- Marcia Carmo
- De Buenos Aires para a BBC News Brasil
A eleição presidencial brasileira deve impactar os demais países da América Latina, na visão de analistas, políticos e cidadãos ouvidos pela BBC News Brasil, e se refletir nas relações políticas, na economia, no comércio, no debate ideológico e no voto dos eleitores além das fronteiras brasileiras.
A atual percepção sobre o efeito da eleição brasileira ocorre porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL), que lideram as pesquisas de intenção de voto, são conhecidos dos eleitores dos países vizinhos que acompanham a corrida ao Palácio do Planalto.
Lula já era renomado por ter governado o Brasil durante dois mandatos e, mesmo antes de ser presidente, entre sindicalistas e acadêmicos por sua trajetória de vida. Bolsonaro passou a ser conhecido, principalmente, após sua eleição em 2018.
“O Brasil tem um peso maior do que o do México e o da Argentina e não só na América Latina. E o resultado eleitoral pode irradiar para toda a região”, diz o cientista político Juan Lucca, professor da Universidade Nacional de Rosario.
Para Amílcar Salas, professor de Ciências Políticas da Universidade de Buenos Aires (UBA), essa é uma eleição “decisiva” no âmbito regional e também global.
Os que são simpatizantes de Lula acreditam que sua eleição poderia consolidar um “giro à esquerda” da região, especialmente a América do Sul e reaquecer o diálogo entre países com líderes que fazem parte deste campo do espectro político.
Os que não o apoiam entendem que a reeleição de Bolsonaro evitaria o fortalecimento dos movimentos políticos definidos como de esquerda ou centro-esquerda e o presidente brasileiro se firmaria como uma referência para a direita na região.
Em 22 de setembro, a eleição e a recente história política brasileira foram tema de seminário, com sala lotada, na Universidade Nacional de San Martín (UNSAM), na Argentina.
“Em 2018, não vislumbrávamos um Bolsonaro na Argentina. E, agora, com a radicalização da direita, nada seria impossível”, comentou um dos presentes na plateia.
A percepção é que, além das questões de geopolítica, o resultado das urnas brasileiras poderiam ter influência no voto do eleitorado vizinho.
Uma fisioterapeuta da cidade de Buenos Aires, que se declarou avessa ao kirchnerismo, liderado pela ex-presidente e vice-presidente Cristina Kirchner, disse à reportagem que espera que o presidente Bolsonaro seja reeleito. E não porque ela seja bolsonarista.
“Se Lula for eleito, apoiará Cristina. E não quero que ela volte a ser presidente. Temos uma série de problemas aqui, como a inflação altíssima, que o kirchnerismo não resolve e, além disso, Cristina tem várias denúncias na Justiça”, disse.
Um assessor de uma das maiores entidades do agronegócio na Argentina observou que “não é que exista simpatia clara do ramo por Bolsonaro”, mas que o problema, neste caso, é que os produtores rurais e o kirchnerismo vivem em “constante queda de braço” e, caso Lula seja eleito, esse movimento político poderia sair fortalecido.
Existe outro argumento, disse o assessor, o entendimento de que, apesar das dificuldades, a economia brasileira “vai bem melhor” do que a da Argentina.
A cientista política Dolores Rocca Rivarola, da UBA, recorda que Bolsonaro passou a ser conhecido na Argentina quando discursou, em 2016, e surpreendeu os argentinos. Naquele discurso, ele defendeu o coronel Brilhante Ustra, militar reconhecido pela Justiça como torturador.
Em 24 de setembro, o político kirchnerista Axel Kicillof, governador da Província de Buenos Aires, a maior do país, participou de um ato de campanha, com artistas argentinos, na cidade de La Plata, em apoio à eleição de Lula, em mais um sinal da influência direta do que ocorre no Brasil.
Defender, publicamente, o retorno do ex-presidente ao Planalto, passou a ser algo frequente nesta campanha, como se viu no seminário da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), realizado no mês passado, em Buenos Aires.
“Que o Brasil regresse à Celac, com Lula, obviamente”, disse a mexicana Alicia Bárcena, ex-secretária executiva da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal).
Segundo ela, o combate à pobreza foi uma de suas políticas, na Presidência, que deve ser destacada e que esteve em sintonia com outros governos da região, na época.
No mesmo encontro, o ex-primeiro-ministro da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero disse que, caso Lula seja eleito, o Brasil e a América Latina como um todo ganharão maior peso no cenário internacional.
“Somente a América Latina não tem confrontos com outros continentes e possui relações amplas no âmbito comercial, incluindo Estados Unidos e China”, declarou.
“Estes são ativos importantes para a reconstrução do sistema multilateral. Mas está claro que isso só poderá ser feito depois da eleição no Brasil. E o que esperamos é que o Brasil vote em Lula.” A plateia aplaudiu e alguns gritaram: “Lula já”.
