- Fernanda Paúl
- BBC News Mundo
A forte agressão da Rússia contra a Ucrânia teve consequências políticas, econômicas e sociais profundas e irreversíveis no país presidido por Volodymyr Zelensky.
Mas, enquanto as tropas estão lutando em solo ucraniano, um conflito menos visível também está acontecendo no país.
É uma rebelião religiosa que, segundo especialistas, não tem precedentes e que afeta diretamente a muito popular Igreja Ortodoxa Russa, altamente influente em Kiev.
Desde o início da invasão, vários bispos e padres fiéis a essa Igreja expressaram sua rejeição a Kirill, o patriarca de Moscou e máximo representante dessa instituição religiosa.
Muitos crentes ucranianos até mesmo pararam de orar por ele durante os cultos, símbolo mais forte de desobediência no mundo ortodoxo.
Mas por que esses sinais de revolta são importantes? Quão relevantes são eles no contexto da guerra? E por que a Ucrânia é tão crucial para a Igreja Ortodoxa Russa? Entenda aqui.
Kirill, um aliado de Putin
Atualmente, existem duas grandes comunidades ortodoxas na Ucrânia: a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou (UOC-MP) — que está sob a jurisdição da Igreja Ortodoxa Russa (ROC) — e a Igreja Ortodoxa Ucraniana (UOC).
Esta última foi criada em 2018, após se separar de sua contraparte russa depois de mais de 300 anos vinculada a ela, o que representou um passo importante para quebrar a subordinação religiosa à Rússia.
Mas, de acordo com os últimos dados oficiais, a UOC-MP continua a ser a maior do país, com cerca de 12 mil paróquias. A UOC, por sua vez, tem cerca de 7 mil.
Até antes da invasão, isso significava que a Rússia continuava a exercer uma influência substancial no âmbito espiritual ucraniano.
Isso é ainda mais importante considerando que a Ucrânia tem a terceira maior população ortodoxa do mundo (atrás da Rússia e da Etiópia), de acordo com a Pew Research.
Neste país, 8 em cada 10 adultos (78%) se identificam como ortodoxos.
Mas a agressão liderada por Vladimir Putin — que, aliás, destruiu centenas de igrejas com seus ataques aéreos — chegou a abalar o poder da UOC-MP.
O ponto de ruptura foi desencadeado depois que o patriarca de Moscou, Kirill, não condenou as ações militares. Pelo contrário, ele abençoou as tropas russas e, até agora, não pediu um cessar-fogo.
O máximo representante da Igreja Ortodoxa Russa é um antigo aliado de Putin. Em 2012, por exemplo, ele chamou o governo de Putin de “milagre de Deus”.
“O patriarca russo vê a guerra na Ucrânia como uma espécie de guerra cultural entre uma concepção ocidental de vida e uma concepção oriental”, diz Thomas Bremer, professor de teologia ecumênica e pesquisador da Igreja Ortodoxa Russa na Universidade de Münster, na Alemanha.
De acordo com vários estudiosos, Kirill, como Putin, compartilha uma visão de um “Russkiy Mir” (ou “Mundo Russo”) onde ucranianos e russos são um “mesmo povo”.
Sua missão, então, é reuni-los para enfrentar as ameaças que vêm do exterior.
“Kirill forneceu ideias e ideologia a Putin”, afirma Cyril Hovorun, padre ortodoxo ucraniano que ensina eclesiologia, relações internacionais e ecumenismo na Universidade de Estocolmo.
“Pessoalmente, acho que, sem a contribuição da Igreja Ortodoxa Russa, a guerra teria sido impossível porque ela a justifica. Putin tem essa autoconfiança também porque a Igreja o encorajou”, acrescenta.
Rebelião interna
A atitude de Kirill — e de outros líderes religiosos que o apoiam — gerou uma ampla rejeição entre os crentes ucranianos.
Até mesmo o metropolita Onófrio de Kiev — que representa a UOC-MP na Ucrânia — condenou veementemente as ações russas e apelou diretamente a Putin, pedindo o fim imediato da “guerra fratricida”.
Ele também fez um chamado ao próprio Kirill para ajudar a resolver o conflito.
