- Paula Adamo Idoeta
- Da BBC News Brasil em Londres
Em um corpo imaturo e ainda em desenvolvimento, uma gravidez aumenta as chances de morte para a gestante e também os riscos de complicações graves — desde perda do útero até necessidade de internação em UTI.
A gravidez na infância voltou aos holofotes nesta semana após o site The Intercept Brasil e o Portal Catarinas revelarem o caso de uma menina catarinense de 11 anos que engravidou em decorrência de um estupro e, apesar de ter direito a um aborto legal e ter manifestado esse desejo, ficou um mês em um abrigo por determinação da Justiça, para impedi-la de seguir adiante com o procedimento.
É um dos casos em que a gravidez se torna uma violência contra a mulher, diz à BBC News Brasil o obstetra Olímpio Moraes Filho, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), hospital ligado à Universidade de Pernambuco que é referência em saúde reprodutiva feminina.
Dois anos atrás, foi no Cisam que se desenrolou outro caso dramático do tipo: uma menina de 9 anos estuprada pelo tio teve a gravidez interrompida ali depois de ter tido esse direito negado em seu Estado natal, Espírito Santo.
Apesar de algumas meninas já menstruarem a partir dos 9 ou 10 anos de idade, a puberdade precoce ligada a questões sociais e hormonais não significa que o corpo delas esteja preparado para gestar ou parir, explica Melania Amorim, professora de ginecologia e obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande e coautora de diretrizes nacionais relacionadas a procedimentos obstétricos.
Na fase de crescimento do corpo, “em muitas meninas, os ossos da pélvis não estão formados, então o parto vaginal é muito difícil”, diz Amorim. Mesmo com cesárea, há riscos de sangramento excessivo, anemia, eclâmpsia (hipertensão na gravidez), partos prematuros, rompimento do útero, necessidade de transfusão de sangue ou internação em UTI.
“Dados mostram que, quando o corpo está imaturo, a chance de morte é quatro ou cinco vezes maior do que em uma gravidez em mulheres de 20 a 24 anos. Isso ainda é matematicamente pequeno, mas os riscos de complicações graves são altos, de até 10%”, afirma Olímpio Moraes.
“Tudo isso fora a dignidade humana, a saúde mental delas – de uma criança ser mãe de outra criança. É um dano gravíssimo”, avalia Moraes. “A gravidez nessa circunstância é uma tortura – tanto que é comum que essas meninas não façam pré-natal, escondam a gestação ou tentem suicídio.”
“Mesmo em meninas mais velhas, e em casos de gravidez desejada e idealizada, acaba sendo uma catástrofe, porque aumenta a chance de elas abandonarem a escola, perderem seus projetos de vida e perpetuarem ciclos de pobreza”, afirma Melania Amorim.
‘Médicos se sentem inseguros’
A interrupção da gravidez em casos de estupro é legal no Brasil, assim como no caso de riscos à saúde materna ou de anencefalia do feto.
No entanto, Moraes explica que em muitos hospitais brasileiros esse direito não é garantido às mulheres. Por esse motivo, o Cisam, no Recife, costuma receber pacientes de vários Estados do Brasil.
No caso de Santa Catarina, a menina e a mãe procuraram atendimento no hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, em Florianópolis, segundo o Intercept. No entanto, o estabelecimento não aceitou fazer imediatamente a interrupção da gravidez, porque ela havia passado das 22 semanas — apesar de o Código Penal não prever limite à idade gestacional.
O caso foi judicializado, e a juíza Joana Ribeiro Zimmer decidiu por colocar a criança em um abrigo — decisão revertida em 21 de junho. No vídeo tornado público pelo Intercept, a juíza pergunta à menina se ela “suportaria ficar mais um pouquinho” grávida, para ampliar as chances de vida extrauterina do bebê.
“Isso tudo é muito mais arriscado do que um aborto seguro, mesmo na idade gestacional em que a menina se encontrava”, aponta Melania Amorim.
“Se há jurisprudência e é legal, por que a juíza nega (o direito à interrupção da gravidez)?”, questiona Olímpio Moraes.
“Imagina então como os médicos se sentem inseguros em realizar a prática. (…) O médico morre de medo de ser processado. Em uma bola dividida (de um aborto que pode ser questionado), ele prefere fazer o que não vai causar problema para ele”, afirma — criticando também o fato de muitos médicos alegarem “objeções de consciência” para não aceitar interromper gestações, apesar de o direito à saúde se sobrepor a isso.
“Claro que se for a filha dele (quem foi estuprada e precisa de um aborto), ‘tudo bem’. Mas sempre digo em minhas aulas: não tem um código de ética médica para as pessoas que eu amo e um outro código diferente para pessoas pobres.”
Nesta quarta-feira (22/6), o Ministério Público Federal recomendou que o hospital de Florianópolis “garanta a pacientes que procurem o serviço de saúde a realização de procedimentos de interrupção da gestação nas hipóteses de aborto legal (…) independentemente da idade gestacional e peso fetal, sendo desnecessária qualquer autorização judicial ou comunicação policial” – no caso específico da menina de 11 anos, “caso ela venha a procurar o hospital e manifeste consentimento através de representante legal”.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) emitiu nota nesta quarta-feira (22/6) reforçando que “nos casos já previstos em lei (gravidez resultante de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal), não há necessidade de solicitar autorização judicial para o tratamento”.
Além disso, diz a federação, “o atraso do tratamento coloca em risco a saúde das meninas e mulheres que já têm o direito garantido e provoca desnecessária insegurança jurídica aos profissionais de saúde. O consentimento da menor e a autorização de um dos pais ou responsável são suficientes”.
Dados tabulados em 2020 pela BBC News Brasil pelo Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, apontava que o Brasil registrava, em média, ao menos seis abortos por dia em meninas de 10 a 14 anos.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desde 2018, mais da metade das vítimas de violência sexual que formalizam suas denúncias em delegacias têm 13 anos ou menos.
“Quando um caso desse (como o de Santa Catarina) acontece, você humaniza a questão”, avalia Moraes. “O abortamento precisa ser tratado com humanidade e com evidências científicas. As pessoas não são criminosas, elas precisam de ajuda.”
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