• Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

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Jó, pelo pintor francês Leon Bonnat

A história de Jó, um homem justo, fiel e paciente, está presente na tradição oral de povos do Oriente Médio desde cerca de 4 mil anos atrás. Em algum momento entre o século 6 e 5 antes de Cristo, contudo, esta história foi redigida em hebraico, na versão que está presente até hoje no Antigo Testamento da Bíblia.

Entre os especialistas, é consenso que se trata de um conteúdo mítico, uma fábula que pretende deixar uma mensagem. E, curiosamente, essa mensagem bíblica é justamente o oposto do que defende a teologia da prosperidade, ideia encampada por muitas igrejas evangélicas neopentecostais hoje.

Porque Jó foi da riqueza à pobreza e permaneceu fiel a Deus. A narrativa, portanto, ilustra o problema da teodiceia — emprestando o conceito do filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646-1716): justifica a justiça de Deus em um contexto de humanidade que padece o sofrimento.

“Jó não pode ser considerado um personagem histórico e, sim, uma personificação teológica”, comenta o teólogo, cientista da religião e historiador Luiz Alexandre Solano Rossi, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), do Centro Universitário Internacional (UNINTER) e autor de, entre outros livros, ‘O Origem do Sofrimento do Pobre: Teologia e Antiteologia no Livro de Jó’.

Rossi lembra que a experiência de Jó serve “como uma referência para mostrar como um tipo de teologia pode ser relacionada facilmente a esta prática da recompensa”.

“Essa teologia é costumeiramente denominada de teologia da retribuição. Para a teologia da retribuição, Deus concede a riqueza para alguns e a pobreza para todos os outros”, explica ele.

“A partir dessa premissa, os ricos são ricos e continuarão ricos porque eles são justos, enquanto que os pobres são pobres e possivelmente continuarão sendo pobres porque eles não confiam na justiça de Deus, ou, ainda pior, porque eles são pecadores”, prossegue o teólogo.

Para Rossi, Jó, “por meio de seus discursos”, busca “dar uma resposta às questões fundamentais presentes no texto bíblico considerando este tipo de teologia”.

“A experiência de Jó proclama desde o seu início que não há relação alguma entre pecado e sofrimento e entre virtude e recompensa”, sintetiza.

Para o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a leitura de Jó “é algo complexa” que ressoa sociológica e religiosamente até os dias atuais.

“Temos uma corrente muito presente no movimento pentecostal que a é a teologia da prosperidade, a ideia do ‘seja fiel a Deus e seja rico'”, comenta ele. “É como se fosse automático: se você for fiel a Deus, ele é obrigado a abençoá-lo”, diz o teólogo.

“O Livro de Jó vai por uma direção contrária: Jó foi fiel a Deus a vida toda, Deus o abençoava. Mas quando Deus foi desafiado por Satanás, ele tirou tudo de Jó”, resume Moraes.

“Talvez essa seja a grande lição da história: você continuar fiel a Deus mesmo passando por dificuldades. Porque ter fé enquanto tudo vai bem é lindo e maravilhoso. Mostrar fé e fidelidade a Deus, mostrar que ainda continua crendo na justiça e na soberania de Deus mesmo em meio a dificuldades, talvez essa seja a questão”, acrescenta.

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Reprodução da capa do livro de pesquisador Luiz Alexandre Solano Rossi

A história de Jó

Segundo o relato, Jó teria sido um homem que vivia na terra de Uz, um local nunca identificado ao certo. Ele seria casado com uma mulher árabe — cujo nome não é mencionado. Era um homem rico, dono de 7 mil ovelhas, 3 mil camelos, 500 juntas de bois, 500 jumentas.

Ele teria sido pai de sete filhos e três filhas. E senhor de muitos servos. No texto bíblico, é dito que “este homem era maior do que todos os do oriente”. E um “homem íntegro, reto e temente a Deus”, que “desviava-se do mal”.

Literariamente, o entendimento mais comum é de que o livro seja a história tradicional original com um grande enxerto poético.

“As diferenças de vocabulário, de estilo, de tradição cultural e até mesmo de ideias religiosas, de teologias distintas, mostram que essa obra, na verdade, foi composta por muito tempo”, aponta Moraes.

“Não é uma obra produzida em um único momento histórico. É uma colcha de retalhos. E isso já traz evidência de que o texto foi ressignificado ao longo do tempo, pois não é produto de um único tempo”, acrescenta.

“A história de Jó é de um drama universal. Uma história conhecida no Oriente Médio por volta de 2 mil anos antes de Cristo, muito provavelmente contada nos mais variados lugares, uma história que encampava problemas universais como o problema do mal, do sofrimento, da dor, do relacionamento do homem com Deus, da riqueza e da pobreza”, enumera o professor.

