- Jennifer Keishin Armstrong
- BBC Culture*
O gabinete do presidente ucraniano é uma comédia de erros: no salão presidencial entra o seu recém-nomeado ministro da Defesa, um velho amigo, tendo um ataque histérico por causa de cortes no orçamento militar. Enquanto o ministro tem um chilique sobre sua briga com os generais da sua pasta, o presidente calmamente lhe oferece um gole de um sedativo e o manda embora.
Em seguida, sua recém-nomeada ministra das Finanças — que também é sua ex-mulher — entra reclamando de outro problema: um banco faliu e ela não consegue decidir se deve devolver dinheiro aos clientes. O presidente oferece a ela um gole do sedativo e a manda embora. Depois, seu amigo e ministro das Relações Exteriores entra na sala após ter feito um fiasco em uma coletiva de imprensa sobre uma revolta em Uganda. Ele também recebe o tratamento sedativo.
Quando um outro amigo (que também virou ministro) chega, o presidente já está farto de tudo.
“O que diabos você quer de mim?”, ele explode.
E não tem como culpá-lo: após sua eleição surpreendente para o cargo mais poderoso da Ucrânia, esse ex-professor de história precisa lidar com amigos, parentes e conhecidos implorando por empregos e favores especiais. Mesmo tendo dado a eles algumas das posições mais poderosas do país, eles não param de reclamar.
Essa cena é da primeira temporada do drama político da televisão ucraniana Servant of the People (Servo do Povo, em tradução livre), de 2015, no qual Volodymyr Zelensky interpreta um professor que vira presidente depois que um vídeo dele fazendo um discurso contra a corrupção do governo viraliza.
Uma versão em filme deste seriado — chamada de Servo do Povo, O Filme — estará disponível no Brasil na plataforma Netflix a partir de terça-feira (17/5).
A série tem uma abordagem pastelão sobre os problemas do país com a oligarquia e com os burocratas excessivamente mimados pelo governo nos 18 anos em que a nação pós-soviética se tornou independente.
Mas cenas como esta ganharam um novo significado depois que Zelensky se tornou presidente da Ucrânia na vida real, em 2019, graças à sua popularidade como líder fictício.
Em um intervalo de poucos anos, ele foi de humorista de TV e novato político a presidente em comando de um país em guerra contra uma potência militar.
‘Putin foi deposto’
Clipes antigos da série estão agora circulando nas redes sociais durante a Guerra na Ucrânia em que cenas envolvendo o personagem de Zelensky são incrivelmente semelhantes às situações enfrentadas na vida real pelo agora presidente.
Em uma das cenas fictícias antigas, o presidente Holoborodko (o nome do personagem vivido por Zelensky) está caminhando em uma praça quando seu telefone toca. É Angela Merkel (chanceler alemã na época) informando o presidente de que a Ucrânia foi aceita como membro da União Europeia — justamente um dos pedidos feitos por Zelensky na vida real que tem servido de pano de fundo nas tensões com o presidente russo Vladimir Putin.
“Eu estou tão feliz! Obrigado! Todos os ucranianos… nosso país… estamos esperando isso há tanto tempo”, responde o presidente fictício.
“Ucranianos? Ah, me desculpe, foi engano meu. Eu estava telefonando para Montenegro”, responde a Merkel fictícia, para a decepção de Holoborodko.
Em outra cena que circula bastante agora, o presidente fictício chega ao Parlamento e encontra os congressistas brigando e se empurrando. Ele tenta fazer com que eles parem de brigar, mas não consegue. Irritado, ele grita “Putin foi deposto” e todos param de brigar imediatamente e olham para Holoborodko incrédulo, que confessa que era mentira.
Outra cena famosa, que tem circulado bastante nas redes sociais em 2022, é uma em que o personagem de Zelensky fantasia atirar com duas metralhadoras em políticos do Parlamento ucraniano. Esta imagem reflete, segundo alguns analistas, a plataforma anti-sistema político que o próprio Zelensky usou para impulsionar sua campanha presidencial na vida real.
‘Servo do Povo’
Servant of the People estreou na Ucrânia em 2015 estrelado por Zelensky — então conhecido apenas como ator cômico — no papel de um sujeito comum, Vasyl Petrovych Holoborodko, que vira presidente quase por acaso.
O programa durou três temporadas no canal 1 1 do país e agora está disponível no Netflix em alguns países, assim como no YouTube. A série foi um sucesso na Ucrânia, e seu primeiro episódio tem milhões de visualizações no YouTube.
