- Author, Rachel Nuwer
- Role, BBC Future
Cerca de 13 milhões de pessoas sofrem de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), somente nos Estados Unidos.
As terapias existentes oferecem alívio apenas para uma parcela dos pacientes. E novos tratamentos são necessários com urgência, segundo os psiquiatras que enfrentam o problema em grande escala.
Com esta situação, foi nítida a decepção quando um dos comitês consultivos da Administração de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês), no início deste mês, votou contra uma terapia que muitos esperavam que pudesse oferecer um novo tratamento contra TEPT – o primeiro em 25 anos.
Desde então, diversos especialistas que estudam as substâncias psicodélicas vêm se manifestando em apoio à terapia assistida por MDMA para o tratamento de TEPT. Eles criticam seriamente as recomendações contrárias do Comitê Consultivo sobre Substâncias Psicofarmacológicas da FDA.
Mas alguns desses pesquisadores mantêm o otimismo de que o tratamento venha a ser aprovado quando a FDA publicar sua decisão, em agosto deste ano.
O MDMA, também conhecido como ecstasy, está incluído no Anexo 1 de substâncias controladas nos Estados Unidos. Por isso, seu uso fora do setor de pesquisa é proibido no país.
Ainda assim, cada vez mais estudos indicam que, quando utilizado em conjunto com psicoterapia, o MDMA apresenta potencial de tratamento de TEPT e outras condições de saúde mental.
Antes da reunião do comitê da FDA, a aprovação da terapia para TEPT assistida por MDMA era tida como provável, segundo o professor de psiquiatria Sandeep Nayak, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Ele pesquisa os psicodélicos como tratamentos para o uso de substâncias e distúrbios do humor.
Cerca de dois terços das pessoas que receberam três sessões de MDMA e psicoterapia tradicional deixaram de receber diagnóstico de TEPT ao final dos testes clínicos de Fase 3.
Este resultado corresponde a “quase o dobro das medicações existentes”, segundo a neurocientista Gül Dölen, da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. Ela pesquisa os mecanismos de ação dos psicodélicos para atingir efeitos terapêuticos.
“E há mais, [o tratamento] trouxe melhorias duradouras para os pacientes, por pelo menos seis meses”, afirma a pesquisadora.
Cerca de metade das pessoas que se inscrevem nos tratamentos padrão-ouro contra TEPT atuais abandona o tratamento – o que é “um absurdo” para a psiquiatra Loree Sutton, general-de-brigada aposentada do Exército dos Estados Unidos.
Ela defende que novos tratamentos são essenciais. “Precisamos fazer melhor.”
“Mesmo se houver riscos, precisamos descobrir, porque não podemos prescindir deste tratamento”, acrescenta a professora de psiquiatria e neurociências Rachel Yehuda, da Escola de Medicina Icahn em Mount Sinai, nos Estados Unidos.
Ela realizou estudos sobre os efeitos da terapia de TEPT assistida por MDMA. “Sem ela, simplesmente deixamos muitas pessoas sofrendo sem necessidade e isto não está certo.”
No momento, a FDA está analisando um pedido da farmacêutica Lykos Therapeutics, sediada na Califórnia (Estados Unidos), para o uso de cápsulas de MDMA, administradas em conjunto com psicoterapia, no tratamento de TEPT. Mas, durante a recente reunião consultiva da FDA, os membros do comitê indicaram supostas falhas no projeto do estudo e na coleta de dados.
Depois de nove horas de audiência, os membros do comitê aprovaram, por 9 votos a 2, que os dados disponíveis não demonstram “que a substância é eficaz” contra TEPT. E, por 10 a 1, eles concluíram que os benefícios do MDMA não superam os riscos.
A votação demonstrou algumas das complexidades enfrentadas pelos órgãos reguladores para avaliar terapias com substâncias psicodélicas.
Os críticos destacam que apenas um dos membros do comitê consultivo da FDA tinha experiência com psicodélicos. Eles defendem que o comitê pode ter entendido mal alguns aspectos do tratamento.
“Existem muitas questões e ângulos diferentes sobre este completo desastre, como eu realmente gostaria de definir [a reunião do comitê]”, afirma o psiquiatra Franklin King, do Hospital Geral de Massachusetts e da Faculdade de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos. Ele supervisiona um estudo de terapia assistida por psilocibina para a síndrome do intestino irritável e outro de terapia assistida por MDMA para combater fibromialgia.
“A maior questão é que os membros do comitê consultivo realmente demonstraram meio que uma assombrosa falta de conhecimento do assunto”, defende o psiquiatra.
