- Author, Edison Veiga
- Role, De Salt Lake City (EUA) para a BBC News Brasil
Foi com um sorriso bonachão, uma meia-dúzia de palavras em português e uma pastinha na mão que Leland Moon me recebeu no saguão de entrada do edifício principal do FamilySearch, em Salt Lake City, Utah.
“Aqui é a Disneylândia da genealogia”, comentaria ele, minutos depois.
Especialista em história de famílias, Moon é um pesquisador voluntário do impressionante centro de documentação mantido pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida popularmente como igreja dos mórmons.
“Aqui nesta pasta está um pouco do que encontrei sobre sua família”, disse-me ele, com a certeza de que eu me surpreenderia ao ver ali, impressas, uma cópia da certidão de nascimento de minha avó materna, uma fotografia de meu primo mais velho e a certidão de casamento de um de meus tios — todos estes, já falecidos.
Dono daquele que é considerado o maior acervo genealógico do mundo, o FamilySearch é produto de um esforço iniciado pelos mórmons há quase 130 anos.
Em um imenso arquivo-cofre de mais de 6 mil metros quadrados na Granite Mountain, arredores de Salt Lake City, eles guardam 3,5 bilhões de cópias de documentos de todas as partes do mundo.
São certidões de nascimento, casamento e óbito, fotografias, batistérios, fichas de imigração… Tudo o que pode ajudar a compôr a identidade e provar parentescos entre as pessoas. O acesso a esse imenso arquivo é muito restrito — mesmo a voluntários experientes como Moon, que confessa jamais ter pisado lá.
“Por razões de segurança, para garantir a qualidade da preservação”, explica Jason Harrison, diretor dos serviços de pesquisa da instituição. Chefe de relações com a imprensa da igreja, a jornalista Irene Caso ressalta que o FamilySearch também “guarda cópias digitais em alta qualidade” em “vários locais do mundo” como medida de precaução e backup. “Seguimos normas de arquivos mundiais para garantir que haja acesso ininterrupto às coleções”, explica.
No edifício-sede do FamilySearch, portanto, o que vemos é a ponta do iceberg. O que não é pouco. Ali, todo esse imenso acervo está microfilmado. E, o tempo todo, dezenas de pesquisadores voluntários que utilizam o centro realizam digitalizações — tanto para seus interesses pessoais, quanto para contribuir para o que pode ser visto online.
O que significa que, cada vez mais, o site do FamilySearch, criado em 1999, conta com milhões de páginas de livros de registros de cartório, de igrejas, de prefeituras e de notários do mundo todo, além de cópias de documentos civis e religiosos das mais diversas procedências. Tudo aberto. Tudo grátis.
Batizar os antepassados
Isto porque a motivação desse trabalho, para os mórmons, é religiosa.
Eles começaram o projeto em 1894 — a igreja foi fundada em 1830, nos Estados Unidos. Caso conta que, na época, a instituição “percebeu que, para que sua crescente população de membros pudesse construir e compartilhar as histórias familiares, eles precisavam ter acesso aos repositórios mundiais de registros genealógicos”.
“Começou-se então a recolher livros, passando depois a oferecer seus próprios serviços de preservação de registros e acesso a arquivos de todo o mundo e, atualmente, a preservação de registros digitais e o acesso a depositários de registros, indivíduos e famílias”, complementa.
A ideia de, pretensiosamente, catalogar toda a humanidade visa a cumprir um dos pilares dessa denominação religiosa: o fato de que, para eles, os laços familiares são eternos. Mais do que isso, eles defendem o direito de batizar na mesma fé os antepassados mortos, por procuração — para isso, é preciso saber as informações básicas desse parente. Acreditam que na vida eterna, toda a família, desde o princípio, estará unida — ideia esta que torna impossível não pensarmos naqueles muitas vezes tragicômicos longos almoços de domingo com avós, tios, cunhados, primos e toda-sorte de agregados distantes.
“A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias acredita que as famílias são a unidade central de comunidades saudáveis e fortes. Quanto mais soubermos sobre os ombros ancestrais sobre os quais nos apoiamos, mais forte será nosso senso de identidade pessoal e familiar”, explica Caso.
“O conhecimento da história de nossa família também nos dá um legado ao qual devemos nos dedicar. A igreja ensina que as relações familiares queridas podem continuar após a morte. Consequentemente, a igreja fornece gratuitamente os serviços da sua organização sem fins lucrativos FamilySearch para ajudar todas as pessoas a descobrir, reunir e se conectar à sua família por meio de árvores genealógicas, registros de pesquisa, memórias.”
Por isso, há um incentivo para que cada integrante da igreja conheça pelo menos quatro gerações anteriores à sua. E, nesse sentido, o trabalho dos pioneiros da igreja, que faziam genealogias em caderninhos, acabou dando origem a esse banco de dados impressionante e plenamente digitalizado.
Mas o pulo do gato, sem dúvida, foi a abertura que eles tiveram ao mundo não religioso.
Cientes de que boa parte dos arquivos de nascimento, casamento e óbito pertencem ou a instituições civis ou, principalmente considerando os mais antigos, à Igreja Católica, os pesquisadores mórmons realizaram e ainda realizam parcerias em que costumam oferecer a digitalização completa de acervos em troca de ficarem com uma cópia em sua base de dados. Com isso, o FamilySearch se agigantou.
Atualmente, segundo Caso, há 200 operações de digitalização ocorrendo em todo o mundo.
