- Mariana Schreiber – @marischreiber
- Da BBC News Brasil em Brasília
Inconformados com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como próximo presidente do Brasil, parte dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) tem divulgado alegações de fraudes nas urnas brasileiras. Essas acusações, porém, estão sendo contestadas pelo Tribunal Superior Eleitoral e especialistas em segurança do voto.
Entre as alegações que ganharam projeção está um dossiê apócrifo divulgado pelo influenciador argentino Fernando Cerimedo, dono do canal La Derecha Diário e ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Ele diz que parte das urnas eletrônicas não teriam sido “auditadas” pelo TSE e teriam transferido votos de Bolsonaro para Lula durante a votação, o que a Corte eleitoral desmentiu.
Outra informação falsa que circula nas redes sociais para levantar suspeitas de fraudes é de que haveria cidades em que o petista obteve 100% dos votos válidos. Na verdade, existem apenas 143 seções eleitorais em que isso ocorreu, o que representa menos de 0,03% das 496.512 seções do país. Já Bolsonaro obteve todos os votos válidos de quatro zonas eleitorais (menos de 0,001% do total).
Há ainda acusações de seções eleitorais que teriam “sumido” do sistema da Justiça Eleitoral, num suposto indício de que votos não teriam sido computados. No entanto, o TSE esclareceu que isso ocorreu no caso de seções pequenas, que foram unificadas com outras para “racionalizar” o processo de votação, sem prejuízo para o exercício do voto.
Entenda melhor a seguir cada uma dessas alegações de fraudes e as explicações que contestam essas acusações.
1) Suposta transferência de votos de Lula para Bolsonaro
O vídeo com falsas alegações de fraude sobre a eleição brasileira do influenciador argentino Fernando Cerimedo foi retirado do ar após alcançar mais de 400 mil visualizações no YouTube.
Na gravação, Cerimedo dizia ter recebido um dossiê com uma série de alegações de fraudes na eleição de Lula, sem revelar quais seriam os autores de tal documento.
A principal acusação é de que teria ocorrido a transferência de milhões votos de Bolsonaro para Lula em urnas antigas que não teriam sido auditadas pelo TSE.
A votação brasileira conta com urnas eletrônicas de diferentes anos, já que regulamente há a reposição de parte das máquinas antigas por unidades novas.
Na gravação, Cerimedo alega que apenas as urnas de 2020 teriam sido auditadas. Segundo ele, uma análise do resultado das seções eleitorais no Nordeste indicaria que Lula obteve proporcionalmente mais votos naquelas que usaram modelos de urnas anteriores a 2020.
Ou seja, ele diz que as urnas antigas não foram “auditadas” e teriam algum tipo de dispositivo que transferiu artificialmente para Lula votos que foram dados a Bolsonaro pelos eleitores.
No entanto, o argumento de que apenas as urnas de 2020 seriam “auditadas” é falso.
“Não é verdade que os modelos anteriores das urnas eletrônicas não passaram por procedimentos de auditoria e fiscalização. Os equipamentos antigos já estão em uso desde 2010 (para as urnas modelo 2009 e 2010) e todos foram utilizadas nas Eleições 2018. Nesse período, esses modelos de urna já foram submetidos a diversas análises e auditorias, tais como a Auditoria Especial do PSDB em 2015 e cinco edições do Teste Público de Segurança (2012, 2016, 2017, 2019 e 2021)”, informou o TSE por meio de nota.
“As urnas eletrônicas modelo 2020 que ainda não estavam prontas no período de realização do Teste Público de Segurança 2021 foram testadas pelo Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores (Larc) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EP-USP), além de ter o conjunto de softwares avaliado também pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Nas três avaliações, não foi encontrada nenhuma fragilidade ou mesmo indício de vulnerabilidade”, diz ainda a nota da Corte Eleitoral.
À BBC News Brasil, o professor Marcos Simplício, do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Poli-USP, confirma as informações do TSE.
