- Isabelle Gerretsen
- BBC Future
Na cidade murada antiga de Saná, no Iêmen, arranha-céus de barro elevam-se do solo.
Essas estruturas em forma de torre são totalmente construídas com terra batida e decoradas com marcantes padrões geométricos. As construções de terra misturam-se com as montanhas próximas, com sua coloração ocre.
A arquitetura de barro de Saná é tão original que a cidade foi reconhecida como Patrimônio Mundial da Unesco.
“Como exemplo notável de um conjunto arquitetônico homogêneo que reflete as características espaciais dos primeiros anos do islamismo, o cenário da cidade tem excepcional qualidade artística e pictográfica”, afirma a Unesco na sua descrição de Saná. “As construções são uma demonstração de excepcional destreza no uso dos materiais e técnicas locais.”
As construções de Saná têm milhares de anos de idade, mas permanecem “terrivelmente contemporâneas”, segundo Salma Samar Damluji, uma das criadoras da Fundação de Arquitetura com Tijolos de Barro de Daw’an, no Iêmen, e autora do livro The Architecture of Yemen and its Reconstruction (A arquitetura do Iêmen e sua reconstrução, em tradução livre).
As antigas estruturas são habitadas até hoje. A maioria permanece sendo de residências particulares.
Damluji afirma que é fácil ver por que essas construções de barro não perderam sua atração. Elas são bem isoladas termicamente, sustentáveis e extremamente adaptáveis para uso moderno. “É a arquitetura do futuro”, segundo ela.
Arquitetos de todo o mundo estão retomando a construção com terra batida enquanto procuram construir edificações sustentáveis que possam suportar eventos climáticos extremos, como enchentes repentinas e calor intenso.
Será que essa forma antiga de arquitetura pode influenciar o projeto de nossas casas e cidades no futuro? E essa retomada dos princípios básicos pode representar uma alternativa viável para a crise climática?
A questão do clima na construção
A construção civil representa 38% das emissões mundiais de dióxido de carbono. Por isso, o setor da construção tem um importante papel a desempenhar para que o mundo possa atingir seu objetivo de zerar as emissões até 2050 e manter o aumento da temperatura global abaixo do limite crítico de 1,5 °C.
Os cientistas alertam que é fundamental substituir o concreto por materiais menos poluentes para atingir nossos objetivos climáticos. Afinal, a pegada de carbono do concreto – fundamental para a construção moderna – é enorme.
As construções de concreto representam cerca de 7% das emissões globais de CO2 – substancialmente mais que a indústria da aviação, que é responsável por 2,5% das emissões. Em todo o mundo, são anualmente produzidos 4 bilhões de toneladas de cimento, que é o principal componente do concreto.
“Não podemos mais viver em selvas de concreto”, adverte Damluji. “Precisamos levar em conta o meio ambiente e a diversidade.”
O barro pode ser a alternativa sustentável perfeita para o concreto, segundo Damluji. Construir com barro traz impactos muito pequenos ao meio ambiente, e o material, por si só, é totalmente reciclável.
Revivendo antigas tradições
A cidade de Djenné fica no delta do rio Níger, no centro do Máli. Fundada no ano 800 d.C., ela se tornou um importante ponto de encontro para os comerciantes que vinham do Saara e do Sudão.
Djenné é conhecida pela sua magnífica arquitetura de terra, especialmente a Grande Mesquita – a maior construção de barro do mundo, com quase 20 metros de altura sobre uma plataforma com 91 metros de comprimento.
Todos os anos, os moradores de Djenné reúnem-se para reparar e recobrir a mesquita com argila, supervisionados por um grupo de pedreiros especializados.
Esses mestres da construção são muito respeitados no Máli pela sua capacidade técnica e artística, segundo Trevor Marchand, professor emérito de Antropologia Social da Escola de Estudos Africanos e Orientais de Londres e autor do livro The Masons of Djenné (Os pedreiros de Djenné, em tradução livre).
