- Author, Mariana Sanches
- Role, Da BBC News Brasil em Washington*
Mas, daqui pra frente, o mandato de Milei deverá ficar longe das proezas e da festa que seus apoiadores fizeram em Buenos Aires no dia de sua posse, na avaliação do cientista político Gerardo Munck, professor da Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos Estados Unidos.
Para o cientista político, a governabilidade e o poder de Milei dentro e fora do seu novato partido serão desafios possivelmente maiores do que foram para os ex-presidentes Donald Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro, no Brasil — dois políticos com quem o argentino é frequentemente comparado.
“Trump era mais poderoso, carismático… Ele conquistou seu caminho no partido [republicano] nas primárias. Milei não é uma figura política grande como Trump”, afirmou Munck em entrevista à BBC News Brasil.
“Há uma diferença da Argentina versus o Brasil que torna a situação mais difícil para Milei do que para Bolsonaro. [Na Argentina] Há menos partidos, o sistema partidário não é tão fragmentado.”
Milei derrotou Massa, representante do peronismo e ministro da Economia do agora antecessor governo de Alberto Fernández, com 55% dos votos. O novo presidente argentino chegou ao poder pela coalizão da qual foi um dos fundadores em 2021, La Libertad Avanza (“A Liberdade Avança”, em tradução livre).
Para o professor Munck, porém, foi mais o cansaço do eleitorado com o governo Fernández do que o projeto de governo de Milei que o fez ganhar — uma tendência recente que o cientista político vem observando na América Latina, onde os governos de situação dificilmente conseguem se reeleger.
“A alternância de poder é boa para a democracia. Mas o que está acontecendo não é que o eleitorado está escolhendo novos governos porque acha que eles serão melhores”, aponta o pesquisador.
“Basicamente, podemos dizer que a partir de 2015, e principalmente a partir de 2019, candidatos de oposição estão vencendo muito mais frequentemente do que incumbentes — ou seus candidatos”, diz Munck sobre a América Latina.
“Eu interpreto isso da seguinte maneira: é muito difícil governar na América Latina atualmente.”
Munck nasceu e cresceu na Argentina, mudando-se para o Estados Unidos durante o regime militar do país latino-americano para estudar.
Ele é autor de vários livros sobre política comparada e política na América Latina, como Latin American Politics and Society: A Comparative and Historical Analysis (2022, em coautoria com Juan Pablo Luna) e Measuring Democracy: A Bridge Between Scholarship and Politics (2009).
Confira os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil – Sua pesquisa indica uma tendência na América Latina em que candidatos ligados ao governo da situação frequentemente são derrotados nas eleições, principalmente depois de 2019. O que essa tendência significa?
Gerardo Munck – Uma forma padrão de olhar para os resultados de eleições é ideológica: esquerda ou direita. Lula versus Bolsonaro, Milei versus Massa.
Então, temos uma narrativa na América Latina sobre uma pink tide [onda rosa, ou guinada à esquerda] no início do século, que basicamente termina em 2015, quando partidos de direita começam a vencer.
Recentemente, houve uma série de vitórias da esquerda. Então, uma forma de pensar é: a América Latina está se movendo para a direita ou para a esquerda?
Outra forma é pensar na vitória ou derrota dos incumbentes. Basicamente, podemos dizer que a partir de 2015, e principalmente a partir de 2019, candidatos de oposição estão vencendo muito mais frequentemente do que incumbentes — ou seus candidatos.
E eu interpreto isso da seguinte maneira: é muito difícil governar na América Latina atualmente.
De 2003 a 2014 aproximadamente, houve um boom de commodities que afetou particularmente a América do Sul, Brasil, Argentina… Os governos tiveram muita receita proveniente da tributação das exportações.
Houve muito crescimento, os governos podiam financiar vários programas sociais para fazer a redistribuição de renda. Eram bons tempos econômicos e os governos eram reeleitos com maior frequência.
Agora, passamos do período de boom, tivemos a pandemia… O humor da população se virou contra os governos, tornando mais difícil para incumbentes ter um bom desempenho, satisfazer as expectativas e obter a reeleição.
Mas há algumas exceções de líderes que são muito populares, como [Nayib] Bukele em El Salvador e López Obrador no México.
A alternância de poder é boa para a democracia. Mas o que está acontecendo não é que o eleitorado está escolhendo novos governos porque acha que eles serão melhores.
É mais algo do tipo: “Estamos fartos do governo atual e queremos tentar algo diferente”.
Estamos falando disso bem no contexto em que Milei foi eleito na Argentina com uma grande votação. Não é que essas pessoas amem o que Milei defende: tem mais a ver com o fato de que elas não queriam a continuidade, então elas votaram pela mudança.
BBC News Brasil – Quais são as consequências dessa alternância de poder? Quão desejável seria ter mais reeleições?
