- Author, Luís Barrucho
- Role, Enviado da BBC News Brasil a Lisboa
- Twitter, @luisbarrucho
As recentes declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia “nos deixaram muito preocupados e apreensivos”, diz a Associação dos Ucranianos em Portugal em carta endereçada ao petista e entregue na noite desta sexta-feira (21/4) a representantes do governo brasileiro.
Segundo disse à BBC News Brasil o presidente da entidade, Pavlo Sadokha, ele foi convidado a entregar o documento ao ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Márcio Macêdo, e ao embaixador do Brasil em Portugal, Raimundo Carreiro Silva.
Macêdo confirmou a jornalistas que recebeu a carta. “Respeitamos a posição do continente europeu, dos países que estão de alguma forma no conflito. Mas a posição do Brasil é de neutralidade, por uma razão muito simples: se o Brasil tomar partido, perde a autoridade política de juntar pares e países para encontrar um caminho para a paz”, disse.
Segundo ele, a pedido de Lula, o ex-chanceler Celso Amorim, atual assessor especial da Presidência, vai visitar a Ucrânia. Ainda não há data para a visita.
Mais cedo, um grupo de ucranianos realizou um protesto em frente à embaixada brasileira em Lisboa. Enrolados com bandeiras do país, eles seguravam cartazes acusando a Rússia de ser um “Estado terrorista”.
Lula está em viagem oficial a Portugal e Espanha. Ele chegou a Lisboa na manhã desta sexta-feira e permanece na capital portuguesa até a tarde da próxima terça-feira (25/4).
Na sequência, viaja à Espanha. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite de quarta-feira (26/4).
Sadokha, da Associação dos Ucranianos em Portugal, compartilhou o conteúdo da carta com a BBC News Brasil.
No documento, assinado por ele e pelo presidente do Congresso Europeu dos Ucranianos, Bogdan Raicinec, dizem considerar “que qualquer tipo de apoio que o Brasil possa conferir à Federação Russa será desprestigiante, levará a uma desconfiança da comunidade internacional, incluindo acerca da sua posição no Conselho de Segurança da ONU”.
“Ninguém quer ver o bom nome do Brasil, enquanto nação democrática e livre, manchado como aliado do regime criminoso do Kremlin, pelo que as recentes declarações de Vossa Excelência nos deixaram muito preocupados e apreensivos”, assinala a carta.
Eles também reiteram o convite do governo ucraniano para que Lula visite a Ucrânia.
Polêmica
A visita de Lula a Portugal acontece em meio à repercussão negativa das declarações do brasileiro sobre a guerra na Ucrânia.
Membro da União Europeia e da Otan, a aliança militar ocidental, Portugal tem declarado apoio aberto ao país invadido pela Rússia e chegou, inclusive, enviar tanques Leopard a Kiev.
As críticas não só vieram da associação de ucranianos em Portugal, mas também de partidos de oposição.
Em visita recente aos Emirados Árabes Unidos, onde fez uma parada depois de sua viagem à China, o petista atribuiu aos EUA e à União Europeia, a responsabilidade pelo prolongamento da guerra na Ucrânia.
“O presidente [Vladimir] Putin não toma a iniciativa de parar. [Volodymyr] Zelensky não toma a iniciativa de parar. A Europa e os Estados Unidos continuam contribuindo para a continuação desta guerra”, disse.
No início do mês, Lula já havia afirmado que a Ucrânia poderia ceder a Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, em nome da paz.
Após a polêmica, o petista condenou a invasão russa da Ucrânia.
“Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito”, disse Lula em encontro com o presidente da Romênia, Klaus Werner Iohannis nesta semana.
não foi apenas em Portugal que as falas de Lula sobre a guerra na Ucrânia foram mal recebidas.
John Kirby, coordenador de comunicação estratégica do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, nos Estados Unidos, chamou a postura do presidente brasileiro de “repetição automática da propaganda russa e chinesa” e “profundamente problemática”.
“É profundamente problemático como o Brasil abordou essa questão de forma substancial e retórica, sugerindo que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra”, disse ele em conversa com jornalistas.
