- Pablo Uchoa
- De Londres para a BBC News Brasil
Quando subiu a rampa do Palácio do Planalto, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro (PL) ainda adotava uma retórica abertamente hostil contra a China.
O então recém-eleito presidente vaticinava contra o regime comunista de Pequim, que acusava de estar “comprando o Brasil”.
Fã de Donald Trump, Bolsonaro fazia coro com a retórica americana que fazia uma guerra comercial com a China. No Brasil, temeu-se por laços bilaterais que haviam crescido enormemente nos governos anteriores de esquerda.
Quatro anos mais tarde, o quadro geopolítico mudou. Com a partida de Trump, Bolsonaro perdeu seu principal aliado. Os constantes ataques do presidente às instituições brasileiras suscitam preocupações nos Estados Unidos e na Europa. A avaliação é que uma aproximação com Brasília seria problemática na hipótese de uma reeleição.
A ironia é que uma situação de isolamento do Brasil em relação ao Ocidente beneficiaria justamente as relações com a China. Para alguns analistas, inclusive, um Brasil isolado sob Bolsonaro seria uma “oportunidade de ouro” para Pequim.
Relação China-Brasil
A China é o maior parceiro comercial do Brasil, destino de quase um terço das exportações do país. Além da importância em volume de comércio, o Brasil é também um dos poucos países do mundo que mantêm superávit com Pequim, destaca a diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Cláudia Trevisan.
Em 2021, a China foi responsável por 66% do superávit comercial do Brasil e neste ano o patamar está em 53%. Até agosto, o Brasil vendeu para o mundo US$ 44 bilhões a mais do que comprou, e a China respondeu por US$ 23,4 bilhões deste saldo.
No ano passado, ainda segundo o CEBC, as empresas chinesas investiram US$ 5,9 bilhões em 28 projetos no Brasil, em especial no setor de petróleo e energia. Foi o maior valor desde 2017.
Comparado ao ano anterior, quando a pandemia levou a uma queda brusca nos fluxos, o aumento foi de 200%. Enquanto isso, o investimento da China no resto do mundo cresceu apenas 3,6%, totalizando US$ 116 bilhões.
O China Global Investment Tracker, uma ferramenta que monitora os investimentos chineses no mundo, estima que o Brasil foi o principal destino desse fluxo em 2021, com participação de 13,6% do total. Historicamente, fica em quarto lugar, atrás apenas dos EUA, Austrália e Reino Unido, afirma Trevisan.
Além disso, junto com Rússia, Índia e África do Sul, os dois países são parte dos Brics — o grupo de países emergentes que ajudou a projetar o Brasil na geopolítica mundial.
‘Vírus chinês’
Apesar dessa importância econômica e estratégica chinesa, no início do governo Bolsonaro a relação sino-brasileira viveu um momento conturbado. O pior momento foi durante a pandemia do coronavírus, quando o presidente chegou a repetir a teoria de que Pequim criara o vírus em laboratório para dominar o mundo.
Temeu-se que a troca de farpas prejudicasse o fornecimento de vacinas contra a covid. Os dissabores foram apontados como fator para a decisão chinesa de suspender a importação de carne brasileira em setembro de 2021, oficialmente em consequência da descoberta de dois casos da doença da “vaca louca”.
Trevisan observa, entretanto, que as tensões não escalaram para além das palavras. “Apesar de toda a retórica anti-China de alguns integrantes do governo Bolsonaro, isso não se traduziu em ações discriminatórias quanto à China no plano econômico,” diz.
Pelo contrário, o governo brasileiro não cedeu às pressões do governo americano para vetar a participação da Huawei na rede de 5G, atendendo às operadoras brasileiras que alegavam que a impossibilidade de comprar equipamentos da empresa chinesa elevaria custos.
Durante a cúpula virtual do Brics em setembro passado, Bolsonaro descreveu a China como “essencial para a gestão adequada da pandemia no Brasil”, já que os insumos para aplicação das vacinas contra a covid-19 vinham do país asiático.
Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas) em São Paulo, avalia que os episódios que azedaram a relação no início do governo Bolsonaro estão superados.