Ninguém dizia: “Isso é terrível, ela tem muito poder”.
Ela mostrava fazer um trabalho muito bom, competente, não tinha questões relacionadas à corrupção. Era, em linhas gerais, vista como o tipo de política que se queria.
A Alemanha está provavelmente em uma situação melhor com um sistema em que alguém conquistava as reeleições do que em países da América Latina onde se expulsa governos a cada quatro anos. Quando se tem muita alternância, isso mostra que os políticos não estão sendo bem-sucedidos.
É preciso governos que construam legitimidade para que cidadãos os premiem com a reeleição.
No Brasil, talvez tenha havido uma era de ouro com [Fernando Henrique] Cardoso e Lula antes que se entrasse em um novo ciclo. Ambos foram reeleitos.
Você teve dois blocos, Cardoso e depois Lula. Houve alternância e governos que realmente conseguiram fazer algumas mudanças que foram vistas positivamente. O Brasil estava bem, mas então veio a [Operação] Lava Jato e outros problemas que não eram óbvios, mas estouraram a partir de 2014.
É importante construir partidos que são fortes, institucionalizados e que têm uma conexão com a população. Mas agora, temos muita volatilidade, e isso se manifesta em uma alternância de poder muito rápida.
Se é preciso escolher entre [um cenário como] a Nicarágua e a Venezuela, em que você tem ditadores que estão sendo reeleitos, ou uma alternância de poder muito rápida, eu prefiro esta última opção, porque pelo menos é democrática.
Mas essas são democracias muito frágeis que não estão tendo um bom desempenho.
BBC News Brasil – O que isso nos diz sobre a crise e o futuro da democracia na região?
Munck – Vou te dar uma perspectiva positiva e depois uma mais negativa. Pode soar um pouco contraditório.
Eu acho que a democracia tem muitos pontos fortes na América Latina. Eu questiono algumas interpretações de que haja uma grande recessão democrática, de que as coisas estejam piorando.
Faz 40 anos que a Argentina se tornou uma democracia, o Brasil vai celebrar isto também. No século 20, não houve períodos democráticos assim para a maior parte dos países da região. Você teve democracias que surgiram nos anos 1980, 1990, e que assim permaneceram.
No Brasil, as pessoas ficaram preocupadas com Bolsonaro, e basicamente as forças de oposição se juntaram em uma frente e ganharam a eleição. Então vemos o sistema reagindo aos desafios e perdurando.
Se você olha historicamente, isso é positivo. Se olha globalmente, não tem nenhuma região fora da Europa com um grande número de países nessa situação.
Mesmo que tenha havido muita disputa na Argentina, o candidato derrotado, Massa, foi à TV reconhecer a derrota. Então esse é um processo pacífico de lidar com assuntos muito divisivos. As pessoas não estão pensando em formas alternativas de chegar ao poder, isso é muito importante.
Os pontos negativos…. As pessoas falam em crise de representatividade. Há uma falta de confiança nos políticos, nas instituições democráticas, no Congresso, por exemplo.
Os cidadãos sentem que os políticos estão desconectados, distantes dos problemas comuns.
Isso abre caminho para os outsiders [candidatos com pouca ou nenhuma experiência na política]. Você vai ter pessoas como Bolsonaro e Milei chegando ao poder, porque eles expressam a frustração dos cidadãos.
Bolsonaro e Milei falaram dos regimes militares no Brasil e na Argentina de uma forma bem positiva. Bolsonaro foi um pouco mais longe que Milei no sentido de dizer que o regime foi algo bom; Milei falou mais na linha de que não era tão ruim quanto as pessoas falam.
Na cultura democrática, parece haver uma abertura para possibilidades que são preocupantes sim. Quanto mais você tiver uma crise de representatividade, maior probabilidade tem de que líderes assim ascendam.
BBC News Brasil – Saindo um pouco da questão da reeleição, e pensando mais em esquerda e direita. Você concorda que a América Latina, e as Américas em geral, tenham mesmo ondas de ideologias ascendendo ao poder na mesma época? Se sim, o que a vitória de Milei na Argentina representa?
Munck – Se você pegar os países grandes em população, Brasil, México… a América Latina está à esquerda.
Existe a questão do populismo de direita, da extrema direita, digamos. Isso está virando uma opção padrão em diferentes países.
Você tem isso no Chile agora, um candidato da direita tradicional e um candidato [de um outro perfil da direita]. Isso está se mostrando para a próxima eleição: Evelyn Matthei parece uma possibilidade, e você tem também José Kast, que é uma figura mais ligada ao Milei.
Isso está se tornando uma fórmula em como fazer campanhas eleitorais.
Talvez isso tenha começado com Bolsonaro… Trump basicamente abriu isso [essa tendência] como uma opção clara. E vemos isso em vários países.
É bom ter partidos na esquerda, centro, direita. Mas desejamos uma esquerda democrática, uma direita democrática, certo?