“Francamente, neste caso, o Brasil está repetindo a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos”, acrescentou.
Para Kirby, “os comentários mais recentes do Brasil de que a Ucrânia deveria considerar ceder formalmente a Crimeia como uma concessão pela paz são simplesmente equivocados, especialmente para um país como o Brasil que votou para defender os princípios de soberania e integridade territorial na Assembleia-Geral da ONU”.
O porta-voz para Assuntos Externos da União Europeia, Peter Stano, também rebateu as falas de Lula sobre a guerra, destacando que a Rússia é a “única responsável” pelo conflito.
“O fato número um é que a Rússia — e apenas a Rússia — é responsável pela agressão ilegítima e não provocada contra a Ucrânia. Então não há dúvidas sobre quem é o agressor e quem é a vítima”, disse Stano, lembrando que o Brasil condenou a invasão da Ucrânia na ONU (Organização das Nações Unidas).
Stano acrescentou que EUA e EU não estão contribuindo para prolongar a guerra, mas ajudando Kiev em sua legítima defesa.
“Caso contrário, a Ucrânia enfrentaria a destruição. A nação ucraniana e a Ucrânia como país seriam destruídos porque estes são os objetivos declarados da guerra de Putin”, afirmou.
O mal-estar se agravou ainda mais com a viagem oficial do ministro das Relações Exteriores russo, Serguei Lavrov, a Brasília no início desta semana.
Uma das propostas do governo Lula é a criação de um “clube da paz”, fórum de países que Brasília considera como não alinhados a nenhum dos lados do conflito para mediar as negociações entre Kiev e Moscou.
Na terça-feira (18/4), o governo da Ucrânia, por meio do porta-voz de sua chancelaria, Oleg Nikolenko, voltou a convidar Lula a visitar Kiev.
Em postagem no Facebook, Nikolenko afirmou que deseja que o brasileiro compreenda “as verdadeiras causas da agressão russa e suas consequências para a segurança global”.
Lula já havia sido convidado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no mês passado, quando os dois falaram por videoconferência pela primeira vez. Na ocasião, o petista afirmou que aceitaria o convite em momento oportuno.
Confira a carta na íntegra abaixo
A SUA EXCELÊNCIA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,
Exmo. Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Aproveitando a oportunidade da visita de Vossa Excelência a Portugal vimos por este meio, e em nome da Comunidade Ucraniana em Portugal, dos ucranianos nos países da União Europeia e nos mais de 8 milhões de refugiados da Ucrânia, clarificar alguns pontos que nos parecem de suma importância quando se fala da guerra na Ucrânia:
1. A injustificada e brutal agressão da Federação Russa à Ucrânia obrigou os cidadãos ucranianos a deixarem as suas casas para, literalmente, salvarem as suas vidas;
2. O que se está a passar neste momento na Europa do Leste não é apenas um conflito militar entre dois países vizinhos que se consegue terminar com um simples acordo de paz;
3. Esta guerra iniciada pelo Presidente Putin não é só contra os ucranianos. Ela visa “destruir a estrutura de segurança europeia”, como bem referiu o Chanceler alemão Olaf Scholz, e atacar também todos os que defendem os ideais democráticos e os princípios da soberania territorial e autodeterminação dos povos;
4. A Federação Russa está a perpetrar, desde 2014, e mais intensamente a partir de 24 de Fevereiro de 2022, um genocídio continuado contra o povo ucraniano e ostártaros em todo o território nacional da Ucrânia (com foco no Donbass e na Crimeia, que como saberá são regiões inalienáveis da Ucrânia);
5. Além dos assassinatos continuados e dos ataques indiscriminados contra civis (muitos deles mulheres e crianças), do desrespeito pelos cordões humanitários acordados e da ameaça ao mundo com armas nucleares, a Federação Russa tem devastado de forma total e absoluta todo o nosso território e infraestruturas;
6. Em várias declarações de líderes russos, nomeadamente do Presidente Putin, do Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa Kirill, entre outros, assistimos a insultos e mentiras graves como aquelas que afirmam que os ucranianos são nazis e que a Ucrânia enquanto país e Estado soberano, livre e independente, não pode existir.