Na visão de políticos de centro-esquerda e esquerda, o retorno de Lula à Presidência será decisivo para a retomada da fluidez do diálogo regional. Nos bastidores do governo argentino, afirma-se que “será mais fácil trabalhar com um (eventual) governo Lula”.
O raciocínio inclui o fato de países da América do Sul serem presididos por líderes do espectro político de Lula, como Gabriel Boric no Chile, Gustavo Petro na Colômbia, Luis Arce na Bolívia e Alberto Fernández na Argentina.
Hoje, os presidentes pouco dialogam em relação a tempos passados. “O problema não é que Bolsonaro e Fernández não se falam. O fato é que Bolsonaro não fala com ninguém”, disse o ex-chanceler do governo Lula, Celso Amorim.
‘Bolsonaro faz excelente governo’
Ao contrário da eleição de 2018, quando a extrema-direita estava praticamente ausente do debate político argentino, agora o nome de Bolsonaro é associado a este setor que passou a fazer parte das pesquisas de opinião e preferências, ainda que tímidas em relação aos demais movimentos políticos, do eleitorado argentino.
Em entrevistas, o político Javier Millei, que busca ser presidente e é amigo do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), tem elogiado e declarado respaldo à reeleição do presidente brasileiro.
“Bolsonaro está fazendo um excelente governo. É bom se ter consciência do que está acontecendo na economia brasileira, que registra deflação. O problema é a esquerda”, disse Millei.
Em uma paródia que fez recordar uma das músicas da Copa do Mundo, um “Jair” cantou em um quadro de humor político na emissora de televisão TN: “Argentina, decime que se siente con inflación del 90%” (Em tradução livre: Argentina, me diz como se sente com uma inflação de 90%). A expectativa é que a Argentina registre este índice de aumento de preços neste ano.
Entre os analistas ouvidos pela BBC News Brasil sobre os possíveis impactos da eleição brasileira, Juan Lucca diz que o efeito é inegável.
“Com Lula eleito, a expectativa é que a região, como um todo, volte a crescer, especialmente se ocorrer um novo boom de commodities (como do início do século)”, disse o cientista político.
“Se Bolsonaro for reeleito, já sabemos o cenário que existe. Mas a influência política (direta), no caso da Argentina, que realiza eleição presidencial no ano que vem, vai depender do desempenho do (eventual) governo Lula. As pessoas no Brasil terão pressa de resultados, e isso pode influenciar a eleição argentina também.”
Para o professor, a influência da eleição brasileira poderá ocorrer em quatro pilares: político, econômico, comercial e ideológico.
Ele concorda de certa forma com Zapatero ao dizer que, caso Lula seja eleito, poderão surgir debates internacionais como a ampliação dos Brics, bloco de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Setores da Argentina defendem a entrada do país no grupo.
Salas também acredita que, com Lula na Presidência brasileira, a Argentina poderia “consolidar” sua entrada no bloco. Além disso, afirmou, o Mercosul ganharia novo impulso.
Para ele, uma eventual eleição de Lula “teria impacto positivo” na política interna de outros países, como Argentina e Paraguai, por exemplo.
‘Diálogo presidencial esfriado’
Na visão dos analistas, o diálogo presidencial voltaria a ser mais constante na região. “Com Bolsonaro, no Brasil, com Lacalle Pou, no Uruguai, e com Marito (Mario Abdo Benítez) no Paraguai, isto hoje não ocorre”, diz Lucca.
Fontes dos governos do Uruguai e do Paraguai argumentam que a pandemia contribuiu para esfriar o diálogo, já que cada um se voltou para cuidar de seus próprios problemas.
A eleição brasileira, entende o analista, pode “irradiar” para o resto da região, fortalecendo o centro-esquerda e setores da esquerda, como a Frente Ampla, no Uruguai.
Para Lucca, se Bolsonaro for reeleito, a “direita radical” o terá como referência ainda mais forte.
“Neste caso, Javier Millei e outros que se definem como ‘libertários’ e os que defendem a tenência de armas terão mais motivos para justificar seus discursos”, afirmou.
E o amplo e histórico movimento peronista, hoje fragmentado, precisará se unir, como opção de centro-direita e até à esquerda.
O analista venezuelano Luis Vicente León, da consultoria política Datanalisis, o impacto da eventual reeleição de Bolsonaro, em termos regionais, seria “menos relevante” que no caso da eleição de Lula.
“Lula poderia, sem dúvida, representar a consolidação de grupos mais de esquerda, com seus diferentes matizes, e acho que isso abriria portas para o fortalecimento dos grupos regionais com blocos, incluindo uma recolocação da Venezuela”, disse.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Você precisa fazer login para comentar.