- Mariana Sanches – @mariana_sanches
- Da BBC News Brasil em Washington
Quatro anos separam um evento do outro. Mas há muito mais do que o tempo entre as convenções que selaram Jair Bolsonaro como candidato a presidente em 2018 e em 2022.
Em 2022, Bolsonaro afirmou que seu governo não seria possível sem o presidente da Câmara, Arthur Lira, e seu Centrão, grupo de partidos conhecido pelos posicionamentos mais fisiológicos do que ideológicos. Em 2018, um de seus mais longevos auxiliares, o general Augusto Heleno, lançava no microfone da convenção uma paródia do clássico do sambista Ary do Cavaco, imortalizado na voz de Bezerra da Silva: “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão”.
O contraste
Há quatro anos, algumas centenas de pessoas estavam presentes no modesto centro de convenções no Rio em que o PSL sacramentou o então deputado federal Bolsonaro como seu presidenciável.
Os registros do evento eram feitos com uma câmera fixa, de baixa qualidade, ou via celular dos presentes. Os discursos se seguiam, mais ou menos animados, e um mestre de cerimônias chamava ao púlpito os convidados. O microfone falhava. A iluminação era precária. O candidato Alexandre Frota, que em 2022 é deputado federal e inimigo declarado de Bolsonaro, fazia as vezes de animador dos presentes.
Com apenas um deputado na Câmara, o PSL tinha poucos recursos – a campanha total não custou mais de R$ 3 milhões, segundo o que a coligação PSL-PRTB declarou ao TSE. Para se ter uma ideia, em 2010 e 2014, as campanhas vitoriosas de Dilma Rousseff (PT) custaram respectivamente R$ 153 milhões e R$ 350 milhões.
Havia no ar, em 2018, um clima mambembe que o então coordenador da campanha, Gustavo Bebianno, ostentava com certo orgulho. Para ele, as precárias condições do evento eram testemunho de que o candidato em questão era um “outsider”, alguém de fora do centro de poder político tradicional.
“(Querem) caracterizar o isolamento do Bolsonaro. Por que isolamento? Está aí definitivamente configurado o porquê do isolamento. Porque querem reunir todos aqueles que precisam escapar das barras da lei em um só núcleo. Quanto maior, melhor, mais eles vão se proteger. E daí surgiu esse centrão”, disparou o general Heleno, atual ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), na convenção de 2018.
Um dos apoiadores na plateia gritou: “Lixão”. Heleno, então, corrigiu: “Não, lixão não dá por que tá proibido pela lei do meio ambiente, mudou de nome porque não pode ter lixão”, riu.
“Mas eles (Centrão) têm um ponto fundamental. Eles podem começar e terminar a sua inserção televisiva com uma musiquinha sensacional. Eu vou pela primeira vez na minha vida cantar no microfone alguma coisa que não seja um hino pátrio. A musiquinha pra começar e terminar a inserção televisiva do Centrão é: “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão”, cantarolou Heleno.
Heleno representava o espírito no centro de convenções, em 2018. Chamado a discursar, Eduardo Bolsonaro, terceiro filho do então candidato, afirmou: “Eu queria tirar uma foto do rosto de cada um dos senhores aqui pra saber se quando, em 2019, o couro comer pra valer, vocês vão se deixar seduzir por discurso do Centrão ou se manter firme forte Bolsonaro”.
O próprio candidato afirmou que os titulares de seu futuro ministério e dirigentes de estatais seriam escolhidos a partir de critérios técnicos e não por conveniência “de grupelhos políticos aliados ao Centrão. Mais uma vez obrigado, Geraldo Alckmin, por ter sido a escória da política brasileira”.
Em 2018, além do PSDB, a coligação de Alckmin contava com PP, PRB (hoje Republicanos), DEM, PR, SD, PSD e PPS. Hoje, além do PL, dirigido por Valdemar Costa Neto, conhecido por ter sido condenado por corrupção no escândalo do Mensalão, a coligação de Bolsonaro é composta também por PP e Republicanos.
No domingo (24/07), o cenário era bem distinto de 2018. Bolsonaro comandava pessoalmente a convenção no palco do Maracanãzinho, no Rio, diante de milhares de pessoas. Uma variedade de câmeras se revezavam em gravar os mais variados ângulos do evento e uma mesa de som garantia a qualidade do que saía dos microfones. Recursos de sonoplastia, salpicados entre as frases do candidato, animavam a massa no lançamento do candidato do tradicional PL.
Bolsonaro discursava sem ler, mas nada sugeria um evento improvisado. A dupla sertaneja Matheus e Cristiano entoava ao vivo o jingle da campanha, o “Capitão do Povo”. O PL de Bolsonaro hoje tem a maior bancada da Câmara dos Deputados, 77 deputados. “Obrigado, presidente Valdemar Costa Neto”, dizia o locutor do evento no encerramento.
No palco, ao lado de Bolsonaro, o atual presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) ostentava uma camiseta azul em que se lia “Bolsonaro 2022”.
Ao falar sobre Lira, Bolsonaro afirmou que ele “tem colaborado muito com o governo, graças a ele conseguimos aprovar leis que vieram a baixar o preço dos combustíveis. A grande maioria dos parlamentares, cada vez mais, está com o governo. E o governo está com eles”, afirmou, em referência à redução de impostos sobre gasolina e gás e em possível menção à distribuição de recursos bilionários aos deputados, prática que ficou conhecida como Orçamento Secreto.