Simplício é um dos coordenadores de uma equipe da USP que participa desde 2021 dos testes de segurança das urnas. Ele também atuou individualmente na Auditoria Especial no Sistema Eleitoral Brasileiro realizada em 2015 a pedido do PSDB, após o candidato tucano Aécio Neves ser derrotado no pleito de 2014 por Dilma Rousseff (PT).
“Eu não sei de onde ele tirou a informação que a 2020 foi testada e as anteriores não”, questiona Simplício.
O TSE ressaltou ainda que todas as urnas eletrônicas, independentemente do seu ano de produção, rodam o mesmo software. Ou seja, um único programa é usado para registrar os votos em todas elas.
Esse programa ficou aberto por um ano para ser analisado por entidades fiscalizadoras. E, antes desse software ser inserido nas máquinas, houve uma cerimônia pública de assinatura digital e lacração.
Esses dois procedimentos de segurança foram acompanhados por entidades externas como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e as Forças Armadas.
A assinatura digital permite averiguar que o programa não foi modificado, seja intencionalmente ou por alguma falha. Já a lacração dos sistemas consiste na gravação dos programas assinados em mídia não regravável. Essa mídia fica armazenada em envelope assinado fisicamente e guardado na sala-cofre do TSE.
Depois, cópias dos programas lacrados foram distribuídas aos Tribunais Regionais Eleitorais para serem inseridas nas urnas eletrônicas.
2) Suposta existência de dois programas nas urnas
Outra alegação falsa levantada pelo influenciador argentino é que haveria dois softwares, ou seja, dois programas diferentes rodando nas urnas eletrônicas.
Segundo Cerimedo, essa é a única conclusão possível ao se identificar que há dois logs (registros do que ocorre na máquina) diferentes nas urnas.
A afirmação é contestada por Marcos Simplício e pela equipe da USP que tem acesso ao código-fonte da urna eletrônica.
Segundo o professor, log é o registro de tudo que ocorre na urna eletrônica, produzido pelo próprio software da máquina. Após o influencer argentino levantar a teoria de que haveria dois programas na urna, a equipe de Simplício verificou o código-fonte do software de votação e identificou que o mesmo software pode gerar dois logs diferentes a depender de como ocorre a carga do programa nas urnas.
Por exemplo, se o servidor da Justiça Eleitoral digita uma número errado no momento de inserir a senha para a carga do software e, por isso, precisa apertar a tecla “corrige” para reiniciar o procedimento, isso gera um log diferente do que o log padrão, que é registrado quando a carga é feita corretamente na primeira tentativa.
Segundo Simplício, a hipótese de que os dois logs seriam resultado da existência de dois softwares na urna não é inválida, mas o argentino erra ao cravar que essa seria a única explicação possível para os dois logs.
“A gente (a equipe da USP) verificou no código que a recebemos do TSE e, não, não são dois softwares distintos”, afirmou.
3) Urnas sem votos para Bolsonaro
O fato de algumas dezenas de urnas em todo o país terem registrado apenas votos para Lula também está sendo usado para levantar dúvidas sobre a integridade da eleição.
Circula nas redes sociais uma suposta lista de cidades que teriam votado apenas no petista. Essa lista vem acompanhada de um pedido para que eleitores de Bolsonaro dessas cidades se manifestem publicamente, mostrando que a ausência de votos para o presidente nesses locais seria uma fraude.
No entanto, é falso que existam cidades em que 100% dos votos foram para o presidente eleito. O que existem são algumas seções eleitorais espalhadas por diferentes municípios em que apenas Lula ou apenas Bolsonaro receberam votos no segundo turno.
A partir dos dados oficias do TSE, um levantamento da agência Tatu, especializada em jornalismo de dados, identificou que Lula obteve 100% dos votos válidos em 143 urnas, enquanto o mesmo ocorreu com Bolsonaro em quatro urnas.