Ora é pois preciso entender que a justificação real para Moscovo invadir a Ucrânia não é a alegada defesa dos russófonos que vivem no território ucraniano. Aliás, gostaríamos de clarificar que esta comunidade ucraniana russófona luta dia e noite contra as tropas invasoras russas, lado a lado e integrada nas Forças Armadas Ucranianas e ombro a ombro com representantes de outras nações e etnias, cidadãos da Ucrânia.
O cerne da questão é que Putin não quer ter como vizinho nenhum país soberano, livre, democrático, independente e não-corrupto, porque receia que possa servir de exemplo aos demais povos da Federação Russa para também realizarem mudanças de um regime autocrático ou de um regime com laivos totalitários para um regime democrático-liberal nos seus próprios países e assim pertencer ao rol dos países que constituem o mundo livre.
Senhor Presidente, mais do que qualquer outro povo, os ucranianos querem a justa paz, já que são os que pagam o preço mais elevado com as suas próprias vidas, sangue e devastação do próprio País ao defenderem-se das agressões bárbaras de Moscovo.
Sabemos que alguns políticos internacionais têm interesses que os levam a negociar com o sanguinário e ditador Vladimir Putin, de forma a obterem vantagens pessoais. Mas é importante sublinhar que qualquer destas vantagens tem o preço das vidas e do sofrimento dos ucranianos e que estas vidas, como todas as vidas humanas, não têm ideologia.
Neste contexto, consideramos que qualquer tipo de apoio que o Brasil possa entender conferir à Federação Russa será desprestigiante, levará a uma desconfiança da comunidade internacional, incluindo acerca da sua posição no Conselho de Segurança da ONU.
Ninguém quer ver o bom nome do Brasil, enquanto nação democrática e livre, manchado como aliado do regime criminoso do Kremlin, pelo que as recentes declarações de Vossa Excelência nos deixaram muito preocupados e apreensivos.
Sua Excelência Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, qualquer acordo de paz justa proposto pela Federação Russa acabará em campos de concentração para o extermínio da nação ucraniana com a solução silenciosa “Z”. Já vivemos essa situação no século passado com a acção de extermínio perpetrada pelos nazis e que culminou com a organização comunista do Holodomor, numa tentativa de erradicar qualquer sobrevivente ucraniano. Resistimos e sobrevivemos.
Nós, os ucranianos, iremos continuar a lutar pelas nossas vidas e pelas vidas das nossas crianças que Putin deporta para a Rússia ao mesmo tempo que executa os seus pais. Permita-nos recordar que a deportação ilegal das nossas crianças foi, aliás, a base de acusação para a emissão de um mandato de captura contra Vladimir Putin emitido pelo Tribunal Penal Internacional.
Neste momento, enfrentamos uma força superior em termos de número de homens e, por isso, precisamos de todo o apoio internacional que pudermos.
Uma questão tornou-se muito clara: esta guerra já dividiu o mundo em dois polos.
Um que defende a liberdade, a ordem e o progresso, e outro que põe os seus interesses imperialistas e oligárquicos acima do bem supremo da vida humana, da ordem e paz internacionais.
Senhor Presidente, se há momentos na História em que a neutralidade não se pode confundir com a conivência nem o temor este é, definitivamente, um deles.
Os ucranianos nunca esquecerão os bravos militares brasileiros que ajudaram a libertar a Europa do jugo totalitário e, por isso, acreditamos que é chegada a hora de Vossa Excelência comandar o Brasil na direcção do lado certo da História e alinhada com o mundo livre!
Aproveitamos ainda esta ocasião para reiterar o convite do Presidente Zelensky a Sua Excelência, para visitar a Ucrânia e ver em loco com os seus próprios olhos o significado de “paz russa”.
Com os melhores cumprimentos,
Presidente do Congresso Europeu dos Ucranianos,
Bogdan Raicinec
Presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal,
Pavlo Sadokha
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