- Giulia Granchi
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Alerta: esta reportagem contém imagens que podem ser consideradas perturbadoras por algumas pessoas
Quadros graves de desnutrição e óbitos marcam a crise humanitária encontrada nas comunidades indígenas que fazem parte da Reserva Yanomami.
Embora os yanomamis tenham vasto conhecimento botânico e historicamente se sustentem pela coleta de alimentos no solo, além de pesca e caça, sua sobrevivência vem sendo continuamente ameaçada pela contaminação das águas e do solo pela prática do garimpo ilegal e a fuga da caça pela presença dos garimpeiros, problemas que se espalham pela área de mais de nove milhões de hectares localizada nas florestas e montanhas do norte do Brasil e sul da Venezuela.
Para reverter desnutrição, só ‘dar comida’ não basta
A situação é descrita por Marco Túlio, vice-presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), como a pior que já viu em seus 20 anos de carreira. “É algo que eu e meus colegas vimos em fotos nos livros durante a faculdade de medicina, mas como algo que não acontecia mais no Brasil, somente em países longíquos e muito vulneráveis.”
O cenário, aponta Marco Túlio, é resultado de uma desnutrição crônica, ou seja, muito tempo se passou sem que os integrantes da comunidade recebessem nutrição adequada.
Além da falta de alimentos, a região sofre com surtos de malária, doença infecciosa transmitida por mosquito contaminado por um protozoário.
Se não for tratada corretamente, a malária deixa causa vômitos e deixa o doente debilitado, com febre alta e dificuldade em manter ou ganhar peso.
“A desnutrição grave não é só a perda de peso acentuada, mas também representa a falta de vitaminas e nutrientes importantes, que, a depender da carência de cada organismo, pode causar problemas de pele, de visão e até neurológicos”, explica.
Como o organismo passa a funcionar com uma carga metabólica mais baixa, desacostumado a receber uma quantidade normal de alimentos, dar comida demais para alguém desnutrido acaba sendo perigoso.
“O risco é acontecer a síndrome de realimentação, um conjunto de reações clinicas e metabólicas que podem ocorrer nos primeiros cinco a sete dias da reintrodução de comida e líquidos para alguém em estado grave de desnutrição, principal se é feita de forma rápida ou exagerada”, Pedro Azollini, médico pediatra voluntário da Associação Médicos da Floresta com experiência em atendimento em comunidades yanomamis.
“Dentro das células temos minerais que ajudam a regular a atividade de músculose nervos, como potássio, fosforo, B1, magnésio. Quando alimentamos muito rápido ou com muita comida, o nível desses minerais, que já é baixo, cai ainda mais, provocando um efeito reverso do desejado. Arritmias, fraqueza muscular, falência cardíaca, convulsão e coma são algumas das consequências”, aponta Azollini, que também atua no Instituto da Criança HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
O protocolo para ajudar indígenas desnutridos durante as expedições, explica a pediatra Bruna Abilio, que também atua na Associação Médicos da Floresta, dependia do quadro de cada paciente.
“Para quem tinha uma condição mínima de comer por boca, indicávamos a realimentação por meio da UBS indígena. Pedíamos que a pessoa fosse até lá para receber a alimentação todos os dias, que era calculada por um profissional da saúde. Em geral, começa se ofertando uma quantidade menor de comida e vai aumentando o aporte calórico ao longo dos dias”, afirma a médica, que é parte do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.
A apuração do veículo jornalístico Sumauma aponta que unidades de saúde também ficaram sem alimentos adequados, chegando a oferecer apenas arroz, que tem poucos nutrientes, aos pacientes.
Já para os que apresentavam condições mais graves, como estado debilitado associado a infecções ou doenças, Abilio explica que era indicado o transporte para a capital de Roraima, Boa Vista, onde há hospitais com mais estrutura.
Pedro Azollini explica que, em quatro expedições para duas bases diferentes de comunidades yanomamis, os voluntários observaram que o cenário de desnutrição era mais crítico em terras mais próximas à atividade de garimpo ilegal.
“Alguns conseguiam ter um consumo aceitável de carboidratos, como mandioca e banana, mas ainda faltava o aporte de proteínas vindo da caça ou da pesca. Outros, como as pessoas muito magras que vemos nas imagens, tinham déficit de ambos.”
O tempo de reabilitação do organismo depende do quadro de cada pessoa.
“O tempo varia por idade e condições clínicas de cada pessoa – se há a necessidade de tratar infecções paralelas, provavelmente a recuperação será mais lenta. Em geral, a primeira semana é a mais sensível, com maior risco de síndrome de reabilitação. Em 10 a 15 dias, já é possível ver alguma melhora.”
Além da desnutrição: risco de sequelas e outras doenças e infecções
“Em nossa primeira expedição em março de 2022, já notamos um índice alto de desnutrição, principalmente infantil, e um agravo importante em idosos. Além disso, malária, verminoses e tungíase, conhecido como ‘bicho de pé’, são problemas de saúde graves para eles. A tungíase, especificamente, causa múltiplas lesões dolorosas, abre portas para outras infecções e faz com que alguns percam pedaços do pé. causando problema para caminhar e para manter seu potencial produtivo de caça e cuidados da roça”, aponta a pediatra Bruna Abilio.
A desnutrição na infância, curto médio e longo prazo. Curto prazo, suscetível a doenças, desfecho grave maior possibilidade de morte a infecções.
Media e longo, afeta de modo considerável. Diminui bastante o desenvolvimento cognitivo.
Situação da comunidade yanomami pede urgência
O cenário de crise humanitária ganhou mais notoriedade dentro do país nos noticiários dos últimos dias, mas a situação já era conhecida por voluntários como os médicos Pedro e Bruna e até por organizações de fora do país.
A resposta só acontece agora, com 15 mil médicos cadastrados da Força Nacional do SUS se disponibilizando para oferecer ajuda nas comunidades yanomamis.
Marco Túlio, vice-presidente da SBMFC, é um dos voluntários que aguardam a chamada do Ministério da Saúde. Ele afirma que ainda não há um relatório divulgado sobre o número de pessoas com desnutrição ou outros quadros, bem como suas divisões por faixa etária e número da população geral.
“Acredito que o Ministério da Saúde está trabalhando nesse levantamento, e por ora temos uma resposta boa da comunidade médica. Este é um evento sentinela, algo que vai nos deixar mais atentos a populações mais vulneráveis, não só os indígenas, mas populações em situação de rua. Precisamos trazer saúde de forma mais equitativa para essas pessoas.”
Sobre as possíveis soluções para o problema complexo das comunidades yanomamis, os médicos respondem que há necessidade de medidas de curto, médio e longo prazo.
“O primeiro passo é oferecer o que está faltando, a suplementação de comida e tratamento adequado para cada quadro. Assim tiramos as pessoas do risco iminente de morte”, diz Pedro Azollini.
“Mas ao médio e longo prazo precisamos de políticas públicas que foquem na autossuficiência desses povos, para que eles possam suprir suas necessidades de forma que não se crie dependência com não-indígenas, além do combate sério ao garimpo ilegal, que é a base do agravo desse cenário”, complementa Bruna Abilio.
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