- Alessandra Corrêa
- De Washington (EUA) para a BBC News Brasil
Quando ouviu as primeiras informações sobre o massacre em uma escola primária no Estado do Texas, na terça-feira (24/05), a americana Missy Mendo estava preenchendo documentos para matricular sua filha Ellie, de quatro anos de idade, na pré-escola.
Naquela manhã de 20 de abril de 1999, Missy e seus colegas na escola secundária de Columbine, no Estado do Colorado, tiveram a rotina brutalmente interrompida por dois estudantes armados, que mataram 12 alunos e um professor antes de se suicidarem, em um dos massacres mais notórios do país.
Missy conseguiu escapar sem ferimentos físicos. Mas o trauma daquele dia persiste, e ela conta que, agora que é mãe, seu maior medo é mandar a filha para a escola.
“Pensar no primeiro dia da minha filha na escola é a coisa mais aterrorizante para mim”, diz Missy à BBC News Brasil. “Ela é o maior amor da minha vida.”
“E eu estava preenchendo os documentos para matricular a minha filha enquanto tudo estava acontecendo no Texas, enquanto pais no Texas terão de enterrar seus filhos”, afirma Missy, que mora na cidade de Littleton, no Colorado.
“Como eu posso seguir adiante?”, questiona. “Aqui estou, preenchendo os documentos, e um dos meus maiores pesadelos está se materializando.”
Ela diz que não consegue parar de pensar nos pais e mães que perderam seus filhos no Texas.
“Eu sei o que aquela comunidade está passando nas horas seguintes (ao ataque), nos dias seguintes. Quero que saibam que estou aqui para oferecer apoio”, afirma Missy, que é uma das diretoras do Rebels Project, organização sem fins lucrativos criada por sobreviventes de tiroteios para apoiar os que sofrem traumas semelhantes.
‘Eles começaram a atirar em nossa direção’
Missy relembra os momentos de terror no dia do ataque em Columbine. Ela tinha 14 anos de idade e estava em seu primeiro ano do ensino médio.
“Eu estava na aula de matemática quando ouvimos um barulho alto e, depois, um estrondo”, conta. “Eu podia ver pela janela vários estudantes correndo e atravessando uma rua movimentada.”
Inicialmente, alguns na escola acharam que se tratava de um trote. Missy lembra que ouviu outros alunos gritando “eles têm armas”, “eles têm bombas”.
“Corri para um parque do outro lado da rua. Enquanto estávamos lá, podíamos ver fumaça saindo da escola. E, depois, eles (os agressores) começaram a atirar na nossa direção.”
Um professor, Dave Sanders, conseguiu retirar estudantes da cafeteria, mas retornou para ajudar outros alunos e foi morto. Dezenas se esconderam na biblioteca, onde os atiradores acabaram entrando e fazendo várias vítimas fatais. Mais de 20 pessoas ficaram feridas.
O massacre em Columbine não foi o primeiro em uma escola nos Estados Unidos, mas inaugurou o que muitos consideram uma “nova era” nesse tipo de tragédia.
O tiroteio foi um dos primeiros a receber intensa cobertura ao vivo de canais de TV a cabo. Se, até então, pais e mães nos Estados Unidos consideravam a escola um lugar seguro para seus filhos, isso mudou com as imagens de estudantes correndo em busca de abrigo para salvar a própria vida.
“Na época, a internet estava no começo, e as pessoas não precisavam mais sentar na sala e esperar que as notícias chegassem, elas podiam buscar as histórias na internet”, observa Missy.
Com a publicidade em torno do caso, os dois adolescentes responsáveis pelo ataque atingiram notoriedade, e a palavra Columbine virou sinônimo de massacre em escolas. Nas décadas seguintes, autores de várias outras atrocidades, alguns dos quais nem eram nascidos na época, citaram os atiradores de Columbine como inspiração.
Esse fenômeno, chamado de “efeito imitação”, no qual autores de ataques buscam superar a “fama” de atiradores anteriores, matando um número maior de pessoas, leva especialistas a pedirem que a imprensa evite repetir desnecessariamente o nome dos responsáveis por esses ataques.
Nos 23 anos desde Columbine, os Estados Unidos se acostumaram a tragédias do tipo. Apesar de as escolas estarem hoje mais preparadas, com diversos protocolos de segurança e treinamentos sobre como agir em caso de emergência, tiroteios em massa continuam a fazer vítimas.
