- Author, Luiz Antônio Araujo
- Role, De Porto Alegre para a BBC News Brasil
Sistema antienchente, casas de bombas, desassoreamento, cidade-esponja…
Até maio passado, palavras como essas deixariam a maioria dos porto-alegrenses atônitos.
A catástrofe de maio afetou mais de 160 mil pessoas, 39 mil edificações, 5,4 mil indústrias, 160 estabelecimentos de ensino e 31 de saúde na cidade.
Poucos meses depois, foi a vez de o assunto dominar as campanhas de candidatos a prefeito e vereador nas eleições municipais.
No segundo turno da disputa pela Prefeitura, a pauta tem oposto Sebastião Melo (MDB), candidato à reeleição, e Maria do Rosário (PT).
Um dos principais pontos de discordância diz respeito ao chamado Sistema de Proteção contra Inundações, concluído nos anos 1970 após o trauma de 1941, quando o Lago Guaíba inundou parte da cidade e deixou 70 mil desabrigados.
O sistema tem mais de 60 quilômetros de diques externos (em vias como a rodovia Oswaldo Aranha e avenida Castello Branco) e internos (em cursos d’água que deságuam no lago).
O Centro Histórico passou a ser guarnecido pelo Muro da Mauá, uma estrutura de seis metros que se estende ao longo de 2,6 quilômetros. Essa é a barreira mais visível contra as cheias aos olhos da população.
O muro e os diques foram dotados de 14 comportas que podem ser fechadas em caso de risco. A fim de resolver o problema das inundações no interior da cidade a partir dos arroios, foi concebido também um sistema de drenagem composto por 23 casas de bombas encarregadas de devolver a água ao Guaíba.
O prefeito Sebastião Melo, que teve 345.420 dos votos (49,72%) no primeiro turno, afirma desde maio que o complexo de proteção concebido entre as décadas de 1960 e 1970 tem de ser “revisitado”.
Nos debates, o prefeito disse que o sistema “se mostrou insuficiente para a quantidade de cheias que enfrentamos”.
Com 182.583 votos (26,28%) no primeiro turno, Rosário diz que o sistema anticheia é eficiente, mas que a gestão de Melo tornou a cidade vulnerável ao descuidar de vistorias, da reposição de peças, da transparência e da comunicação adequada.
A petista criticou também a terceirização e a privatização de órgãos públicos.
“A crise que vivemos não é um acaso, não é uma fatalidade. De um lado ela foi construída pelo negacionismo e imobilismo diante das mudanças climáticas, de outro pelo desmonte da gestão pública, desvalorização de seus peritos, técnicos e engenheiros”, afirma a petista no primeiro parágrafo de seu plano de governo.
Em vez de mudanças climáticas, o atual prefeito costuma falar em “adaptação climática” e “governança climática”.
Até a Justiça Eleitoral foi chamada a decidir sobre representação de Melo que pedia remoção de um grafite no qual é retratado submerso na água da enchente – o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) recusou a demanda.
O prefeito argumenta que a prevenção de desastres naturais é responsabilidade do governo federal, que construiu o sistema de proteção de 1970 por meio do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS).
No primeiro debate do segundo turno, na Rádio Gaúcha, o prefeito chegou a ler o artigo 21 da Constituição Federal, segundo o qual compete à União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”.
Melo acusa os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT, de não investir na manutenção do sistema. Ele também defende que a responsabilidade por eventuais falhas tem de ser dividida entre todos, incluindo prefeitos do PT que administraram Porto Alegre por quatro mandatos (1989-2004).
Rosário afirma que a União cumpriu o seu papel ao construir na capital gaúcha um sistema contra as cheias, mas diz que a responsabilidade de zelar pelo patrimônio, que é da prefeitura, foi negligenciada.
“Não é o presidente Lula que tem de cuidar o assoreamento de bueiro e fazer hidrojateamento”, rebateu no debate da Rádio Gaúcha.
Um terceiro ponto de diferença entre os candidatos está relacionado à necessidade de recriação do antigo Departamento de Esgotos Pluviais (DEP).
Essa autarquia, concebida nos anos 1970 para operar o sistema de drenagem da cidade, foi extinta em 2019 na gestão do prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) e teve suas funções absorvidas pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae).
Eram técnicos e operários do DEP que mantinham e supervisionavam as casas de bombas, equipamentos responsáveis pela devolução ao Guaíba da água acumulada na rede pluvial.
Enquanto Rosário prega a recriação e o fortalecimento do DEP, Melo diz que a autarquia não fez nada pelo município e não merece nova chance.
Reconstrução de áreas afetadas
Melo e Rosário tampouco coincidem em relação à reconstrução de Porto Alegre.
Para o prefeito, a reconstrução já começou por meio da reabertura de espaços públicos, do apoio ao empreendedorismo, das “parcerias” (transferência à iniciativa privada de ampla parcela de serviços municipais) e dos reparos em diques e outras estruturas.
A candidata do PT, por seu lado, diz que o emedebista privilegia os interesses dos grandes grupos econômicos e pinta um quadro irreal da cidade.
“Eu queria viver na Porto Alegre da propaganda do Melo”, dizia um locutor em uma propaganda de Rosário no primeiro turno.