“É uma rebelião interna, uma fragmentação única da Igreja”, diz Hovorun, da Universidade de Estocolmo.
“Kirill parece ignorar por completo todas as mortes, a destruição. Ele não pronunciou uma única palavra em apoio às vítimas ucranianas”, acrescenta o acadêmico.
Isso fez com que várias dioceses na Ucrânia parassem de orar pelo patriarca, o que é um importante ato de desobediência.
“Geralmente, na liturgia, o mais alto hierarca é mencionado, se ora por ele. Mas muitos pararam de fazê-lo. Vi vídeos na internet onde os padres dizem: ‘ele nos decepcionou e não é mais nosso patriarca, não podemos confiar nele'”, diz Thomas Bremer.
“E esse é um passo muito ousado”, acrescenta.
Esta rebelião cruzou as fronteiras ucranianas e desencadeou uma oposição interna sem precedentes a Kirill na própria Igreja Ortodoxa Russa.
Cerca de 300 padres e diáconos russos assinaram recentemente uma carta aberta intitulada “padres russos pela paz”, pedindo um “cessar-fogo imediato”.
“Pensamos com amargura no abismo que nossos filhos e netos na Rússia e na Ucrânia terão que superar para voltar a ser amigos, respeitar e amar uns aos outros novamente”, diz a carta.
“Toda a Igreja Russa está um pouco abalada. Embora muitos apoiem a guerra, há uma crescente dissidência em relação às políticas de seu patriarca”, explica Cyril Horovun.
“E em outros lugares, nas estruturas da Igreja Russa fora da Rússia, algo semelhante também está acontecendo. Nos países bálticos, por exemplo, eles estão tentando se distanciar de Moscou, expressando sua desconfiança do patriarca”, acrescenta.
Por que a Ucrânia é tão importante?
A Ucrânia não é apenas mais um país no mundo para Vladimir Putin ou para a Igreja Ortodoxa Russa.
A visão dominante do nacionalismo russo é que a Ucrânia é uma nação irmã e, além disso, que é o coração da “nação russa”.
Em particular, a capital Kiev tem um significado espiritual muito importante para os ortodoxos.
Em 2019, Kirill comparou Kiev ao significado de Jerusalém para o cristianismo global, de acordo com a agência de notícias russa Tass.
“É isso mesmo. O que Jerusalém significa para o cristianismo, Kiev significa para a ortodoxia russa”, diz Thomas Bremer.
“A Ucrânia é uma parte muito importante da metodologia russa. Para eles, o país faz parte do seu mito fundador”, explica Cyril Horovun.
Por conta disso, Kirill justificou o que os russos chamam de “operação militar especial” na Ucrânia como uma forma de “salvar” aquele país do mundo ocidental e de seus valores.
Em um de seus sermões, o patriarca destacou que uma das razões do conflito é a suposta oposição de seu povo às “paradas gays”.
“A Igreja de Kirill apresenta a Rússia como defensora dos valores tradicionais e familiares contra o Ocidente supostamente decadente e corrupto que apoia o grupo LGBT e todo tipo de distorção ética”, explica Horovun.
“Para eles, o Ocidente é quase como uma encarnação da força do mal. E Putin também tem essa imagem em mente”, acrescenta.
O que pode acontecer?
Várias dioceses dentro da UOC-MP já expressaram sua intenção de independência da Igreja Ortodoxa Russa.
Alguns querem inclusive convocar um conselho de bispos com o objetivo de tomar uma decisão que caminhe para abandonar sua relação histórica com a instituição liderada por Kirill.
No entanto, de acordo com o serviço ucraniano da BBC, há outros que pedem para manter a “cabeça fria”, apontando que é impossível construir uma nova Igreja durante a guerra.
O que está claro é que, após a invasão, haverá um antes e um depois nas relações entre os ortodoxos russos e ucranianos.
“Se os russos ganharem o controle da Ucrânia, o que é possível, eles terão uma igreja na Ucrânia na qual eles não confiam. Haverá bispos que disseram ‘não confio mais em você'”, observa Thomas Bremer.
“Possivelmente, eles terão que mudar o episcopado e muitos dos bispos. E acredito que muitos padres e fiéis não irão mais à igreja porque não têm mais confiança na ortodoxia russa”, conclui.
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