- Julia Braun
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Após a invasão do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente Jair Bolsonaro condenou nas redes sociais “depredações e invasões de prédios públicos”. Ele, que viajou para os Estados Unidos dois dias antes de seu mandato terminar, comparou os atos violentos de domingo (8/1) com os “praticados pela esquerda em 2013 e 2017” em Brasília.
“Manifestações pacíficas, na forma da lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra”, escreveu no Twitter.
Nas redes sociais, diversos apoiadores do ex-presidente reproduziram o discurso e citaram também outros episódios em que grupos tentaram invadir a Esplanada dos Ministérios ou a praça dos Três Poderes para tentar justificar e minimizar a ação violenta de domingo.
Em sua postagem, Bolsonaro parece se referir a pelo menos dois momentos específicos ocorridos durante os governos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).
O primeiro deles, quando grupos romperam o cordão de isolamento da Polícia Militar e ocuparam a marquise do Congresso Nacional, onde ficam as cúpulas da Câmara e do Senado, em junho de 2013.
Tratava-se de um protesto que pedia recursos para educação, saúde, passe livre no transporte público e era contra os gastos públicos na Copa das Confederações e do Mundo, de 2014.
Já em maio de 2017 todos os prédios da Esplanada dos Ministérios foram evacuados após grupos colocarem fogo, quebrarem vidros, picharem e invadirem as sedes de alguns ministérios.
Mas para cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, os atos violentos deste domingo não podem ser comparados com os episódios anteriores citados pelo presidente, especialmente por seus objetivos antidemocráticos.
Segundo Cláudio Couto, professor adjunto do Departamento de Gestão Pública da FGV EAESP, a intenção dos bolsonaristas ao invadir os prédios públicos implica diferenças fundamentais.
“Em 2013 e 2017, os grupos envolvidos nos atos pressionavam por conta de políticas públicas específicas. Já o que vimos no domingo foi um atentado contra o próprio regime público”, diz.
“O que aconteceu no domingo me parece completamente sem precedentes no Brasil”.
Para Francisco Fonseca, professor da FGV/Eaesp e da PUC-SP, o nível de depredação infringida também diferencia o ato bolsonarista dos anteriores.
“Os atos perpetrados contra as sedes dos Três Poderes foram extremamente violentos e selvagens, com depredação de obras de arte, pessoas defecando e urinando nas dependências”, afirma.
Para o cientista político, outra diferença fundamental está na organização centralizada e na reação das forças de segurança diante do ato bolsonarista.
“Há no episódio mais recente um nível de organização muito mais centralizado”, diz. “Em 2013, os movimentos surgiram de forma quase espontânea e eram compostos por uma polifonia de demandas”.
“Já o ato bolsonarista foi organizado de forma centralizada, com financiamento abundante e até participação de autoridades e ex-membros do governo”, completa Fonseca, que aponta a omissão das forças policiais como indício do envolvimento de algumas autoridades.
Em pelo menos dois momentos de 2013, pessoas foram detidas por romperem cordões de proteção na Praça dos Três Poderes, em Brasília, local onde estão localizados o Supremo Tribunal Federal (STF), o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional.
O primeiro episódio ocorreu em 17 de junho, quando, aos gritos de “a-ha, u-hu, o Congresso é nosso”, centenas de pessoas conseguiram furar o bloqueio, invadiram a área externa do Congresso Nacional e subiram na marquise do prédio.
Após cerca de cinco horas, o grupo deixou o local pacificamente e de forma espontânea, colocando fim a uma das cenas mais marcantes da onda de manifestações que se espalhou por pelo menos 11 estados brasileiros em 2013.
Mas diferente do que aconteceu em 2023, os invasores não entraram no prédio do Congresso em 2013. Segundo informações divulgadas pela polícia naquele momento, agentes foram atacados com água e tinta, dois policiais e um manifestante ficaram feridos e um carro da PM teve os vidros quebrados, mas não foram registrados maiores danos.
O secretário de Segurança Pública do Distrito Federal à época confirmou ao menos dois detidos. Já no ato mais recente, 1.500 bolsonaristas foram presos, segundo informações divulgadas até o final da tarde de segunda-feira (9/1).
Também em 2013, em novembro, cerca de 50 pessoas foram detidas após outra manifestação na Praça dos Três Poderes. O grupo rompeu as barreiras de proteção do STF e do Planalto.
De acordo com os próprios invasores, um dos motivos do protesto era o que chamaram de “regalias” para os condenados no processo do mensalão (Ação Penal 470), um dos grandes escândalos de corrupção dos governos petistas.
De acordo com a Polícia Militar, não houve pichação ou depredação do Palácio do Planalto ou do Supremo Tribunal Federal. O grupo também foi detido antes de tentar adentrar os edifícios.
Em ambos os casos, não havia uma organização centralizada clara dos atos e tampouco é possível dizer que se tratavam de grupos homogêneos da esquerda.
“Todas as pesquisas mostram que houve um conjunto bastante heterogêneo de grupos se manifestando naquele momento”, diz a cientista política Flávia Biroli, professora da Universidade de Brasília (UnB).
“A gente pode dizer que a origem das manifestações de 2013 vem do campo da esquerda, contra o aumento do valor das tarifas de ônibus. Mas aos poucos novas demandas foram incluídas, inclusive com um componente anti-política muito forte que foi central para o fortalecimento de uma extrema-direita posteriormente”.
E em 2017?