“Esse aumento dos investimentos mostra que a relação política entre Bolsonaro e a China talvez não seja a melhor [possível], mas deixou de ser ruim a ponto de contaminar a relação econômica”, diz Stuenkel à BBC News Brasil.
Como resultado, a China se encontra numa posição privilegiada de poder beneficiar-se das relações com o Brasil, independentemente de quem ganhe as eleições. Inclusive se o vencedor for Bolsonaro.
‘Vácuo’ do Ocidente
No atual quadro geopolítico, o presidente brasileiro está isolado. Por seu discurso em relação à Amazônia e as menções constantes de ruptura institucional, Bolsonaro é visto com suspeição em Washington e nas capitais europeias.
Para Stuenkel, o presidente brasileiro se tornou “tóxico” para outros líderes ocidentais, e um segundo mandato seu, mesmo que conquistado de forma legítima, poderia levar a um esfriamento das relações do país no plano internacional.
“A expectativa em geral no Ocidente é que, mesmo se Bolsonaro for reeleito de maneira limpa, haverá uma intensificação e uma aceleração de uma possível erosão da democracia, porque os europeus olham para o Brasil e lembram da Venezuela, da Nicarágua, da Hungria, da Turquia, da Rússia. Em todos esses lugares, a erosão pra valer só aconteceu depois da reeleição”, afirma Stuenkel.
Este sentimento foi reforçado depois da reunião com dezenas de diplomatas no Planalto no dia 18 de julho, na qual Bolsonaro fez críticas às urnas eletrônicas. Várias fontes diplomáticas que conversaram com jornalistas se disseram preocupadas com as intenções do presidente, observando que nunca houve casos comprovados de fraude desde que as urnas eletrônicas entraram em uso em 1996.
Em função disso, agrega Stuenkel, “o espaço para preservar os laços [com o Ocidente] seria muito reduzido. Bolsonaro é tão tóxico que qualquer plano por parte do Ocidente de tentar conquistar mais espaço no Brasil estaria fadado ao fracasso.”
O vácuo poderia ser preenchido por Pequim, argumenta o cientista político.
“A concorrência que a China enfrentaria num Brasil isolado seria muito menor do que a concorrência em um país plenamente integrado. É um país onde outros talvez não gostariam de investir, por causa do custo político”, diz.
‘China ditaria termos da relação’
Mas enquanto os números demonstram a posição privilegiada da China para se beneficiar da relação com o Brasil, há discordâncias, entre analistas, sobre qual ocupante do Planalto seria mais vantajoso para Pequim.
Em um artigo na revista acadêmica americana Foreign Policy, Stuenkel acendeu uma controvérsia ao dizer que o regime comunista chinês preferiria a continuidade de Bolsonaro. À BBC News Brasil, o analista disse que “a China percebe que países isolados do Ocidente são bons parceiros, porque eles não têm outras alternativas”.
Stunkel nota que “isso não tem a ver com esquerda-direita” e cita os governos da Hungria, Rússia, Nicarágua e Venezuela, países que variam da extrema-direita à esquerda radical. “Todos esses países que acabam sendo isolados diplomaticamente do Ocidente se aproximam de Pequim e Pequim consegue ditar os termos dessa aproximação”, diz.
“Bolsonaro, por incrível que pareça, é hoje um parceiro que está tão isolado no Ocidente que não tem mais como bater na China. Se amanhã a China invadir Taiwan, Bolsonaro não vai falar nada. Não tem como.”
Stuenkel crê que um Brasil integrado seria menos dependente da China e tenderia a buscar protagonismo em espaços globais, como o Fórum Econômico Mundial, a ONU (Organização das Nações Unidas) e o G20.
‘Para China, interessa um Brasil forte’
Outros analistas discordam dessa avalição, lendo o contexto geopolítico de forma diferente.
Atualmente, a China se encontra sob pressão do Ocidente na questão de Taiwan e dos direitos humanos em suas regiões autônomas; sua aliança com a Rússia é afetada pela guerra na Ucrânia; na economia, o país enfrenta a competição de nações vizinhas, como a Índia.
Nesse sentido, um Brasil integrado ao mundo seria mais vantajoso para Pequim, inclusive pelo potencial de abrir portas para diálogos comerciais na América Latina.