O painel passou algum tempo, por exemplo, debatendo se deveria votar sobre a eficácia e segurança da “substância” ou do modelo de terapia assistida pela substância pesquisada pelos testes clínicos.
Mas a exclusão da terapia da avaliação de eficácia “não faz sentido, cientificamente falando”, segundo Eduardo Schenberg, diretor-presidente do Instituto Phaneros – um grupo de terapia e pesquisa de psicodélicos de São Paulo, que pesquisou a psicoterapia assistida por MDMA para o tratamento de vítimas de abuso sexual com alto grau de TEPT.
A BBC entrou em contato com os 11 membros do comitê, questionando se eles teriam alguma resposta às críticas levantadas pelos diversos pesquisadores mencionados nesta reportagem.
Uma das participantes respondeu. Kim Witczak é defensora da segurança das substâncias e representante dos consumidores no comitê.
“Este é um território novo e precisa ser trilhado com cuidado”, escreveu ela por e-mail. “O momento de ter cautela é agora, não mais tarde.”
A votação do comitê não tem valor compulsório. Mas ela poderá influenciar a decisão da FDA sobre a aprovação do tratamento, que deve ser anunciada até o dia 11 de agosto.
Historicamente, a FDA rejeitou a aprovação de 67% das substâncias que receberam votação negativa nos seus comitês consultivos.
Um porta-voz da FDA recusou um pedido de entrevista, mencionando que o pedido ainda está pendente. Mas relacionamos abaixo as principais áreas de debate levantadas pelo comitê e por que muitos especialistas acreditam que o tratamento ainda pode ser aprovado.
O problema do teste cego
Desde o início da reunião, membros do comitê expressaram seu receio de confiar nos resultados positivos dos testes.
Uma questão importante foi a impossibilidade funcional de realizar um teste cego. A capacidade dos participantes de descobrir se receberam placebo ou a substância ativa tem potencial de influenciar os resultados observados nos dados.
Mais de 90% das pessoas no grupo de MDMA e 75% do grupo de placebo adivinharam corretamente seu grupo de tratamento no segundo teste de Fase 3.
A impossibilidade funcional de realizar o teste cego é objeto de debate na literatura científica há décadas, segundo Sutton. Ela ocorre principalmente em intervenções que produzem efeitos fortes, mas é especialmente pronunciada nos estudos de substâncias com efeitos psicoativos.
“Todos nós temos dificuldades com essas questões de projeto”, explica a professora de psiquiatria e neurociências do comportamento Harriet de Wit, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Ela realizou extensas pesquisas sobre MDMA e outras substâncias psicoativas e afirma que essas questões “são insolúveis”.
A FDA está ciente das dificuldades e complexidades da terapia assistida por MDMA, segundo a executiva-chefe da Lykos Therapeutics, Amy Emerson.
Ela conta que a agência vem trabalhando em projetos de testes há cerca de 20 anos, com sua empresa e com a organização sem fins lucrativos que deu origem à Lykos, a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês).
“É quase como se o projeto de estudo fosse uma total surpresa, mas, na verdade, a FDA aprovou este projeto”, afirma a professora de psiquiatria Natalie Gukasyan, do Centro Médico Irving da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. As pesquisas da professora se concentram na compreensão e otimização da segurança e eficácia das terapias assistidas por psicodélicos.
Segundo Nayak, a própria FDA declarou que o teste pode ser bem controlado, mesmo quando não for cego. No caso da terapia assistida por MDMA, “não acho que o teste não cego isoladamente possa explicar a magnitude e a durabilidade” das conclusões. Na sua opinião, o tratamento parece “eficaz”.
Mas, durante a reunião, o vice-diretor de pesquisa do Centro Nacional de TEPT do Departamento de Assuntos dos Veteranos dos Estados Unidos – que também é professor de psiquiatria e cirurgia da Escola de Medicina Geisel, em Dartmouth (EUA) – Paul Holtzheimer declarou que “não está convencido com a eficácia aguda do tratamento”, conforme demonstrado pelos dados relatados nos testes de Fase 3.
Para ele, “a diferença entre o grupo ativo e o de placebo é estatisticamente significativa, segundo as análises [dos autores], mas relativamente pequena, tanto que acho que o viés de expectativa não pode ser desconsiderado como representando potencialmente grande parte daquela diferença”.
Outra questão levantada pelo comitê foi o fato de que 40% dos participantes haviam tomado MDMA anteriormente – a maioria, na ordem de duas a quatro vezes nos últimos 10 anos, segundo Emerson.
O comitê expressou preocupações de que as pessoas que haviam buscado a droga ilegal pudessem ter uma visão mais favorável da sua inclusão no teste, o que poderia induzir viés positivo.
