- Michael Bristow
- BBC World Service
Geng He sofreu perseguições, vigilância e foi separada de sua família sem ter cometido crime algum. Sua história revela o lado sombrio da China sob Xi Jinping, que acaba de garantir um terceiro mandato como líder do país.
Geng He lembra exatamente onde ela estava quando percebeu o poder avassalador do Estado chinês. Ela estava em um salão de beleza em Pequim, onde levou sua filha, Grace, para cortar o cabelo.
De repente, dezenas de pessoas invadiram o locaram e disseram à mãe e à filha para irem com elas. Era a polícia secreta.
A princípio, Geng He não entendeu o que estava acontecendo – ou quem eram as pessoas. Ela perguntou se eles poderiam terminar o corte de cabelo primeiro, mas eles não deixaram. Lá fora havia mais oficiais na rua; outros estavam esperando por elas em seu prédio., diz ela.
O apartamento da família foi revistado e Geng He foi informada de que seu marido havia sido preso enquanto visitava sua irmã na província de Shandong, algumas horas ao sul da capital. Era 2006 e o início do fim de sua vida em família.
O marido de Geng He, Gao Zhisheng, era advogado. Ele já havia sido homenageado pelo governo comunista, mas depois começou a defender pessoas que as autoridades não queriam defender.
Isso incluía seguidores do movimento espiritual proibido, Falun Gong, cristãos chineses acusados de pregação não autorizada e pessoas que lutavam contra apropriações de terras por autoridades locais.
Após sua prisão, Gao Zhisheng passou os próximos anos na cadeia – acusado de incitar a subversão – ou em prisão domiciliar.
Para a prisão domiciliar, os policiais construíram uma delegacia especial no bloco de apartamentos do casal para que pudessem monitorá-los com mais facilidade 24 horas por dia.
“Ocasionalmente, eu abria as cortinas só para ver quantos carros de polícia havia lá embaixo”, diz Geng He, e meu marido gritava de volta: ‘O que você está fazendo? Por que dar a eles a satisfação de olhar para eles?'”
A situação tornou-se cada vez mais intolerável. As autoridades forçaram o casal a se mudar, e então eles tiveram dificuldade em encontrar uma escola disposta a aceitar Grace.
A situação acabou forçando Geng He a fazer a terrível escolha de fugir da China com Grace, então com 16 anos, e Peter, seu filho de 5 anos – mas deixando o marido para trás.
“Eu me senti mal porque tive que escolher entre meu marido e meus filhos – e escolhi meus filhos”, disse ela, incapaz de conter as lágrimas.
Os três fugiram em 2009 com a ajuda de ativistas de direitos humanos. Geng He e seu marido já haviam combinado que deveriam tentar fugir, mas a partida foi tão apressada que eles partiram sem avisá-lo.
Geng He não quis revelar os detalhes de sua jornada para a liberdade porque isso poderia comprometer outras pessoas que precisam seguir o mesmo caminho. Mas a viagem incluiu um período passado no bagageiro de um ônibus.
A família foi levada da China para a Tailândia. Quando estavam lá, os Estados Unidos concordaram em dar-lhes asilo.
A vida nos Estados Unidos foi inicialmente difícil. Geng He teve dificuldade – e ainda tem – com a língua diferente. Ela se preocupa constantemente com seus filhos.
Compreensivelmente, foi muito difícil para eles fugir sem o pai. Grace precisou de tratamento hospitalar para problemas de saúde mental.
Treze anos depois, as crianças finalmente aceitaram seu passado e construíram suas próprias vidas na América. Grace, agora com 28 anos, acabou de se casar e Peter, 19, foi aceito em uma universidade para estudar medicina.
“Ele está otimista e feliz todos os dias. Ele estuda e tem um emprego. Tudo muito promissor”, disse a mãe orgulhosa.
Tortura, desaparecimento e suicídios
Desde que sua família fugiu para os Estados Unidos, Gao Zhisheng sofreu terrivelmente dentro e fora da prisão, onde disse ter sido torturado. Quando terminou sua sentença em 2014, sua saúde física e mental era precária — seus dentes estavam literalmente caindo.