Isso geralmente aconteceu em comunidades em que os eleitores têm uma visão muito coesa. Por exemplo, o petista foi escolhido de forma unânime entre eleitores de algumas comunidades indígenas, enquanto Bolsonaro recebeu todos os votos válidos de eleitores brasileiros registrados para votar em Caracas, capital da Venezuela.
Um caso que gerou especial atenção nas redes sociais bolsonaristas foi o da seção eleitoral 158 do município de Confressa, no Mato Grosso, em que houve 384 votos para Lula, um voto nulo e nenhum voto para Bolsonaro.
Para apoiadores do presidente, seria impossível tal resultado, já que o Estado de Mato Grosso votou predominantemente em Bolsonaro. Na cidade de Confressa como um todo, aliás, o presidente venceu com 69,8% dos votos.
A seção 158, porém, fica dentro da comunidade indígena Apyãwa, conhecida também como povo Tapirapé. À BBC News Brasil, o cacique da comunidade, Elber Ware’i, disse que o povo Apyãwa se reuniu, analisou as propostas de Lula e decidiu que ela era o melhor candidato para seu povo.
“Visto que a proposta da campanha do presidente eleito foi voltada em atender a questão social, especialmente no atendimento da população que mais necessitam de apoio de governo federal como Quilombolas, Ribeirinhos, Extrativistas e principalmente os povos indígenas”, explicou por mensagem de WhatsApp.
“A política de combate ao desmatamento, a continuidade da educação escolar Indígena de qualidade, saúde de boa qualidade nas aldeias… Tudo isso fez com que o povo Apyãwa, votasse em 100% no candidato eleito”, disse ainda na mensagem.
Além de as dezenas de sessões em que houve votos para apenas um candidato não representarem qualquer fraude, elas também somam menos de 0,02% do total de votos computados no segundo turno. Ou seja, apenas esses votos isoladamente não interferem no resultado da eleição.
4) A seção que “desapareceu” em Minas Gerais
Também causou indignação entre bolsonaristas o suposto sumiço de seções eleitorais do sistema do TSE. Um eleitor de Minas Gerais, por exemplo, gravou um vídeo indignado com esse problema.
Na gravação, ele mostra seu comprovante de votação na seção 292 da cidade de Passos. Depois, o vídeo exibe a consulta ao resultado das urnas no portal do TSE. No entanto, o eleitor não localiza na zona eleitoral de Passos a seção 292, já que a lista de seções passa direto da 291 para a 293.
“A minha seção do comprovante (de votação) tem o mesmo dado do meu título (de eleitor), onde eu votei. Por que a minha seção não está aqui contabilizada? E diz que todas foram totalizadas, 100% das urnas. Por que que a minha não está aqui? O que aconteceu e pra onde foi meu voto?”, questiona.
“A gente consegue ver que não foi só com uma (seção eleitoral). Da 0183 vai pra 0185, não tem uma sequência. Pularam a minha e pularam outras. Muitas pessoas estão dizendo que não estão encontrando as suas seções e não houve nenhuma mudança na zona de votação”, reforça o autor do vídeo.
Questionado pela BBC News Brasil, o TSE explicou que algumas seções eleitorais foram agregadas a outras, um procedimento que é permitido pela resolução 23.669 da Corte “visando à racionalização dos trabalhos eleitorais, desde que não importe prejuízo ao exercício do voto”.
É por esse motivo que a seção 292 de Passos não aparece no sistema de consulta aos resultados das urnas. Isso, porém, não significa que os votos não foram computados.
Uma planilha disponível no portal da Corte permite consultar as mais de 24 mil seções que foram agregadas a outras nesta eleição. Em Passos, por exemplo, isso ocorreu com 34 seções, sendo que a 292 de passos foi agregada à 316.
Dessa forma, houve apenas uma urna para essas duas seções e os votos apurados foram registrados no portal do TSE todos na seção 316 de Passos. A consulta ao portal mostra que 138 compareceram para votar nessas duas seções agregadas, sendo que Lula obteve 99 votos e Bolsonaro recebeu 34. Houve ainda três votos nulos e dois em branco.
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