“Os mestres da construção são reconhecidos por seus poderes sobrenaturais de trazer elementos protetores para as construções e para as pessoas que ali vivem”, afirma Marchand.
Ele explica que a renovação da cobertura de argila é um importante símbolo de coesão social. “Todos participam. Meninos e meninas misturam o barro, as mulheres trazem a água e os pedreiros coordenam as atividades.”
A arquitetura de barro de Djenné é constantemente alterada conforme os moradores trocam a argila, reparam e reconstroem suas casas.
“Existe dinamismo no processo”, afirma Marchand. “O barro é muito maleável e reage a mudanças dos habitantes da casa.” Ou seja, se a família crescer, pode-se acrescentar facilmente construções à casa; se ela diminuir, as construções são deixadas para se decompor e retornar para o solo.
‘Amor ao primeiro toque’
Essa antiga prática de construção está inspirando os arquitetos modernos, como a sérvia Dragana Kojičić, especializada em construção com terra bruta.
“Nossos ancestrais eram realmente inteligentes e muito práticos – eles usavam o que havia à sua volta”, afirma Kojičić. “A terra estava em toda parte e podia ser usada para tudo: paredes, pisos, tetos, fornos e até telhados”.
Kojičić, que recebeu seu treinamento no Centro de Pesquisa e Aplicação de Arquitetura da Terra, constrói e restaura casas de terra em toda a Sérvia, com antigos métodos de construção.
“O barro é contagioso – é amor ao primeiro toque”, afirma ela, ressaltando que não é preciso vestir roupas de proteção para lidar com o material. “Com a terra, você simplesmente brinca.”
A arquiteta austríaca Anna Heringer, que cria construções usando materiais naturais como barro e bambu, concorda. “Tocar a terra é uma sensação maravilhosa”, afirma ela. “Você não precisa de ferramentas para construir com ela, usa apenas suas mãos.”
Heringer trabalha com barro há quase 20 anos e projetou muitas construções de terra notáveis, incluindo a escola METI, construída com as mãos em Rudrapur (Bangladesh), que valeu para ela o Prêmio Aga Khan de Arquitetura, em 2007. “O barro é um material muito inclusivo; ricos e pobres podem construir com ele”, afirma ela.
A escola METI foi totalmente construída com materiais locais, como barro, palha e bambu, por uma equipe de construtores e artesãos locais, além dos próprios estudantes.
“Os materiais provenientes da terra, como argila e palha, são combinados com elementos mais leves, como varas de bambu amarradas com nylon, para moldar uma construção que aborda a sustentabilidade na arquitetura de forma exemplar”, segundo o júri do Prêmio Aga Khan.
“O barro é o futuro da construção sustentável”, afirma Heringer. “É o único material que podemos reciclar o quanto quisermos, sem usar energia”, afirma ela. “Realmente fica melhor quanto mais você usa.”
Heringer afirma que é o barro como uma massa para assar – quanto mais você trabalha com ele, mais o material muda e reage.
Mas o barro para construção deve ser usado de forma sustentável, sem reduzir a disponibilidade de terra para a produção agrícola, segundo Marchand. “Pode ser uma solução, mas apenas até uma certa escala.” Ela ressalta que a população global deve atingir 9,7 bilhões de pessoas em 2050, exacerbando a pressão sobre a terra disponível.
Construções saudáveis e resistentes
Os arquitetos afirmam que uma das melhores qualidades das construções de barro é o fato de que elas são quentes no inverno e frescas no verão. As paredes de barro possuem alta massa térmica, o que significa que elas absorvem lentamente o calor e o armazenam, evitando que a casa fique quente demais.
“As paredes de barro coletam o calor da radiação solar durante o dia e o liberam à noite. A temperatura [dentro da casa] nunca varia – está sempre em um nível confortável”, afirma Pamela Jerome, arquiteta americana e presidente do Estúdio de Preservação Arquitetônica, dedicado a projetos de restauração em todo o mundo.
