- Author, Roberto Valencia
- Role, Especial para a BBC News Mundo em El Salvador
“Meu filho não é membro de gangue e o prenderam injustamente, devido ao regime de exceção”, diz José Santana Guzmán, um homem forte de 61 anos, prestes a chorar.
Ele fala à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, junto com María Hernández e Wendy Rivas, mãe e companheira, respectivamente, de Fredy Orlando Guzmán — uma das 76.757 pessoas presas pelo Estado salvadorenho até 27 de janeiro, desde que o presidente Nayib Bukele estabeleceu, em março de 2022, o regime de exceção.
A polêmica medida acumula inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, detenções arbitrárias, violações do devido processo legal e tortura e morte de centenas de presos. No entanto, é também a mais popular das ações do atual governo em sua “guerra às gangues” e pela qual Bukele é o grande favorito nas eleições de domingo (4/2).
“Esse desgraça aconteceu conosco, mas a verdade é que o país está melhor do que nunca”, diz José, “e toda a minha família vai votar em Bukele”.
As pesquisas feitas nas semanas anteriores às eleições garantem ao partido no poder uma vitória esmagadora.
As medições realizadas pela Universidade Centro-Americana (UCA), pela Universidade Francisco Gavidia e pela Fundaungo dão 82%, 90% e 87% de intenção de voto válida, respectivamente.
Em 2019, Bukele conquistou seu primeiro mandato com 53% dos votos.
“Vou votar no Bukele porque agora, quando você sai, você se sente livre, tranquila”, acrescenta Wendy, companheira de Fredy, sobre a paz recuperada após anos de controle, violência e extorsão por parte das gangues.
“E quem é criminoso tem que pagar por ser criminoso. O que não achamos correto é que os promotores, talvez para cair nas boas graças do presidente, façam uma armação como dizer que jovens que não são de gangue são de gangue, como meu filho”, diz José.
A “guerra às gangues” fez de El Salvador um país muito mais seguro, segundo moradores, mas também um dos que possui maior índice de população encarcerada.
José, pai de Fredy, tem 61 anos e é funcionário da Direção Geral dos Centros Penais há 26 anos.
Ele trabalhou como guarda em muitas prisões do país e viveu na linha de frente nos anos em que os agentes penitenciários estiveram na mira das gangues MS-13, Barrio 18-Sureños e Barrio 18-Revolucionarios.
“Muitos dos meus companheiros morreram nas mãos de bandidos, mas hoje, olha, é possível sair tranquilamente”, diz.
El Salvador fechou 2023 com uma taxa de 3,4 homicídios por 100 mil habitantes (2,4, segundo o governo, que exclui da contagem os homicídios causados por forças de segurança e cidadãos que matam em suposta legítima defesa). Há apenas oito anos, em 2015, a taxa era de 106, a mais alta do mundo.
Outros crimes relacionados com a atuação de gangues, como extorsão ou desaparecimento de pessoas, também apresentam mínimas históricas.
Preso em um campo de futebol
Fredy está preso desde 14 de janeiro de 2024.
Como quase todos os domingos, ele estava em um campo de futebol. Ele não joga mais devido a um delicado estado de saúde, mas é o representante do time de uma pequena cidade chamada El Carmen (Cuscatlán), a cerca de 40 quilômetros da capital El Salvador.
Um grande grupo de policiais chegou com um mandado de prisão e o levou embora. Ninguém interveio: há muito medo em El Salvador, precisamente por causa do regime de exceção.
A família já tem uma carta assinada pelo presidente da liga municipal que explica que Fredy faz parte da diretoria e o elogia como um dos jovens mais atuantes na “coordenação de eventos esportivos de recreação saudável para jovens e adultos”.
A família recebeu a notícia da prisão como um balde de água fria. Durante os primeiros 21 meses de regime, Fredy andava com total liberdade.
“Eles até o pararam várias vezes, pediram a documentação dele, verificaram se ele não devia nada e o soltaram”, conta Wendy. Isso até 14 de janeiro de 2024.
Eles não sabem por que ele foi preso. Agora tudo que eles podem fazer é especular. Eles acreditam que talvez o tenham perseguido porque em 2021 ele passou alguns meses preso acusado de ter participado de uma briga, processo do qual foi absolvido pelo Tribunal de Sentenças de Cojutepeque.
Outra hipótese que consideram é que uma vizinha com quem Wendy teve problemas tenha aproveitado a oportunidade para apresentar uma denúncia anônima e falsa, segundo eles, de que Fredy é membro de uma gangue — uma história que se repetiu no regime de exceção.
A realidade irrefutável é que Fredy está preso e que sua família teme por sua vida. Devido ao período de prisão em 2021, segundo os familiares, o jovem tem diagnóstico de hipertensão arterial que necessita de tratamento.
Não é caso isolado
A família de Fredy não é o único caso assim encontrado pela reportagem.
Milhares de familiares de pessoas detidas no regime de emergência votarão neste dia 4 de fevereiro em Bukele.
“Essa lealdade doentia me chama a atenção”, diz Roxana Cardoza, advogada da Justiça Social e Controladoria Cidadã, um grupo de juristas que lida com casos de detenções arbitrárias.
Cardoza estima que nada menos que 30% dos familiares de pessoas presas arbitrariamente votarão em Bukele.
Nos 22 meses de vigência do regime, a Polícia Nacional Civil (PNC) deteve quase 77 mil pessoas, das quais cerca de 23 mil são inocentes, segundo estimativas de grupos de direitos humanos mais envolvidos nessa questão.
Em agosto do ano passado, o governo disse que 7 mil detidos tinham sido libertados.
A influência das gangues foi reduzida ao mínimo em inúmeras comunidades e bairros, mas Cardoza acredita que o “fanatismo cego” em Bukele nas famílias diretamente afetadas pelo regime tem na sua base um forte componente religioso.
“Fui a uma casa humilde, onde um homem inocente havia sido levado injustamente e quando entrei vi o calendário do presidente. ‘Por que você tem isso?’, perguntei para a mãe. ‘Olha, filha’, me disse a mãe, ‘Deus coloca e tira reis. Meu filho não é membro de gangue e temos que confiar em Deus, Ele determinará quando será solto’.”
Toda a família foi afetada
No domingo, dia das eleições presidenciais, Fredy completará três semanas de prisão.
Os familiares procuraram um advogado, que cobrou U$ 5 mil (cerca de R$ 24 mil) para assumir o caso, um valor impossível para a situação financeira da família, que vive numa casa muito modesta com uma plantação de café, longe de tudo. Eles estão procurando como conseguir pagar pela defesa dele.
“Você acha que, se ele fosse culpado, teríamos tal despesa?”, diz Wendy.
Ela soube que Fredy já foi transferido duas vezes do quartel do PNC de Cojutepeque para o complexo penitenciário de Izalco, mas não o receberam na prisão e ela acredita que isso se deve ao seu delicado estado de saúde.
“Olha”, diz José, um pai magoado por estar longe do único filho, “o presidente está fazendo as coisas boas. Acontece que a autoridade exagera nas capturas, e para fazer números eles agarram quem cai.”
“Sim, estamos muito felizes com Bukele”, murmura María, a mãe, que mal falou durante toda a conversa.
Fonte: BBC
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