Mas os dados relatados nos estudos não revelaram diferenças estatísticas entre os participantes que haviam ou não experimentado MDMA anteriormente, segundo Emerson. Ela defende que as pessoas que haviam experimentado MDMA fora do ambiente médico legal também são uma “parte normal” da população e, por isso, “pareceu válido incluir aquele grupo”.
Pontos fortes e riscos
As evidências indicam que as terapias assistidas por MDMA e por outras substâncias psicodélicas trabalham reabrindo períodos críticos – janelas finitas de maleabilidade, quando o cérebro está pronto para aprender coisas novas.
Dölen descobriu que esses períodos críticos só são reabertos quando a substância psicodélica é administrada em um ambiente específico. E, no caso do MDMA para o tratamento de TEPT, este ambiente é a psicoterapia.
Isso explicaria por que as pessoas que tomam MDMA em raves normalmente não relatam recuperação espontânea do TEPT, segundo Dölen. E, provavelmente, também explica por que os participantes dos testes clínicos experimentaram melhorias tão “marcantes”: eles estão literalmente renovando seus cérebros.
Mas uma das questões formuladas pelo comitê consultivo foi por que o MDMA não foi administrado isoladamente aos pacientes, sem terapia. E Dölen acredita que esta questão pode revelar falta de conhecimento científico atualizado sobre o modo de ação do tratamento.
Para ela, “sem ter o mecanismo biológico como base, acho que o comitê consultivo se sentiu um pouco inseguro para acreditar nos dados dos testes clínicos”.
Embora a psicoterapia não faça parte das tarefas regulatórias da FDA, ela foi objeto de muita discussão na reunião do comitê consultivo.
O psiquiatra Walter Dunn, do Sistema de Saúde da Administração dos Veteranos da Grande Los Angeles e da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos, é o membro do comitê da FDA que estudou as substâncias psicodélicas. Ele declarou na reunião que o uso de psicoterapia é “o maior ponto forte” e também “o maior risco” do tratamento.
Diversos membros do comitê levantaram preocupações pelo fato de que a psicoterapia tradicional não foi padronizada entre os diversos locais de realização dos testes clínicos.
A Lykos Therapeutics insiste que tomou “medidas significativas” para garantir a consistência dos testes. Mas, como destaca King, a psicoterapia tradicional em geral não é regulada em nível estadual ou federal nos Estados Unidos.
“Existem organizações profissionais que definem orientações, mas você não é proibido de se afastar das normas, desde que não faça nada antiético”, explica o psiquiatra.
King acrescenta que, se a padronização da psicoterapia tradicional for “um empecilho, ela irá afetar qualquer psicodélico”.
Também foi levantado o potencial de abuso dos pacientes pelos terapeutas de MDMA. De fato, um participante do teste clínico de Fase 2 sofreu este tipo de violação, que foi relatada pela Lykos para a FDA, para o organismo Health Canada e para o Comitê de Análise Intuitiva do teste.
“É absolutamente inaceitável que alguém tenha sido prejudicado e que tenha havido má conduta sexual”, declarou Emerson, da Lykos.
Mas, embora seja uma questão “muito séria” e “muito infeliz”, a falha de conduta do terapeuta recai sobre os reguladores dos profissionais, ressalta o professor emérito de psiquiatria e dependência Wim van den Brink, da Universidade de Amsterdã, na Holanda. E, para ele, não deveria ser motivo para suspender a aprovação de um tratamento eficaz.
Gukasyan opina que, nos testes futuros de terapia assistida por psicodélicos, pode ser preferível que as companhias farmacêuticas trabalhem com sociedades de profissionais, para treinar e avaliar antecipadamente os terapeutas, sem que elas próprias supervisionem esta parte do processo.
Falhas e acusações
O comitê também questionou se as pessoas que receberem MDMA em ambiente clínico poderiam desenvolver dependência posteriormente. Mas Van den Brink afirma que este receio não tem bases factuais.
O principal efeito do MDMA é agir sobre a serotonina, com um efeito significativamente menor sobre o sistema dopaminérgico do cérebro e pouco efeito, se houver, sobre o sistema opioide. E as pessoas que tomam MDMA com muita frequência também desenvolvem tolerância rapidamente, devido ao esgotamento da serotonina.
“Aqui na Holanda, as pessoas usam ecstasy há 40 anos e não encontramos ninguém em tratamento de dependência”, explica van den Brink. “A maioria dos usuários toma uma ou duas pílulas de MDMA, uma ou duas vezes por ano.”
Foram relatados alguns efeitos colaterais da psicoterapia assistida por MDMA, mas eles foram considerados “em grande parte transitórios, com severidade suave ou moderada”, segundo uma análise sistemática de estudos de testes clínicos.