No final de sua sentença, Gao Zhisheng foi novamente colocado em prisão domiciliar em sua cidade natal na província de Shaanxi, no norte, apesar de supostamente ser um homem livre.
É um exemplo do que um especialista americano em direito chinês chamou de “libertação sem liberação”.
Geng He às vezes telefonava para o marido para saber como ele estava. Então, cinco anos atrás, ela falou com ele pela última vez.
“Não me lembro exatamente sobre o que conversamos porque parecia apenas mais uma ligação, mas é claro que perguntei como ele estava”, disse ela. “Seu humor estava bom. Ele disse que estava bem. Era assim que ele era, sempre confiante e positivo.”
Quando ela ligou de volta, alguns dias depois, não houve resposta. Ela não ouviu falar de seu marido desde então – e não sabe se ele está vivo ou morto.
Mas ela teme o pior.
“Tenho a sensação de pesadelo de que o partido comunista usará a covid como desculpa para fazê-lo desaparecer para sempre.”
Ela teme que as autoridades chinesas anunciem que seu marido morreu da doença, uma morte natural que os isentaria de qualquer responsabilidade.
A embaixada chinesa em Londres não respondeu às perguntas da BBC sobre Gao Zhisheng.
Não foi apenas o próprio advogado que sofreu. A campanha contra ele envolveu também o resto de sua família que ainda vive na China.
Sua irmã, em cuja casa ele foi detido pela primeira vez, posteriormente sofreu de depressão e tirou a própria vida há dois anos.
O cunhado de Geng He sofreu um destino semelhante. Ele contraiu uma doença grave, mas não conseguiu tratamento médico adequado porque a polícia havia roubado as carteiras de identidade dos parentes de Gao Zhisheng. Ele também se suicidou.
Um estranho no escuro
Alguns anos atrás, um estranho apareceu de repente no jardim da casa de Geng He, em São Francisco. Foi difícil enxergar bem no escuro, mas temendo que pudesse ser alguém ligado às autoridades chinesas, ela pegou a arma que guardava em casa e disparou um tiro de advertência. Teve o efeito desejado – o estranho fugiu.
Mas Geng He não se deixou abalar. Com a vida dos filhos encaminhada, ela voltou sua atenção para o marido, cuja situação gradualmente foi perdendo atenção do público tanto na China quanto no exterior.
Ela se dedicou a tentar descobrir onde ele está e a fazer campanha para garantir que o nome dele nunca desapareça completamente. Em agosto, para marcar o quinto aniversário de seu desaparecimento, ela projetou uma imagem do rosto de Gao Zhisheng do lado de fora do consulado chinês em Los Angeles e, em setembro, revelou uma escultura de seu rosto feita com mais de 7 mil cartuchos de bala vazios.
Ela contratou advogados em Pequim para ver se eles conseguem rastrear seu marido, mas nenhum departamento do governo libera qualquer informação.
Geng He é uma das dezenas de chineses espalhados pela América do Norte que estão tentando libertar seus entes queridos na China.
Saber quantos ativistas estão presos na China é difícil, pois Pequim nem admite ter presos políticos.
Geng He afirma que nunca entendeu realmente os perigos do trabalho de seu marido até se mudar para os Estados Unidos. Ela agora se sente mais próxima dele em alguns aspectos, mesmo que eles estejam separados – possivelmente pelo resto de suas vidas.
“Agora sinto que sou como uma colega que luta lado a lado com ele. Deu um novo sentido à minha vida”, diz ela.
Contra uma força tão poderosa como o Partido Comunista Chinês, a campanha de Geng He parece fadada ao fracasso. Mas ela está determinada a continuar.
“Minha própria família sofreu muito, mas sinto que adquiri uma família ainda maior”, reflete ela.”Conheci tantas pessoas que estão trabalhando duro por uma China melhor.”
A culpa de deixar o marido para trás com um destino desconhecido provavelmente nunca desaparecerá. Mas no sucesso de seus filhos, seus novos amigos e a crença em um futuro melhor, pode haver um vislumbre de esperança.
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