Ela se apresenta como mais capacitada para reerguer a cidade por conta de sua proximidade com Lula e por conta de suas experiências no Legislativo e no governo federal.
Procurado pela BBC News Brasil, o comitê de Melo não havia dado retorno até o fechamento desta reportagem.
Designado pela campanha de Rosário para falar sobre o assunto, o engenheiro eletricista e ex-diretor do DEP Vicente Rauber diz que o atual sistema de proteção de Porto Alegre, desenvolvido por técnicos alemães, é “suficiente, atual e robusto desde que tenha manutenção necessária e operação adequada”.
“Os alemães sugeriram um sistema muito simples, semelhante ao da Holanda, que poderia ter evitado em 90% a inundação de Porto Alegre”, sustenta.
“Por que não se evitou? Porque não há manutenção das 14 comportas externas ao longo do Muro da Mauá e da avenida Castello Branco. Além disso, as comportas das casas de bombas, que estão em sua maioria na mesma cota [nível] do Guaíba, também não receberam manutenção, no mínimo, desde 2020”, diz o ex-diretor do DEP.
Rauber discorda de Melo no que toca à responsabilidade da União.
“Quando a União contratou engenheiros alemães através do DNOS e construiu o sistema, fez a sua parte. O acompanhamento e a prevenção é atividade de saneamento, e saneamento é atribuição constitucional dos municípios”, defende.
O representante da campanha de Rosário diz que as obras necessárias, como conserto das comportas externas das casas de bombas e reconstrução do dique que protege o bairro Sarandi, destinam-se a reforçar o sistema e não abandoná-lo.
Ele não acredita na viabilidade e na eficácia de uma reforma das casas de bombas para elevar a altura dos motores, uma das soluções que têm sido defendidas desde a enchente.
“Que bobagem [levantar os motores]. Não vai ser feito. Cada motor, cada bomba tem seu encaixe. Teriam de ser desmontados. O sistema foi construído para proteger a cidade, não para limpar a cidade”, destaca.
O professor do Instituto de Pesquisas Hidrológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Dornelles diz que, em vez de desenvolver percepções de ocasião sobre o problema das enchentes, Porto Alegre necessita de “uma política de prevenção dissociada das marés políticas”.
O pesquisador diz que o sistema atual é falho e precisa ser revisto.
“Não tem como dizer que foi um sucesso. Fracassou miseravelmente”, garante.
O problema, na visão de Dornelles, é que, mesmo que a cota de seis metros para a qual a estrutura foi projetada não tenha sido atingida, as casas de bombas foram inundadas.
“O projeto original não previa casas de bombas que trabalhassem com sistema inundado”, argumenta.
Dornelles expressa ceticismo em relação a duas medidas que têm sido defendidas com frequência.
A primeira é a prioridade para o desassoreamento (retirada de sedimentos como areia e cascalho) do Guaíba e dos rios que compõem sua bacia hidrográfica.
“Desassoreamento depende de estudo que estabeleça quanto as obras vão conseguir baixar da linha d’água, qual será o custo e a periodicidade do serviço. Tirar sedimentos vai provocar movimentações no curso dos rios. O orçamento ficará na casa dos bilhões. Vale a pena investir tanto?”, questiona.
A ideia das cidades-esponja, por sua vez, é vista pelo professor como apropriada para áreas urbanas, mas incapaz de livrar as cidades da bacia do Guaíba de uma inundação como a de maio.
“O conceito de cidade-esponja depende de escala e de tamanho de bacia. A área urbana da bacia do Guaíba equivale a cerca de 3%. Nessa proporção, não há esponja capaz de absorver o volume d’água que se fez presente”, afirma.
Possível reeleição indica que enchentes ficaram no segundo plano?
O cientista político Carlos Borenstein, da consultoria Arko Advice, afirma que o fato de Melo ter vencido o primeiro turno e ser favorito no segundo turno, de acordo com as pesquisas, não significa que a enchente não teve importância no pleito.
“A enchente foi tema dominante na propaganda e nos debates desde o primeiro turno”, argumenta.
A questão não é saber se o eleitor levou ou não em consideração a catástrofe climática na hora de votar, e sim levar em conta as diferentes abordagens do assunto pelos candidatos.
“A campanha de Melo teve um grande acerto estratégico: o de afirmar que diferentes cidades do mundo sofreram com enchentes e que, portanto, o prefeito não é o culpado”, assinala Borenstein.
Até maio, quando ocorreram as enchentes, Melo já aparecia como favorito nas pesquisas de intenção de voto e sua administração era bem avaliada pelos porto-alegrenses, lembra Borenstein.
“Se não tivesse ocorrido enchente, a reeleição de Melo em primeiro turno seria muito provável. Mesmo com a enchente, ele quase se reelegeu no primeiro turno, o que significa que, para o eleitorado, o balanço de seus quatro anos de governo é positivo”, explica.
O próprio slogan do prefeito dialoga com esse estado de espírito, diz o cientista político, ao utilizar o mote “Porto Alegre melhorou”.
“É claro que o prefeito se aproveita dessa situação para se eximir da própria responsabilidade pelas falhas de sua gestão, mas, no final das contas, consegue impor o conceito de que melhorou a cidade”, conclui o cientista político.
Fonte: BBC
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