A maioria dos efeitos relatados consistiu em visão turva, rigidez muscular, redução do apetite e pupilas dilatadas.
No teste de Fase 3, três participantes sofreram graves ideias suicidas durante o tratamento, mas eles foram divididos entre os que receberam MDMA e o placebo. E sete participantes também sofreram problemas cardiovasculares, como batimentos cardíacos mais rápidos. Isso sugere que pacientes mais idosos ou com problemas cardíacos conhecidos podem precisar consultar o cardiologista antes de passar pelo tratamento.
Os membros do comitê também destacaram a falta de certos dados coletados pela Lykos, como eletrocardiogramas e a função hepática, além da sensação de euforia pelos participantes. Este fato levou à caracterização dos testes clínicos como “falhos”.
Mas, segundo Gukasyan, “todo estudo terá limitações, de forma que, basicamente, todo estudo é falho”, se formos seguir a mesma lógica.
Diversos membros do público também alegaram, em testemunhos por vídeo ou por escrito, que os dados dos testes clínicos foram adulterados para parecerem mais positivos e excluir eventos adversos.
“Eu fiquei tão preocupado quanto qualquer outra pessoa ao ouvir esses relatos, que precisarão ser avaliados objetivamente”, declarou Sutton. “Mas não tenho motivos para acreditar que tenha havido prevaricação sistêmica.”
“Apesar de alguns ruídos muito fortes, ainda não temos evidências confiáveis de que tenha ocorrido má conduta na pesquisa de Fase 3”, acrescenta King. Mas ele receia que o “ar de controvérsia” pode ter influenciado alguns membros do comitê.
A Lykos leva as alegações de má conduta “muito a sério”, segundo Emerson, e investiga todas elas. E acrescenta que a FDA também está conduzindo seu próprio processo de inspeção rotineiro para validar sua visão dos dados.
O que acontece agora?
Apesar dos resultados da reunião, os especialistas ouvidos pela BBC acreditam que ainda existe a possibilidade de que a FDA conceda a aprovação em agosto. Amy Emerson, por exemplo, mantém a esperança.
“O que precisávamos fazer antes [da reunião] são as mesmas coisas que precisamos fazer agora, elas são apenas um pouco mais difíceis e mais públicas”, explica ela. “Realmente acreditamos na capacidade da FDA de avaliar as informações e dar continuidade ao processo.”
Considerando o longo envolvimento da FDA com o projeto de testes, a força dos dados e tudo o que já se conhece sobre o MDMA, negar a aprovação “pareceria um tanto ridículo para a FDA”, segundo Wim van den Brink. “Não acho que a FDA irá seguir a orientação [do comitê].”
Uma decisão negativa da FDA provavelmente também irá afetar outros estudos sobre terapias assistidas por psicodélicos que se encontram atualmente em processo, segundo Natalie Gukasyan.
“Embora esta seja uma droga de uma empresa e outras tenham procedido de forma diferente com seus testes clínicos, algumas das preocupações levantadas durante a reunião do conselho consultivo provavelmente afetarão quase todos os outros [testes com] psicodélicos – especialmente o componente de psicoterapia e as preocupações com o estudo cego”, explica ela.
“É importante que os reguladores atinjam clareza e consenso sobre a forma em que eles entendem e avaliam o avanço destas questões.”
A rejeição da terapia assistida por MDMA também enviaria “uma mensagem muito forte” de que os testes com psicodélicos devem se concentrar nos efeitos da substância isoladamente, não na combinação de substância e terapia, segundo Franklin King – e esta abordagem “frustraria milhões de pessoas”.
“Todo este episódio serve apenas para reforçar a ideia de que toda mudança de paradigma simplesmente não se enquadra no nosso sistema regulatório”, segundo ele.
Se a agência realmente decidir negar a aprovação, van den Brink acredita que a Holanda poderá superar os Estados Unidos e se tornar o primeiro país a implantar a terapia assistida por MDMA controlada em larga escala.
Ele destaca que, embora a Austrália tenha reconhecido o MDMA como medicamento em julho de 2023, seu programa de acesso especial exige autorizações complexas, individuais para cada paciente, e apenas alguns deles receberam tratamento.
Dias depois da decisão do comitê da FDA, um quadro de especialistas holandeses publicou um plano de um “estudo naturalista” que, se aprovado, forneceria terapia assistida por MDMA para 400 a 500 pessoas com TEPT dentro dos próximos cinco anos.
Como diz van den Brink, “não deveríamos abandonar pacientes com problemas muito sérios porque um estudo não é perfeito”.
Fonte: BBC
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