Rodrigo Zeidan, professor de Finanças e Economia da New York University em Xangai e da Fundação Dom Cabral, enfatiza a importância política do Brasil para a China, mais que econômica.
Entre 2018 e 2021, embora o comércio bilateral tenha crescido 37%, passando de US$ 99 bilhões para mais de US$ 135 bilhões, o peso do Brasil no total negociado pela China com o mundo ficou estável e até decresceu, em torno de 2%.
Na relação geopolítica, porém, as coisas adquirem pesos diferente, afirma Zeidan. “Quando você tem coisas como os Brics, o Brasil tem uma participação muito maior para a política chinesa do que um país como a Indonésia, que tem a mesma população, tem uma economia similar e está do lado da China, mas não faz parte dos Brics”, argumenta.
“Então nesse sentido o Brasil tem mais importância dentro dos discursos políticos chineses, porque os Brics são uma instituição formal.”
Para Zeidan, as relações atuais do Brasil com a China são “basicamente frias” e “não se desenvolveram nesses últimos quatro anos como poderiam ter se desenvolvido sem retóricas contra o investimento chinês, retóricas nacionalistas, retóricas anticomunistas”.
Salientando que o regime chinês é “nacionalista” e prefere não externar preferências políticas por este ou aquele candidato, Zeidan enfatiza o bom histórico das relações bilaterais sob os dois governos Lula.
“No caso do Lula, o governo teve excelentes relações diplomáticas, avançou os Brics. Se for pra ter preferência, não tenho dúvida que a China vai preferir a vitória de um presidente que já teve boas relações com a China,” diz.
Cláudia Trevisan, do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), aponta também a possibilidade de que uma vitória de Lula revigore o Fórum China-Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), o principal diálogo da China com a América Latina. O Brasil abandonou a Celac em janeiro de 2020 e desde então o fórum perdeu peso.
“Uma eventual volta de Lula vai levar ao regresso do Brasil à Celac, o que vai fortalecer o diálogo da China com a América Latina”, aponta.
Manutenção da institucionalidade
Trevisan sublinha, principalmente, que as relações da China com o Brasil são estratégicas e de alto nível, e que o interesse na parceria deve continuar aceso independente de quem ganhe as eleições.
“A relação Brasil-China é muito institucionalizada, em um grau que o Brasil tem poucos parceiros”, explica. “Tem mecanismos de diálogo de alto nível que continuaram funcionando durante o governo.”
O melhor exemplo é o diálogo presidido pelos vice-presidentes da China e do Brasil, através da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban). A iniciativa tem 11 subcomissões, que abrangem diálogos sobre tecnologia, finanças, agricultura, turismo, cultura e saúde. O planejamento estratégico considera um prazo de dez anos, com cronogramas executivos de cinco.
“Então isso faz com que as burocracias dos dois países tenham contato frequente”, diz Trevisan. “Não acho que haverá, com Bolsonaro ou Lula, ruptura nessa institucionalidade. Os diálogos com a China vão continuar.”
Futuro da relação
Hoje a China é o principal destino para o petróleo brasileiro, um posto anteriormente ocupado pelos EUA. Da mesma forma, o Brasil fornece 20% das importações de alimento da China, tendo desbancado os EUA nas exportações de soja.
Mas Trevisan diz que a CEBC tem identificado novos setores estratégicos de cooperação comercial: por exemplo, a área de sustentabilidade, que incluiria finanças verdes, agricultura de baixo carbono e o mercado de carbono, no qual a China precisaria adquirir créditos para compensar seu veloz crescimento.
Empresas chinesas já estão presentes no setor de energia solar e eólica, como a China Three Gorges, que possui 17 usinas hidrelétricas e 11 parques eólicos no Brasil. Outras possíveis fontes de investimentos são a área de eletrificação da mobilidade urbana, tecnologia da informação e o comércio eletrônico. Trevisan afirma que o comércio virtual seria um canal importante para diversificar e aumentar o valor das exportações do Brasil para a China no futuro.
“A gente avalia que sustentabilidade e tecnologia são dois setores que tendem a atrair cada vez mais investimentos chineses e que podem colocar essa relação no futuro”, afirma. “Conectar essa relação com uma agenda do futuro.”
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