- Author, Luiz Antônio Araújo
- Role, De Torres (RS) para a BBC News Brasil
O município era Muçum. Não em maio de 2024, mas em setembro de 2023.
A imagem da carcaça de uma ovelha pendurada em um poste, que correu mundo e virou símbolo da enchente na região em 2023, foi registrada em Muçum.
Das 31 pessoas que morreram na catástrofe, 15 viviam no município.
Ao longo de dois dias, deslocando-se em dois carros carregados com mantimentos, os voluntários se dedicaram a auxiliar na limpeza de casas e ruas.
Não cogitavam a possibilidade de que, passados sete meses, voltariam a se reunir em circunstâncias ainda mais dramáticas com os mesmos propósitos de socorro e solidariedade.
Desde sábado (4/5), remanescentes do comboio puseram em marcha uma operação de solidariedade que rapidamente superou a de 2023.
O grupo, com mais de 500 voluntários e apoiadores, é responsável pela coleta, transporte e distribuição de doações a atingidos em Porto Alegre, Canoas, Gravataí e outros municípios. A organização ocorreu essencialmente por meio de redes sociais.
Para armazenar os donativos, foi utilizado, na terça-feira (7/5), o pavilhão de um clube no centro de Torres. Nas primeiras horas, o grupo reunia cerca de 10 pessoas. Quatro dias depois, nem a chuva incessante detinha o movimento de doadores e voluntários no local.
A responsável pela logística, Rita Helena Ferreira, de 40 anos, foi uma das participantes do grupo que esteve em Muçum em setembro. A corretora imobiliária se lembra de ter feito a limpeza de uma casa onde morreram cinco pessoas – um terço do total de mortes registradas no município.
Com memória treinada pelo ofício, Rita guardou detalhes precisos do local: uma edificação térrea, de alvenaria, não mais de 200 metros quadrados, com garagem e pomar, em um final de rua. “O vizinho chegou e nos disse que os ocupantes, um casal de idosos, não quis sair quando a enchente começou”, recorda-se. Na tentativa de salvá-los, um filho e dois vizinhos também pereceram.
As paredes internas ainda guardavam as manchas deixadas pela água ao atingir o nível mais alto, perto do teto. “Acima daquele ponto, as paredes tinham marcas escuras de mãos. Eles tentaram encontrar uma saída para o telhado, que não existia”, relata.
Organizado pelas redes, grupo tem mais de 500 participantes
No depósito em Torres, há alas para cada tipo de doação identificados por cartazes. “Alimentos – Precisamos de açúcar, feijão/lentilha, óleo, massa, leite, bolacha”, “Limpeza, pets, utensílios”, “Higiene pessoal” são alguns dos dizeres escritos à mão em folhas de cartolina.
Turmas de voluntários fazem a separação de itens para embarque rumo às áreas afetadas pela catástrofe. O ritmo do trabalho é frenético. Todos parecem extremamente concentrados e absorvidos, como se fizessem parte de um corpo treinado e acostumado a trabalhar em equipe.
Como se organizam? “Temos um grupo no WhatsApp”, diz Rita, enquanto degusta o almoço acondicionado em uma marmita de isopor fornecida por doadores. Com mais de 500 participantes no dia 12, o grupo Voluntários Torres SOS recebia novas adesões a cada minuto.
À BBC News Brasil, Tatiana Schuck, 37 anos, garante que a maioria não se conhecia há uma semana. “Adicionei a Bruna no Instagram ontem”, diz a autônoma, que designa voluntários para cada equipe.
A Bruna mencionada por Tatiana é a empresária Bruna Woiciechoski, 27 anos, responsável pelo cadastramento de voluntários. Ela participa do esforço desde o primeiro dia, sempre em tarefas de organização.
“Aqui faço meu máximo porque não tenho psicológico para ver essas coisas (perdas humanas e materiais decorrentes da enchente)”, afirma.
A entrevista é interrompida para que Bruna comande o carregamento de uma remessa. Em segundos, forma-se uma linha de montagem na qual sacos de mantimentos são passados de mão em mão.
São homens e mulheres de todas as idades. “Quando as cargas são maiores, usamos caminhões. Para quantidades pequenas, servem carros e caminhonetes”, explica Bruna.
Os estudantes de Fisioterapia Vitor Delavald, 26 anos, e Matheus Seidel, 23 anos, têm uma T-Cross, uma caminhonete do tipo SUV, e voluntariam-se para levar uma segunda carga a Porto Alegre. A primeira foi repartida no dia 9 entre a Casa da Criança e a Igreja Auxiliadora, ambas na capital.
Com as aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) suspensas até o dia 17, os dois alunos transferiram-se para Torres, onde vivem os pais de Vitor. O mato-grossense Matheus, do município de Sorriso, diz que em sua terra natal há comoção com a situação dos gaúchos.
‘Tu sabe dobrar roupa?’
No dia 11, o nível do Taquari voltou a subir perigosamente, levando as autoridades a emitir ordens de evacuação no município.
A influenciadora Nina Schneider, com 43 mil seguidores no Instagram, faz parte do grupo que esteve em Muçum.
“É muito triste a gente saber que o rio novamente está subindo. A população de lá tem um pouco mais de idade, são mais debilitados também. É muito triste passar por tudo isso outra vez”, afirma.
O que é preciso para colocar em marcha um trabalho eficaz de solidariedade em momentos como o atual?
“Paciência, força de vontade e organização”, Bruna enumera. “Empatia”, acrescenta ela, depois de uma pausa. Esse último ingrediente é essencial quando se lida diretamente com as vítimas.
No depósito, não há espaço para acomodar grupos provenientes de áreas alagadas, mas muitos dos que chegam estão em abrigos ou em casas de parentes e amigos.
“As histórias são todas muito parecidas”, diz Rita. “São pessoas que perderam tudo.” No dia 11, chegaram três famílias com bebês: um de sete dias, outro, de 11 e outro, de 18. Buscavam fraldas e roupas de criança e não ficaram muito tempo.
“Quando as pessoas chegam com criança, a gente dá prioridade para atender às necessidades da criança” explica Rita.
A entrevista é novamente interrompida, desta vez pela chegada de uma mãe e uma filha de quatro anos. Querem ajudar no trabalho.
“Duas voluntárias?”, pergunta Tatiana, sorrindo. E, dirigindo-se à criança: “Tu sabe dobrar roupa?”
Fonte: BBC
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