Em 2018, o enredo teve uma reviravolta na vida real quando o partido político Servant of the People foi formado; e seu candidato, o ator Zelensky, virou presidente de verdade da Ucrânia no ano seguinte.
O sucesso de Servant of the People e a subsequente vitória de Zelensky refletem a irritação dos ucranianos com a oligarquia que sempre comandou o país, de acordo com a jornalista Katherine Jacobsen, que escreveu sobre a série para a revista de relações exteriores Foreign Policy.
“É uma liberação importante para as pessoas de lá perceberem que não estão sozinhas em pensar que tudo está fora de controle”, disse ela à BBC Culture. “Elas são capazes de rir disso juntos. É sobre o que todos pensam que está acontecendo nos bastidores, mas que ninguém consegue provar 100%.”
A série é repleta de cenas que apresentam oligarcas em ambientes luxuosos com seus rostos obscurecidos, conspirando para controlar o governo enquanto comem caviar e frutas e bebem álcool. As sequências podem parecer absurdamente fantásticas para os espectadores fora da Ucrânia, mas Jacobsen diz que elas são “quase realistas demais” para os ucranianos.
Quando o novo presidente assume o cargo, ele fica chocado com a luxuosa configuração do retiro presidencial conhecido como Residência Mezhyhirya, onde o (verdadeiro) ex-presidente Viktor Yanukovych vivia com seus carros luxuosos, uma fazenda de avestruzes e um heliporto, entre outros mimos, antes de fugir da revolução ucraniana de 2014. Hoje em dia a residência é um museu, onde a série foi filmada.
Outra trama tem o primeiro-ministro — um personagem importante que representa os velhos costumes — dispersando um protesto ao divulgar relatórios falsos de um iminente ataque de meteorito.
Votação na vida real superou a da ficção
Em termos de qualidade, Servant of the People não fica muito atrás de outras comédias de prestígio internacional — dada a capacidade da série expor a corrupção do mundo real e até mesmo eleger um verdadeiro presidente fora da ficção.
A série fica em algum lugar entre as sátiras políticas sombrias e afiadas de Armando Iannucci (autor de The Thick of It e Veep), e a ensolarada visão americana da política local Parks and Recreation.
Servant of the People é por vezes até desconfortável em seu realismo, mas também oferece um raio de esperança, embalada por uma produção que flui bem, um roteiro bem amarrado, performances elegantes e sequências hilárias.
Não é de admirar que a série — juntamente com a atuação de Zelensky no papel de um homem comum, inteligente e ético — tenha contribuído para uma vitória presidencial que superou a versão da ficção: em Servant of the People, o personagem de Zelensky recebe 67% dos votos; na vida real, Zelensky ganhou 73,2%.
Os belos créditos de abertura funcionam como um perfeito vídeo de campanha eleitoral: Zelensky anda de bicicleta pelas ruas de Kiev em um terno ao som de uma melodia cativante de violão e voz marcada por buzinas de bicicleta. No final da sequência, ele desmonta de sua bicicleta do lado de fora dos prédios do governo — apenas um presidente comum chegando para outro dia de trabalho duro e honesto.
“Parte da razão pela qual as pessoas confiam nele é porque acham que conseguem enxergar dentro de sua cabeça e os problemas que ele vê no governo da forma como foram apresentados no programa”, diz Jacobsen. “Isso deu às pessoas uma sensação de esperança, de certa forma, de que ele entende como as pessoas se sentem.”
Pedido de impeachment de Trump
Trump — que, como Zelensky, também é uma estrela de televisão que foi alçado à Presidência — havia telefonado a Zelensky pedindo que a Ucrânia investigasse Joe Biden (na época pré-candidato democrata e rival de Trump nas urnas), e seu filho, Hunter Biden, que pertencia a um conselho de uma empresa de gás ucraniana.
Em troca, Trump teria prometido “algum benefício” ao líder ucraniano, possivelmente ajuda militar americana ao país. O pedido de impeachment acabou rejeitado pelo Congresso dos EUA.
As habilidades de estrela de TV de Zelensky indiscutivelmente o ajudaram no cargo. Em uma entrevista coletiva ao lado de Trump, Zelensky soube improvisar com perfeição para lidar com as difíceis perguntas da imprensa.
Servant of the People foi um enorme sucesso com suas três temporadas — e Zelensky hoje vive uma espécie de quarta temporada, com a Ucrânia envolvida em um conflito sangrento com a Rússia, algo tão trágico e terrível que nem mesmo os roteiristas da série poderiam ter criado um enredo assim.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Você precisa fazer login para comentar.