Em 18 de abril de 2017, um grupo de cerca de 3 mil manifestantes contrários à reforma da Previdência também invadiu a Câmara de Deputados.
Os manifestantes, em sua maioria sindicalistas ligados à Polícia Civil, chegaram a passar pela chapelaria, entrada principal da Câmara que dá acesso aos salões negro e verde. Eles quebraram parte dos vidros da portaria principal da Câmara, mas foram contidos pela Polícia Legislativa pouco depois.
Em um outro episódio, em 24 de maio, todos os prédios da Esplanada dos Ministérios tiveram que ser evacuados após grupos colocarem fogo e depredarem pelo menos sete ministérios.
Em resposta, o então presidente Michel Temer autorizou a instalação de uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Distrito Federal, em que os militares recebem de forma provisória “a faculdade de atuar com poder de polícia”.
Tudo aconteceu durante um ato organizado contra o governo Temer e as reformas em tramitação no Congresso por movimentos sociais da esquerda e centrais sindicais, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical.
Grupos violentos depredaram sete ministérios e criaram focos de incêndio nos prédios da Agricultura, da Cultura e da Fazenda.
Houve confronto com a Polícia Militar, que foi acusada de agir com extrema violência por congressistas apoiadores do movimento. Vídeos mostram policiais usando armas de fogo contra as pessoas.
Ao todo, 49 pessoas tiveram que receber atendimento médico – inclusive um homem baleado, um estudante que teve a mão decepada por um rojão e oito policiais.
Outras tentativas de invasão
Nas redes sociais, muitos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro citaram também um episódio de junho de 2006 – quando integrantes do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) ocuparam a Câmara dos Deputados -, alegando que atos violentos contra as sedes dos poderes em Brasília não eram exclusividade da direita.
O ato organizado pelo grupo dissidente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foi considerado por muitos um dos maiores atos de vandalismo contra o Congresso até aquele momento.
Os envolvidos empurraram e viraram um carro contra a portaria de vidro do Congresso. Enquanto seguranças e policiais tentavam impedir a entrada, eles atiraram paus, pedras e cones de sinalização. Após alguns minutos, os sem-terra romperam o cerco e entraram na Câmara. Foram depredadas luminárias, computadores, portas de vidro e algumas peças de arte em exposição.
Cerca de 1.200 manifestantes tomaram todos os andares do prédio, reivindicando a liberação de recursos para a reforma agrária.
Mais de 540 manifestantes foram detidos. Durante a invasão, foram feridas mais de 20 pessoas, a maioria funcionários da Casa. Um deles sofreu traumatismo craniano.
Algumas postagens nas redes sociais também relembram uma tentativa de invasão ao STF por integrantes do MST em fevereiro de 2014. Durante o ato, a sessão na Corte precisou ser paralisada por cerca de 50 minutos.
Os militantes radicais, que pediam ao governo mais agilidade na reforma agrária, derrubaram as grades que protegiam o local, mas foram contidos pelos seguranças do próprio STF e policiais militares.
Muitos dos posts, porém, afirmam que o episódio de fevereiro de 2014 teria sido financiado pelo governo, por meio da Caixa Econômica Federal e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Mas a informação não é totalmente verdadeira. A Caixa e o BNDES fecharam contratos sem licitação de R$ 200 mil e R$ 350 mil, respectivamente, para patrocinar a Mostra Nacional de Cultura Camponesa, evento que fez parte do 6º Congresso Nacional do MST.
Os valores foram destinados à Associação Brasil Popular (Abrapo), que era próxima da liderança do MST.
O ato contra o STF ocorreu durante um dos dias do congresso. Uma marcha organizada pelo movimento percorreu cerca de cinco quilômetros até a Esplanada dos Ministérios e se uniu com outros grupos que estavam acampados em frente à Corte, ameaçando invadir o prédio.
Há diferenças do ponto de vista jurídico?
Do ponto de vista jurídico, a intenção dos envolvidos e o objetivo dos atos (o chamado dolo, em linguagem jurídica), também difere as manifestações políticas que ocuparam órgãos públicos no passado dos eventos deste domingo, segundo a promotora Celeste Santos, presidente do Instituto Pró-Vítima.
É essa intenção que faz com que os eventos do domingo sejam classificados pelo STF como atos de terrorismo e o mesmo não aconteça com manifestações políticas que não são contrárias à democracia.
As principais demandas dos atos do domingo, segundo os próprios extremistas, eram a intervenção militar na democracia e nos Três Poderes, incluindo o fechamento do STF, a criação de uma nova Constituição e a destituição do Presidente da República por vias não institucionais – o que torna o pedido diferente de um pedido de impeachment, por exemplo.
Do ponto de vista jurídico, o dolo no caso torna a situação distinta de demandas normais da democracia de ambos os lados do espectro poltíco – como reforma agrária ou maior restrição ao aborto. Essas demandas envolvem a reivindicação por direitos, liberdades e garantias Constitucionais – e mesmo que os lados discordem sobre qual preceito deve ter prevalência – fazem parte do jogo democrático.
A própria Lei Antiterrorismo prevê em seu artigo 2º: “O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.”
E, de qualquer forma, lembra Celeste, mesmo membros de manifestações legítimas podem ser punidos por crimes comuns caso os cometam durante os atos – como dano ao patrimônio público (caso haja depredação) ou lesão corporal (caso machuquem alguém).
* Com reportagem de Letícia Mori, de São Paulo
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