embora exista um consenso entre os cientistas sobre a importância da microbiota, há todo um universo microscópico a ser explorado — afinal, ainda não sabemos a função de cada uma das espécies, o que elas significam para nossa saúde e o que podem representar de oportunidade para futuros tratamentos.

Portanto, o risco de extinção desses micro-organismos é uma ameaça à nossa própria espécie. Se eles sumirem do mapa antes de sabermos o que fazem, isso representa uma chance perdida para lidar com problemas do presente e do futuro (como o aumento de doenças crônicas e inflamatórias, por exemplo).

E é justamente aí que entra o Microbiota Vault: a proposta é preservar num local seguro amostras de várias espécies de micro-organismos.

A princípio, a iniciativa tem dois focos principais. Primeiro, a coleta de fezes humanas de várias partes do mundo. Esse é um método simples para obter parte da microbiota intestinal.

Segundo, estocar alimentos fermentados por diferentes tipos de bactérias, como queijos e iogurtes.

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Bactérias também são essenciais na produção de alguns alimentos, como os queijos

“Nosso objetivo é incentivar que os pesquisadores de várias nacionalidades criem coleções próprias, que ficarão armazenadas nos países de origem”, descreve Dominguez-Bello.

“Daí eles também poderão enviar parte dessas amostras para o cofre da Microbiota Vault, que servirá como cópia de segurança. Elas serão guardadas de graça sob duas condições. Primeira, que apenas o cientista responsável pode acessar aquele conteúdo. Segunda, que teremos autorização para fazer o sequenciamento genético daquela espécie, e essa informação ficará disponível gratuitamente para o público”, complementa.

A princípio, o cofre ficará localizado na Suíça — mas, por causa das recentes instabilidades relacionadas à pandemia de covid-19 e à guerra na Ucrânia, os responsáveis pelo projeto também estudam outras opções, como manter mais cópias em outros territórios, como a Groenlândia ou a Patagônia argentina.

Hoffmann considera que está na hora de fazer alguma coisa para lidar com a extinção dos micróbios. “Se demorarmos, será tarde demais”, acredita.

“Para mim, o cofre representa uma esperança para o futuro da saúde da humanidade e do próprio planeta”, conclui Dominguez-Bello.