Moraes explica que, provavelmente por volta dos séculos 11 ou 10 antes de Cristo, essa história foi incorporada pelos hebreus e passou a ser recontada pelos israelitas, ainda de maneira oral.

“O cerne da história está nos capítulos 1, 2 e 42 do que a gente tem hoje como Livro de Jó”, diz.

Ou seja: essa história mais fundamental, digamos assim, é o que está nos dois primeiros e no último capítulo do relato bíblico depois canonizado. “Esta versão bastante resumida é o núcleo do que a gente tem hoje”, acrescenta.

Foram mais de 500 anos, dali em diante, para que o texto se tornasse escrito da maneira como o conhecemos.

“O que pode ser considerado histórico é, sim, o período em que o livro provavelmente foi escrito. E, nesse sentido, estamos ao redor do pós-exílio, isto é, 450 a.C., período no qual o poderosíssimo Império Persa dominava o mundo conhecido da época e, inclusive, a região onde se encontrava o povo da Bíblia”, contextualiza Rossi.

Foi um período de intensa dificuldade para o povo hebreu, que se viu obrigado a buscar o exílio diante da dominação babilônica.

“Trata-se de um período de maior miserabilização do povo de Deus”, salienta o especialista. “Assim, o livro de Jó é um produto que reflete justamente essa época de crise econômica, política, social e religiosa que alcança os camponeses da Yehud, nome da província do império persa.”

Moraes lembra que foi um período em que “muitos judeus tinham perdido praticamente tudo”.

“A perspectiva deles fazia com que se levantassem questões, pois muitos estavam perdendo sua crença em Deus, a crença no Deus que faz uma justiça plena e que executa plenamente sua verdade e sua justiça”, afirma.

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Jó, pelo pintor francês Leon Bonnat

A história de Jó, nesse momento, vem como uma luva. “Eles se servem dessa narrativa como uma espécie de reflexão sapiencial sobre a própria existência”, explica Moraes. “Muito provavelmente é nesse momento que algum poeta exilado amplia o texto, inserindo na composição o que hoje são os capítulos de 3 a 41”, conclui.

A forma antiga então da história, em prosa, se converte em um prólogo e um epílogo e ganha uma série de diálogos e monólogos em verso. Tornou-se um livro épico, uma obra-prima da literatura ancestral.

Havia um propósito. “Isso servia para que aquelas pessoas que estavam sofrendo, tinham perdido absolutamente tudo, tinham se empobrecido radicalmente, estavam enfermas física e espiritualmente, que elas pudessem refletir e ter esperança de que seriam novamente restituídas, teriam uma restituição da parte de Deus, assim como Jó teve”, comenta Moraes.

Na narrativa, Jó, o homem abençoado com riqueza, prole e servos, torna-se epicentro de um desafio feito no céu pelo Satanás a Deus. Deus começa perguntando ao seu oponente a opinião deste sobre a piedade de Jó. Satã rebate que Jó só seria um bom homem porque Deus o havia abençoado com tudo do bom e do melhor — bastava que lhe retirasse tudo e Jó seria um homem que daria as costas a Deus, apostava o demônio.

Fazem então um acordo e Deus permite que Satanás encarrega-se de desgraçar a vida do homem, traindo-lhe a riqueza a matando seus filhos e seus escravos. Jó também é privado da boa saúde e perde o apoio até mesmo da esposa.

Jó permanece firme na fé em Deus, sem blasfemar nenhuma vez. Diante de tudo isso, Deus decidiu recompensá-lo restituindo-lhe as posses em dobro, dando-lhe outros sete filhos e três filhas e fazendo-o com que vivesse, com saúde, mais 140 anos, vendo sua família chegar até a quarta geração. “Então morreu Jó, velho e farto de dias”, finaliza o texto.

Paciência de Jó

“Jó se dirige a Deus e descreve a condição humana por meio de seu exemplo. Por causa disso, não deveríamos ver Jó como um indivíduo ou uma pessoa isolada, não deveríamos olhá-lo como uma exceção”, argumenta Rossi. “Ao contrário, ele é o porta-voz de uma história e de uma sociedade que estão repletas de contradições. Seu clamor não é um grito de uma só pessoa, mas o primeiro clamor de uma série, incluindo nossos próprios clamores, que, ao longo da história, têm se juntado como um modo de expressar que a dor, mesmo que intensa, pode ser vencida com a solidariedade.”

“O clamor sofredor e dolorido de Jó é uma clara advertência para que voltemos nossos olhos para a experiência dele se quisermos verdadeiramente encontrar a Deus, como também um discurso teológico que seja relevante para os nossos dias”, prossegue Rossi.

