- Marianna Spring
- Do podcast War on Truth, da BBC News
Uma foto de uma mulher grávida fugindo de uma maternidade bombardeada se tornou uma das imagens mais icônicas da guerra na Ucrânia.
Mas a mulher da foto foi alvo de uma enorme campanha de desinformação russa e ela acabou recebendo manifestações de ódio de ambos os lados da guerra.
Marianna Vyshemirsky foi vista em todo o mundo. Na imagem, ela aparece envolta em um edredom e com a testa cheia de sangue.
A foto acima foi tirada após um ataque aéreo russo em Mariupol. A imagem circulou online, nas primeiras páginas dos jornais, e foi discutida no Conselho de Segurança da ONU.
Tendo sobrevivido a um ataque na guerra, Marianna enfrentou outro tipo de agressão — de desinformação e ódio contra ela e sua família.
A Rússia espalhou mentiras sobre o ataque. Marianna, de 29 anos, foi falsamente acusada de estar “fingindo”como uma atriz. Diplomatas russos até afirmaram que ela “interpretou” não só uma, como duas mulheres diferentes.
Eu já havia conseguido conversar com seus amigos e parentes, mas estava há semanas tentando falar com Marianna. Quando ela finalmente surgiu na minha tela de computador em uma videochamada, eu quase não acreditei. Ela me contou sobre sua fuga angustiante e sobre o abuso online que recebeu depois.
“Recebi ameaças de que eles viriam me encontrar, que eu seria morta, que meu filho seria cortado em pedaços”, diz ela.
Esta é sua primeira entrevista com um grande meio de comunicação europeu depois de ser evacuada para sua cidade natal em uma parte de Donbas controlada por separatistas apoiados pela Rússia.
Marianna parece à vontade e fala comigo sem restrições, mas uma blogueira pró-separatismo russo a acompanha.
Ela me conta como é de repente estar no meio de uma guerra de informações — tudo isso enquanto dá à luz sua filha Veronika em uma zona de guerra.
“Ela escolheu surgir em um momento difícil mas é melhor que ela tenha chegado nessas circunstâncias do que não ter chegado.”
‘As coisas viraram ao avesso’
A vida em Mariupol era muito diferente antes da guerra. Marianna promovia produtos de beleza nas redes sociais, enquanto seu marido Yuri trabalhava na siderúrgica Azovstal.
“Tínhamos uma vida tranquila e simples”, diz ela, “e então, é claro, as coisas viraram ao avesso”.
Sua conta no Instagram ainda mostra sua alegria com a perspectiva de se tornar mãe.
Mas quando Marianna foi internada no hospital, Mariupol havia se tornado a cidade mais bombardeada da Ucrânia.
Em 9 de março, ela estava conversando com outras mulheres na enfermaria quando uma explosão sacudiu o hospital.
Ela puxou um cobertor sobre a cabeça. Em seguida, houve uma segunda explosão.
“Você podia ouvir tudo voando ao redor, estilhaços e outras coisas. Fiquei com o ouvido zumbindo por muito tempo.”
As mulheres buscaram abrigo no porão do hospital junto com outros civis. Marianna sofreu um corte na testa e fragmentos de vidro ficaram alojados em sua pele, mas um médico disse que ela não precisava de pontos.
O que ela precisava, ela explica, era recuperar seus pertences das ruínas do hospital. Ela pediu a um policial para ajudá-la a voltar para dentro do hospital.
“Tudo o que eu tinha preparado para o meu bebê estava naquela maternidade”, diz ela.
Anatomia de uma mentira
Quando estava do lado de fora do hospital, esperando para recuperar suas coisas, ela foi fotografada por jornalistas da Associated Press. Eles a fotografaram também descendo as escadas do prédio.
Essas imagens viralizaram rapidamente. Foi quando surgiram, em um canal pró-Rússia no Telegram, as primeiras mentiras de que as fotos teriam sido “encenadas”. O blog de beleza de Marianna foi usado para insinuar que ela era uma “atriz” que usava maquiagem para fingir ferimentos.
Essas falsidades foram repetidas e amplificadas por altos funcionários russos e pela imprensa estatal.
Eles até alegaram que uma foto de outra mulher grávida em uma maca também era de Marianna, embora seja claro que as fotos são de pessoas diferentes. A mulher na maca e seu feto morreram mais tarde devido aos ferimentos.
Fugindo e sem acesso à internet, Marianna só foi ver essas imagens dias depois.
A essa altura, seu Instagram havia sido inundado com acusações e ameaças. Ela ficou chocada com tudo que leu.
“Era realmente uma ofensa ouvir isso, porque eu realmente passei por tudo aquilo”, diz ela. Mas ela se abstém de criticar diretamente as autoridades russas que espalham informações falsas sobre ela.
Em vez disso, ela critica a Associated Press.
“Fiquei ofendida porque os jornalistas que postaram minhas fotos nas redes sociais não entrevistaram outras mulheres grávidas que pudessem confirmar que esse ataque realmente aconteceu.”