Um cálculo do jornal The Washington Post indica que, desde Columbine, mais de 311 mil estudantes enfrentaram episódios de violência com armas de fogo em 331 escolas do país, nos quais pelo menos 185 crianças e adultos morreram.
Para Missy e outros sobreviventes, cada novo ataque traz de volta a memória de Columbine. “O número de tiroteios em massa que ocorreram depois (de Columbine) é desolador”, lamenta. “E alguns deles me afetaram de maneira diferente.”
Ela cita o massacre na escola primária de Sandy Hook, ocorrido em 2012 na cidade de Newtown, em Connecticut, no qual 20 crianças e seis adultos foram mortos. “Na época eu estava morando em uma cidade próxima”, lembra Missy.
“(O ataque na escola) Marjory Stoneman Douglas também foi muito duro para mim”, ressalta, referindo-se ao ataque em que um atirador matou 14 estudantes e três funcionários da escola na cidade de Parkland, na Flórida, em 2018.
Missy cita também tragédias ocorridas fora de escolas, como o massacre em um festival de música em Las Vegas em 2017, no qual 60 pessoas morreram e quase 900 ficaram feridas depois que um atirador abriu fogo contra a multidão.
Vários outros tiroteios em escolas, supermercados, lojas, igrejas, casas noturnas e outros locais públicos chocaram o país nas últimas duas décadas. Alguns tiveram número de mortos maior do que o de Columbine, entre eles um ataque na universidade Virginia Tech, em 2007, no qual 32 pessoas foram mortas. Outros, apesar da brutalidade, não ganharam tanta atenção.
Alguns sobreviventes, entre eles vários dos estudantes de Parkland, acabaram se tornando ativistas para tentar reformar as leis que controlam a posse e porte de armas nos Estados Unidos.
Depois de tragédias do tipo, o debate sobre o alto número de armas nas mãos da população costuma voltar à tona no país. De um lado, políticos democratas pedem mais controle de armas. Do outro, republicanos rejeitam qualquer restrição.
Mas outros sobreviventes preferem evitar o tema, que provoca grande polarização e enfrenta muitos obstáculos para avançar no Senado, e concentram seu ativismo em outras medidas, como aumentar a segurança nas escolas.
Missy diz que prefere não opinar sobre o controle de armas, lembrando que o Rebels Project não é parte de nenhum partido político e busca ajudar sobreviventes de ambos os lados do debate.
Apoio a outros sobreviventes
O projeto surgiu em 2012, depois que um atirador matou 12 pessoas em um cinema na cidade de Aurora, no Colorado. Na época, alguns dos sobreviventes de Columbine decidiram formar um grupo de apoio para as pessoas afetadas por aquele novo tiroteio.
O objetivo era oferecer ajuda emocional, já que haviam passado por uma situação semelhante e que muitas outras pessoas não conseguem compreender. Eles próprios não haviam tido acesso a esse tipo de apoio na época de Columbine e, 13 anos depois, ainda conviviam com o trauma.
Hoje, o Rebels Project ajuda a conectar sobreviventes de tragédias do tipo em todo o país e no exterior.
“Nós representamos mais de cem comunidades ao redor do mundo, afetadas não só por tiroteios, mas também ataques a bomba e outros tipos de violência”, diz Missy. “Com exceção de alguns profissionais de saúde mental, todos os membros e voluntários são sobreviventes de diferentes tragédias em massa.”
Missy fala sobre as dificuldades que enfrentou nos meses e anos que se seguiram ao massacre em Columbine. “Foi muito difícil encontrar um terapeuta que pudesse lidar com o que estávamos enfrentando. Não havia muitos especialistas em trauma causado por tiroteios em escolas na época.”
Ela diz que tentou lidar com o trauma por conta própria, e nunca relacionou os problemas que enfrentava, como insônia, com o episódio vivido aos 14 anos de idade. Foi somente na época do 20º aniversário do massacre, depois do nascimento de Ellie, que decidiu começar a fazer terapia.
Hoje, aos 38 anos de idade, ela consegue usar a própria experiência para ajudar outros sobreviventes.
“Nas próximas horas, dias, semanas, meses e anos, lembrem-se de dar um passo de cada vez, um momento de cada vez”, diz Missy às famílias de Uvalde. “Cada um tem um ritmo diferente para processar o luto.”
“E peçam ajuda, saibam que não há problema em pedir ajuda”, afirma. “Vocês não estão sozinhos.”
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