“A história revelada a partir da experiência de Jó é presumivelmente endereçada às pessoas proprietárias de terras e de rebanhos, mas que haviam perdido suas posses. A perda das posses foi ocasionada tanto por razões internas quanto externas. É importante observar que as razões internas e externas são instrumentos eficazes de desumanização. Podemos até mesmo afirmar que elas foram os instrumentos mais penetrantes na pele do povo. É diante desse cenário alienante que nasce a teologia oficial dos amigos de Jó. Ela nasce do desejo de ensinar os camponeses, por meio da catequese, a ter paciência, a paciência de Jó, para aceitar tudo e, principalmente, permanecerem calados.”

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Jó e sua esposa, em imagem do pintor francês Georges de La Tour

O teólogo lembra que o cenário apresentado na narrativa “é profundamente acinzentado”.

“As pessoas pararam de plantar somente para sua subsistência e passaram a plantar para o comércio internacional. Os camponeses judeus estavam, portanto, diante de uma dupla tributação: um tributo cobrado pelo Império Persa e um segundo tributo cobrado pelo Templo de Jerusalém”, contextualiza.

“Jó fala em nome daqueles que são vítimas da sociedade, ou seja, daqueles que são sofredores, e, portanto, não são vagabundos e preguiçosos como muitos pensam precipitadamente”, explica.

“Ao contrário, são pobres porque trabalham, são pessoas que trabalham e se esforçam para garantir a sua subsistência. Trabalham em meio à abundância de seus patrões, mas, mesmo assim, sofrem porque não têm o que comer, o que vestir e nem onde morar. Na época em que o livro de Jó foi escrito, a pobreza e a miséria eram fruto de dupla tributação interna e externa.”

Rossi enfatiza que muitos eram “as vítimas da injustiça”. “Há, no livro de Jó, como em todo o Antigo Testamento, uma consciência social que muitos leitores modernos não têm, ou seja, Deus é o salvador dos pobres, porque os ricos e poderosos não necessitam de salvação, pois já possuem tudo o que precisam para viver”, pontua.

“Deus deseja deixar muito claro que, em um sentido especial, ele é o protetor destas pessoas fracas”, prossegue o teólogo.

“Na verdade, enquanto são expulsos das ruas, os pobres, simultaneamente, também são banidos da comunidade reconhecidamente humana. E, a partir do momento em que são enviados a viver na periferia da vida, passam a ser retratados como desleixados, pecaminosos e destituídos de padrões morais. E, dessa forma, legitima-se a exclusão e a necessidade de se manter afastados todos aqueles que, de alguma maneira, poderiam contaminar a pureza do ambiente”, conclui.

Lições

Para o historiador, filósofo e teólogo Moraes, “Jó é instigante” justamente porque “há múltiplas lições” que podem ser depreendidas da história.

“A questão da dor, do sofrimento, do por quê as pessoas sofrem ou acabam sendo levadas às vezes a uma situação de exaustão”, comenta. “O desafio de Satanás a Deus, metafísico, transcendental, faz com que Jó tenha sua vida completamente alterada.”

Essa aposta entre as entidades acaba funcionando como uma resposta que rebate a ideia “dessa teologia retributiva”. “Ou seja, do ‘seja bom porque automaticamente você será cercado de bondade'”, ilustra Moraes.

“Jó mostra que é possível manter a fé em Deus, a crença em Deus e na sua justiça mesmo em meio às dificuldades”, acrescenta ele.

Uma outra camada de interpretação trazida pelo teólogo diz respeito ao fato de que, a partir do relato de Jó, “os dramas humanos às vezes são desenhados pelos deuses sem que haja nenhuma possibilidade de alteração disso por parte dos homens, sendo eles bons ou maus, porque supostamente as coisas estão sendo decididas num outro plano”.

“Isso é complexo demais”, acredita. “Não é uma lição simples, é uma lição que faz com que as pessoas fiquem remoendo, afinal quer dizer que a riqueza e a pobreza não dependem do esforço humano: os deuses podem mudar suas vontades e suas intenções conformem seus interesses específicos.”

A narrativa mostra que “não há a possibilidade de termos domínio pleno da existência”. “E isso nos leva a uma reflexão de que tanto a bondade quanto a maldade não dependem necessariamente de nossos atos, das coisas que fazemos, porque às vezes as decisões estão nas mãos das divindades”, acrescenta. “É como se fôssemos impotentes diante de forças que nós desconhecemos.”

Moraes vê em Jó “o grande símbolo de ter fé”. “Porque ter fé quando tudo vai bem é muito fácil. Ter fé quando as coisas estão completamente fora de controle, essa talvez seja a fé verdadeira”, analisa.

Para ele, a grande lição do livro é fazer pensar “na nossa relação com Deus”, seja em tempos fáceis, seja em tempos difíceis.