Ela diz que isso pode ajudar a explicar por que algumas pessoas “tiveram a impressão de que tudo foi encenado”. Mas pelo próprio relato de Marianna ela foi uma das últimas pacientes a serem evacuadas, e foi quando os jornalistas da AP chegaram.
Os jornalistas entrevistaram outras pessoas no local. E eles não tinham nada a ver com a história falsa depois espalhada por autoridades russas. Nós entramos em contato com a AP mas não obtivemos resposta.
Nos dias após o ataque, Marianna deu à luz Veronika em outro hospital.
Como milhares de outras pessoas, Marianna e Yuri tentavam desesperadamente fugir de Mariupol. Durante semanas, foi praticamente impossível fazer contato com eles.
Os parentes de Marianna me disseram que o casal havia saído da cidade, mas que seu paradeiro não era conhecido. No início de abril, eles ressurgiram na região de Donbas.
Ela filmou uma entrevista com Denis Seleznev, um blogueiro que apoia os separatistas apoiados pela Rússia. Houve especulações de quão livremente ela poderia falar o que queria.
Marianna me diz: “Tive que descrever toda a situação, como vi com meus próprios olhos”.
Minha conversa com ela também foi combinada com ajuda de Denis. A entrevista por vídeo com Marianna foi feita na casa de Denis. Ele está presente durante toda a nossa conversa, mas não a interrompe. Os parentes e amigos de Marianna me garantiram que ela agora está segura.
Buscando a verdade
Muito do que ela diz em sua entrevista comigo desmente as informações espalhadas pelo governo russo.
O Kremlin repetidamente disse que o hospital atacado era o hospital número um no mapa abaixo, e que ele não estava mais funcionando.
Mas a equipe de checagem da BBC identificou o hospital onde Marianna estava — o hospital número três.
Nós entramos em contato com a Embaixada da Rússia em Londres.
Marianna confirma que o hospital estava definitivamente tratando ela e outros pacientes — ao contrário das alegações russas de que não estava funcionando.
A Rússia também alegou que o hospital havia sido tomado pelo regimento Azov — o polêmico grupo nacionalista ucraniano que tem sido ligado a neonazistas. O regimento nega essa ligação.
O depoimento de Marianna na entrevista com Denis foi examinado de perto pelas autoridades russas, que usaram frases dela para alegar que os soldados forçaram Marianna e as outras mulheres grávidas a agirem como escudos humanos.
Mas Marianna me disse que não havia militares ucranianos no prédio onde ela estava. Ela diz que viu soldados ucranianos na unidade de oncologia no prédio em frente à maternidade. Não está claro se eles estavam baseados lá ou não.
No entanto, a entrevista de Marianna com Denis Seleznev foi usada pelo Kremlin para criar mais desinformação.
Autoridades russas aproveitaram trechos da conversa em que ela diz não acreditar que as explosões no hospital tenham sido causadas por um ataque aéreo, o que implica que o dano foi causado por ucranianos.
“O som que um avião faz quando sobrevoa é muito marcante”, Marianna me diz. Ela afirma que não ouviu esse som.
Mas ela está enganada. Os jornalistas da AP documentaram evidências de que houve um ataque aéreo, incluindo um vídeo em que se ouve um avião. No local, um soldado e um policial dizem que o ataque foi aéreo.
Também é possível ver nas fotos uma enorme cratera que especialistas em munição dizem que só pode ter sido causada por um ataque aéreo.
“Pessoalmente, eu não vi esta cratera, mas eu vi o vídeo dela”, diz Marianna. “Na realidade, não posso culpar ninguém — porque não vi com meus próprios olhos de onde com certeza [as explosões] vieram”.
Alvo na internet
Essa nova polêmica desencadeou uma nova onda de agressões online.
“Algumas pessoas diziam que eu era atriz, outras diziam que eu estava mentindo sobre o fato de que não houve ataques aéreos”, diz ela.
Mesmo alguns que ela considerava amigos não acreditam nela. A blogueira de beleza Yaroslava mora na Rússia e continua acreditando que Marianna estava atuando, como afirma a TV estatal russa.
“Acho que Marianna interpretou seu papel. A Ucrânia precisava que os militares ucranianos culpassem a Rússia por tudo”, Yaroslava me disse. Desde então, ela deixou de seguir Marianna no Instagram — e não quer voltar a falar com ela.
“É uma pena quando as pessoas que conheço acreditam em algo que eu não fiz”, diz Marianna.
Mas ela se alegra sempre quando falamos sobre sua bebê, Veronika.
Marianna voltou a blogar e em um post recente disse aos leitores que haverá novidades sobre “cosméticos, fraldas e a vida cotidiana de uma nova mãe”.
Mas estar de forma involuntária no centro de uma guerra de informações — enquanto o conflito militar continua — mudou a vida de Marianna para sempre.
“Sabe, por enquanto não estou nutrindo esperanças ou fazendo planos, porque não sabemos o que o amanhã trará.”
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