Isso reduz a necessidade de aparelhos de ar-condicionado, que consomem muita eletricidade e contêm refrigerantes que são potentes fontes de emissão de gases do efeito estufa.
Em um relatório de 2021, o Comitê de Auditoria Ambiental do Reino Unido recomendou o uso de produtos “sustentáveis, de origem biológica e respiráveis”, como argila, reboco de calcário e fibras naturais, para aumentar o isolamento das casas existentes.
“Em comparação com os edifícios construídos com concreto ou metal corrugado, as construções de tijolos de barro mantêm temperaturas internas relativamente estáveis em um período de 24 horas e, portanto, fornecem conforto térmico muito superior aos seus moradores”, afirma Marchand. “Outro benefício é o fato de que as grossas paredes de tijolos de barro também reduzem os níveis de ruído do lado externo ou dos vizinhos.”
A natureza respirável do barro também oferece outros benefícios. O barro é poroso e permite que a umidade entre na casa, melhorando a qualidade do ar interno.
“A terra tem a capacidade de absorver o excesso de umidade do ar e liberá-lo, se necessário, e é por isso que dizemos que essas casas ‘respiram'”, afirma Kojičić.
“São construções saudáveis que respiram da mesma forma que nós e têm coberturas que se adaptam ao calor e ao frio”, segundo Damluji. “A forma em que elas são construídas fazem referência, e até proporção, ao corpo humano.”
As estruturas de barro também são incrivelmente resistentes e enfrentam condições climáticas extremas, como ondas de calor, enchentes e secas, que se tornarão mais frequentes e intensas, segundo os cientistas, à medida que as temperaturas continuarem a subir.
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês) alertou em um relatório deste ano que grande parte das cidades e os assentamentos urbanos não está preparada para lidar com eventos climáticos extremos. Para evitar altos danos e proteger as pessoas, é preciso investir em infraestrutura e construções resistentes ao clima, segundo o IPCC.
A arquitetura de terra pode suportar eventos extremos, como terremotos e ventos fortes, “devido à capacidade da sua estrutura de distribuir a carga enfrentada na sua superfície, ao contrário do concreto ou do cimento”, afirma Damluji. Mas a resistência das construções de barro aos terremotos depende da intensidade das ondas sísmicas e do solo onde elas foram construídas, segundo Jerome.
As construções de barro “também são protegidas contra chuvas sazonais e enchentes repentinas, devido ao revestimento externo protetor impermeável utilizado em diversas camadas de barro refinado, cinza e revestimento de cal e reboco”, afirma Damluji.
O impacto das cheias sobre as construções de barro varia, dependendo se elas são construídas em planície de inundação e se possuem fundações fortes, segundo Jerome.
Em 2008, uma grave enchente na região de Hadhramaut, no centro-leste do Iêmen, danificou 5 mil construções de barro, a maior parte delas construída sobre planícies de inundação, com pouca ou nenhuma fundação, afirma ela.
Mas os danos causados pela inundação no vale desértico próximo chamado Wadi Dawan foram muito menores porque, ali, as fundações das casas de barro têm mais de 1,5m de profundidade e são construídas com pedra seca, o que impede que a água suba através do solo, acrescenta Jerome.
Os caminhos do vale são “projetados na forma de diques, que canalizam a água para os canais de irrigação dos bosques de tamareiras. Apenas cerca de 25 construções sofreram impactos em todo o Wadi Dawan”, segundo ela.
As arquitetas indicam que pessoas que desejam viver em uma casa moderna e confortável deveriam considerar a possibilidade de uma casa de barro.
“As construções de barro são extremamente adaptáveis”, afirma Damluji. “Se você quiser derrubar uma parede ou mudar o design, você pode reciclar todos os materiais.”
De forma geral, isso fornece design sustentável e altamente sofisticado, segundo Jerome. “Todas as casas de barro são confortáveis, podem ser totalmente adaptadas e facilmente equipadas com tubulação hidráulica e eletricidade.”
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