Entretando, na América Latina, temos problemas com os dois lados do espectro político. Muitos na esquerda não estão dispostos a dizer que a Venezuela é uma ditadura. E muitos na direita estão dando desculpas para candidatos que estão reabrindo assuntos relativos a ditaduras militares.
BBC News Brasil – Tanto no Brasil quanto na Argentina, partidos da direita [tradicional] acabaram apoiando a direita dita mais extrema. O que isso demonstra sobre esses partidos de direita, que em geral sempre foram considerados democráticos desde o fim dos regimes militares?
Munck – Milei poderia não ter vencido essa eleição se Macri [Mauricio Macri, ex-presidente da Argentina] não tivesse se colocado tão forte e rapidamente em favor de Milei. Isso fez com que um bom número de líderes e eleitores apoiasse Milei. Isso é bom porque torna Milei mais fraco do que se tivesse ganho por si mesmo.
Ele deve totalmente a sua vitória ao apoio da direita e não tem pessoas o suficiente para compor o governo, e nem tem muito apoio no Congresso.
Então ele vai ter que trabalhar com outros partidos que acho que são mais institucionalizados. Isso provavelmente vai colocar limites no que ele pode fazer.
BBC News Brasil – Algo do tipo era dito também sobre os republicanos moderarem Trump, assim como os militares e a direita em relação a Bolsonaro. Mas tanto Trump como Bolsonaro conseguiram terminar com um grande controle [do governo e de seus partidos]. Por que deveríamos esperar que na Argentina Macri seja bem-sucedido em moderar Milei, e não que Milei acabe por dominar Macri?
Munck – Trump, quando ganhou em 2016, tinha maioria nas duas casas [legislativas]. Ele perdeu essa maioria dois anos depois. E ele essencialmente tinha dominado o partido republicano. Foi aí que o partido não fez seu trabalho de colocar limites para Trump.
Trump era mais poderoso, carismático… Ele conquistou seu caminho no partido nas primárias. Milei não é uma figura política grande como Trump.
Milei só disse: eu tenho um novo partido de dois anos de idade e eu sou o líder desse partido. Ele não conquistou o Juntos por El Cambio [a coalização de Macri].
Milei é muito mais fraco [que Trump]. Ele não tem a maioria nem fazendo aliança com aqueles ligados a Macri.
Os peronistas farão uma oposição muito forte. E há muitos parlamentares que não concordam com os peronistas, mas concordam que é preciso colocar limites no poder de Milei.
Há uma diferença da Argentina versus o Brasil que torna a situação mais difícil para Milei do que era para Bolsonaro. [Na Argentina] Há menos partidos, o sistema partidário não é tão fragmentado. Você não pode comprar o apoio de todos eles.
Lá, há mais partidos institucionalizados, mais antigos, mais estruturados. Você pode comprar o apoio de alguns líderes, isso acontece em todo país. Mas eu não acho que a oposição na Argentina vai facilitar o caminho de Milei.
Milei e seus aliados estão dizendo coisas como que querem cancelar o direito ao aborto. Ele não vai conseguir apoio para isso.
Em algumas coisas, assuntos econômicos, que talvez sejam razoáveis, ele vai conseguir maioria. Mas em outras coisas, eu simplesmente não consigo ver o país revertendo algumas coisas por causa de Milei.
Muitas pessoas estão preocupadas com a vice-presidente [Victoria Villarruel], que vem de uma família de militares. É um pouco como Bolsonaro: ela quer trazer militares para diversas funções, mais para a vida civil. Isso certamente é um motivo para preocupação.
Mas acho que uma forma de pensar sobre Milei é: ele é mais próximo a Trump ou ao líder peruano Pedro Castillo [ex-presidente do Peru preso em dezembro de 2022 após tentar dissolver o Congresso], que basicamente perdeu horas na prisão e nunca conseguiu realizar coisas?
Vejo Milei mais próximo do que é Pedro Castillo do que Trump em termos da probabilidade de sucesso.
Nesse cenário semelhante ao do Peru, o presidente faz tantos inimigos que ele não aprende que será chutado para fora do poder. Pode ser por meio de protestos, de impeachment, enfim, há várias formas.
Então, em vez de destruir as instituições, uma outra possibilidade é que ele [Milei] perca poder.
Ele vai conseguir conquistar apoio no Congresso para aprovar leis? A questão da governabilidade está em debate.
Algumas pessoas que ele está nomeando para cargos estavam na TV falando coisas malucas durante a campanha. Então não são profissionais que sabem o que estão fazendo.
Esse é o risco dos outsiders: você ganha amadores. Você ganha pessoas que não sabem como fazer algo tão complicado quanto conduzir um governo.
*Colaborou na redação do texto Mariana Alvim, da BBC News Brasil em São Paulo.
Fonte: BBC
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