“Eu sei que a figura mais importante hoje aqui sou eu, mas se não é o Arthur Lira, esse cabra da peste de Alagoas, não teríamos chegado a esse ponto. Obrigado, Lira. Obrigado deputados e senadores. É o trabalho em conjunto”, disse Bolsonaro. Os presentes puxaram palmas.
O antissistema x o representante do sistema
A inflexão de Bolsonaro ao Centrão não é exatamente uma novidade. Há um ano, ele disse que havia “nascido no Centrão”.
“Centrão é um nome pejorativo, eu sou do Centrão, eu sou do Centrão, sou do PP. Nós temos 513 deputados, o tal Centrão são uns partidos que lá atrás se uniram na campanha do Alckmin, e ficou uma coisa pejorativa, uma coisa danosa. (Mas) não tem nada a ver, eu nasci de lá”, disse o presidente em uma live em julho de 2021.
É verdade, o próprio Bolsonaro venceu cinco eleições como deputado federal justamente pelo PP de Lira.
Mas o contraste entre as convenções de 2018 e de 2022 salta aos olhos especialmente porque, há quatro anos, a imagem de “outsider” era um dos maiores ativos do então candidato do PSL.
Segundo Antônio Lavareda, presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), em 2018, a Operação Lava Jato foi central para definir o humor dos eleitores. Naquele ano, 28% deles se diziam preocupados com o tema da corrupção. Agora, apenas 6% afirmam que isso é um tema de sua atenção.
A Operação Lava Jato, que investigou esquemas de corrupção envolvendo a Petrobras e partidos políticos, havia atingido frontalmente os dois principais nomes postulantes recentes ao Planalto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, e o tucano Aécio Neves. Nenhum partido, no entanto, tinha tido tantos quadros denunciados e condenados quanto o PP, de Arthur Lira.
O general Heleno, ainda na convenção de 2018, demonstrava a premência do tema e defendia que Bolsonaro seria o nome certo para preservar os resultados da operação. “O primeiro ato do presidente que for eleito carimbado pelo Centrão vai ser uma anistia ampla, real e irrestrita. Vai ser um indulto de todos os que estão envolvidos em processos de Lava Jato aí e em todos os processos aí. Vai sair todo mundo zero a zero. Não tenham dúvida disso”, afirmou.
No poder, Bolsonaro comemorou ter “acabado com a Lava Jato”, acrescentando, porém, que isso teria ocorrido graças ao fim da corrupção. Ele convidou para seu ministério o então juiz Sergio Moro, que saiu do governo mais de um ano depois acusando o presidente de interferência indevida na Polícia Federal e em suas investigações.
Para a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Johns Hopkins University, é justamente ao binômio investigação/corrupção a aproximação de Bolsonaro com o Centrão.
“Bolsonaro não tem mais o discurso antissistema. Isso ficou bem claro ontem (na convenção). O Lira é parte do sistema em nível federal e nacional. A virada em direção ao Centrão foi selada pelo caso Queiroz, já que Bolsonaro se move pelo temor de ser preso ou ver os filhos presos. Esse é um ponto de inflexão na relação de Bolsonaro com o Congresso. Ao abraçar o Centrão, Bolsonaro se blindou no Congresso e ele também passou a ter uma estrutura mínima para fazer um evento como o que fez no domingo, algo que não teve em 2018”.
Em meados de 2020, um ex-assessor do atual senador Flávio Bolsonaro e amigo pessoal de seu pai, Fabrício Queiroz, foi preso quando se refugiava na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef. Queiroz era acusado de operar um esquema de desvio de recursos públicos do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, na qual funcionários fantasmas devolviam parte de seus salários, o que é conhecido como “rachadinha”.
Ao mesmo tempo em que o escândalo se desenrolava, o Executivo passou a liberar mais verbas ao Congresso em um formato em que elas eram carimbadas pelo relator do Orçamento na Câmara, de modo que sua destinação final foi considerada opaca pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Somado a isso, nos meses seguintes, o Planalto passou a apostar na eleição de Lira para presidente da Câmara. O posto dava a ele não apenas o controle sobre esses novos recursos de Orçamento como a decisão de abrir ou não um processo de impeachment, algo que Lira se comprometeu a barrar. É essa sustentação que, de acordo com os analistas, Bolsonaro premia com suas palavras na convenção.
Embora possa soar como “brutal”, a mudança no discurso de Bolsonaro não deve provocar grande impacto em seu eleitorado, argumenta Rey. Em parte porque o tema saiu da agenda dos eleitores brasileiros. Em parte porque aqueles que viam a questão como central talvez não estejam dispostos a apoiar Lula, hoje candidato do PT novamente à Presidência.
E em parte porque os valores representados por Bolsonaro hoje, como a defesa de ideias conservadoras, de armamento e contra o comunismo, são mais importantes para seu grupo de eleitores do que a corrupção.
Além disso, Bolsonaro mantém a base energizada ao atacar outros entes da Federação. “O Congresso ele não pode atacar mais, mas volta as baterias ao Supremo, às urnas, chama a base para o Sete de Setembro”, diz Rey.
“A eleição de 2018 foi muito anômala para o próprio Bolsonaro. Voltar ao Centrão pra ele é como um retorno às suas origens, na lógica do ‘bom filho à casa torna'”, afirma Rey.
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