Além do edifício-sede, há outros 5 mil centros locais em todo o mundo e mais de mil unidades de pesquisa que funcionam em bibliotecas públicas, museus e centros de visitantes. Se a abertura aos não mórmons significou um aumento considerável da base de dados, essa filosofia também é aplicada aos usuários.
Curiosos e a busca por cidadania estrangeira
“Nosso propósito é criar experiências inspiradoras que tragam alegria a todas as pessoas, à medida que descobrem, reúnem e se conectam a suas famílias, do passado, do presente e do futuro”, comenta Caso. “E quando dizemos ‘todas’, estamos querendo verdadeiramente dizer ‘todas’ as famílias.”
“Em outras palavras, todos os indivíduos, do mundo inteiro”, diz.
O site do FamilySearch está disponível em 34 línguas e recebe de 20 a 30 milhões de acesso por mês.
Meu primeiro contato com o FamilySearch ocorreu em 2017, quando eu estava às voltas com pesquisas familiares. Minha motivação não tinha nada de religiosa; faltava uma mísera porém essencial pecinha em meu quebra-cabeças genealógico para que eu conseguisse reunir toda a documentação necessária ao meu processo de reconhecimento de cidadania italiana. No caso, o documento de nascimento de meu trisavô, Nicola Castelluccio.
As informações eram discrepantes, considerando o que eu havia conseguido reunir sobre ele. Sua certidão de casamento, emitida no Brasil, não dizia nem onde, nem quando ele havia nascido. Sua certidão de óbito também não informava quantos anos ele havia vivido. Na tradição oral da família, havia menções a pelo menos quatro pequenas cidades italianas como o possível local de nascimento do ancestral.
“Da Itália, temos praticamente tudo”, gabou-se Moon, quando comecei a lhe contar essa história. No meu caso, depois que descobri que o FamilySearch tinha a íntegra — com poucas páginas ilegíveis devido a danos de intempéries, é verdade — dos livros de registros do século 19 de todas as quatro cidadezinhas-alvo de minha pesquisa, bastou traçar uma década como um recorte estimado de quando havia nascido o velho Castelluccio para empreender uma pesquisa minuciosa que durou algumas semanas.
“Muita gente hoje usa nossos serviços para matar curiosidade de seus antepassados e também para obter informações úteis em processos de cidadania”, reconhece Moon.
“O interesse pela história pessoal da família não é exclusividade de nenhuma religião em particular”, acrescenta Caso. “Pessoas de todas as religiões, ou mesmo aquelas que não praticam nenhuma, e todas as regiões parecem ter interesse em saber onde suas raízes começaram e como chegaram onde estão hoje.”
Conforme consta na entrada de número 106, manuscrita, do livro de registros de nascimento da cidade de Lagonegro, província de Potenza, meu trisavô Nicola Castelluccio nasceu às 14h do dia 28 de agosto de 1871, naquela localidade, filho de Felice Castelluccio e Brigida Di Cillo.
De olho nas novas gerações
Além do site, o FamilySearch promove iniciativas que estimulam esse interesse. Em um dos andares do prédio-sede, por exemplo, há toda a sorte de equipamentos para que qualquer um possa ir lá e digitalizar memórias familiares. Sabe aquela fita VHS antiga que não tem mais onde colocar para ver? Eles têm equipamento para transformá-lo em um arquivo digital de vídeo. A fita é Super-8? Também. Velhos DVDs? Sim, claro. A contrapartida é o pedido de que parte dessas lembranças familiares sejam arquivadas na base deles, é claro.
Em outro andar está a impressionante biblioteca, com 500 mil exemplares dedicados a histórias das famílias, de todo o mundo. Há uma seção especializada em Brasil.
“Mas o que têm mais tradição nesse tipo de publicação são os chineses”, conta Moon, para logo em seguida mostrar essa ala, tida como sua favorita.
O FamilySearch também guarda cerca de 20 mil mapas históricos. Eles eram úteis sobretudo numa era pré-internet para que os pesquisadores conseguissem traçar histórias de migrações e até mesmo checar nomes de cidades e povoados que aparecem nos documentos antigos.
No térreo, está aquilo que seria o mais próximo da “Disneylândia da genealogia” propagandeada por Moon.
Trata-se de um centro multimídia que, para a alegria das novas gerações, possibilita um percurso pela história das famílias que passa muito longe de ser entediante.
Ali, por exemplo, se você logar com seu perfil do site FamilySearch, um terminal multimídia vai buscar as informações de sua árvore genealógica para contar a história de sua família.
No caso de quem vive no continente americano, o barato é ver o paralelo com o contexto histórico que levou ao movimento das migrações da Europa para o Novo Mundo. Ao mesmo tempo em que a sua família é mostrada, fatos de dimensão histórica são apresentados, dando um panorama.
Também é possível imprimir a árvore genealógica em grandes dimensões, tirar selfie com um cenário falso que aluda à localidade de origem de seu antepassado preferido e ainda há algumas salas-estúdio onde famílias são convidadas a agendar horários e registrar suas memórias — um espaço que costuma ser muito requisitado por quem quer gravar um longo depoimento daquela avó velhinha, do tio que viveu as aventuras mais incríveis ou da tia-avó que tem as melhores receitas do universo.
Os mórmons se esquivam da pergunta de quanto custa manter toda essa estrutura e esses serviços. Afirmam que a ação é inteiramente bancada pela igreja — com a ajuda de valiosos patrocinadores, todos da mesma fé.
Fonte: BBC
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