- José Carlos Cueto
- BBC News Mundo
Na noite de 22 de outubro de 1962, o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, aparece na televisão com uma expressão séria no rosto.
Milhões de pessoas esperam ansiosamente pelo discurso. Música com ritmo de marcha militar dá o tom de seriedade para o anúncio.
“Boa noite, meus compatriotas”, diz o presidente.
Sua voz calma não consegue esconder sua preocupação. Há poucos dias, seus assessores o informaram que em Cuba, a 140 quilômetros da costa norte-americana, soviéticos e cubanos estão construindo componentes balísticos para mísseis nucleares.
O perigo de uma guerra atômica entre as maiores potências da época parece iminente e chegou a hora de falar abertamente ao mundo.
“Qualquer míssil lançado de Cuba contra qualquer nação do Hemisfério Ocidental será considerado um ataque da União Soviética contra os Estados Unidos, exigindo uma resposta retaliatória total contra a União Soviética”, advertiu Kennedy.
Americanos, cubanos e soviéticos se prepararam para um confronto que por vários dias se acreditou inevitável.
O terror tomou conta dos cidadãos. Os supermercados estavam lotados e as prateleiras, esvaziadas pela compra às pressas, tomada pelo pânico. Aqueles que podiam pagar construíram abrigos e os estocaram com os suprimentos que acreditavam serem necessários para sobreviver a um impacto atômico.
Nunca tantos milhões de pessoas estiveram tão perto de uma aniquilação massiva e instantânea devido às rivalidades entre Washington e Moscou. Entre o capitalismo e o comunismo.
A crise de outubro de 1962, também conhecida como Crise dos Mísseis em Cuba, foi o momento mais tenso da Guerra Fria.
Sessenta anos após este acontecimento, a BBC revê como foram os dias de terror em que o planeta esteve perto da Terceira Guerra Mundial num conflito nuclear sem precedentes.
A antessala da crise
Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a URSS, aliados vitoriosos contra o fascismo, mergulharam em uma competição geopolítica pelo domínio global.
A rivalidade também levou a uma corrida armamentista atômica na qual os EUA estavam em vantagem. Em 1962, os EUA já haviam instalado na Turquia uma série de mísseis balísticos com ogivas nucleares com capacidade de atingir o território soviético em poucos minutos em caso de confronto.
Vários países estiveram de alguma forma envolvidos na luta entre Washington e Moscou. Cuba foi um deles.
Após o triunfo da revolução de Fidel Castro em 1959, a ilha se aproximou da URSS e passou a ser percebida pelos Estados Unidos como uma ameaça ideológica bem debaixo do seu nariz influenciada por seu maior rival.
As relações entre Havana e Washington se deterioraram em ritmo frenético. No início da década de 1960, o governo de Fidel realizou uma onda de nacionalizações na indústria que prejudicou grandes empresas americanas.
Os Estados Unidos, sob o governo de Dwight Eisenhower, responderam buscando derrubar o regime socialista, especialmente com um forte embargo econômico e o financiamento de grupos armados contrarrevolucionários.
Em 1961, após o fracasso da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, por um exército de cubanos exilados treinados pela CIA, os EUA redobraram os esforços contra a revolução cubana.
“A Operação Mongoose foi criada nos EUA com a intenção de causar uma insurreição que colocaria Cuba à beira do desastre, mas ficou claro que as chances de um movimento interno desmoronar a revolução eram praticamente nulas”, explica Oscar Zanetti, pesquisador da Academia de História de Cuba, à BBC Mundo (serviço da BBC em espanhol).
“Assim, em março de 1962, foi imposta a opção de intervenção direta dos Estados Unidos com o uso de todos os meios militares necessários”, acrescenta Zanetti.
A pequena Cuba precisava se defender da ameaça do país mais poderoso do mundo, e a URSS, então sob a liderança de Nikita Khrushchev, estava disposta a apoiá-la.
“Proteger Cuba tornou-se uma questão de segurança nacional para a URSS. Se Cuba fosse invadida e a URSS não fizesse nada, os soviéticos seriam vistos como aliados não confiáveis do Terceiro Mundo “, disse Philip Brenner, especialista nas relações Cuba-EUA, à BBC Mundo.
Assim, durante o verão de 1962, Moscou e Havana começaram a instalar secretamente dezenas de plataformas de lançamento de mísseis trazidos da URSS.
O “segredo” durou até 14 de outubro. Naquele dia, um avião de reconhecimento dos EUA sobrevoando Cuba notou uma paisagem diferente do habitual.
Montadas entre as palmeiras estavam plataformas de lançamento de mísseis capazes de atingir Washington e outras cidades americanas e causar morte e destruição semelhantes ou piores do que Hiroshima e Nagasaki em 1945.
A crise de outubro tinha acabado de estourar.
14-22 de outubro: O mundo às portas de um conflito nuclear
Certamente, aquele 14 de outubro de 1962 foi um domingo tranquilo para a maioria dos americanos, mas não para o piloto Richard Heyser.
Este homem estava pilotando o avião espião U-2 sobre Cuba nas primeiras horas daquela manhã. Sua missão era verificar as suspeitas e informações que os EUA tinham sobre a presença de armas soviéticas na ilha.
Seis minutos de voo foram suficientes para tirar as primeiras 928 fotos que comprovavam a manutenção do armamento.
No dia seguinte, o Centro de Interpretação Fotográfica Nacional da CIA começou rapidamente a análise das imagens, identificando os componentes de mísseis balísticos de médio alcance em um campo de San Cristóbal, na província de Pinar del Río, no oeste da ilha.
Mais voos de reconhecimento confirmaram outros locais de montagem.
Quando soube disso em em 16 de outubro, a primeira coisa que Kennedy fez foi convocar um seleto grupo de assessores, conhecido como Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional (Excomm, na sigla em inglês), para decidir sobre uma resposta estratégica.
“Seu secretário de Defesa, Robert McNamara, apresentou-lhe três opções: a política de ‘aproximar-se de Castro e Khrushchev’, um bloqueio naval de navios soviéticos que transportam armas para Cuba e uma ‘ação militar dirigida contra Cuba'”, diz Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação de Cuba do Arquivo de Segurança Nacional dos EUA.
O presidente decide seguir com a segunda opção para ganhar tempo e negociar uma solução com Khrushchev e uma “aproximação clandestina” com Fidel.
Se tivesse escolhido atacar Cuba, especialistas dizem que o conflito nuclear teria sido desencadeado.
Durante uma semana o mundo viveu praticamente inconsciente do perigo e das negociações entre Washington-Havana-Moscou, das quais dependiam milhões de vidas.
22 de outubro: Kennedy faz pronunciamento público
O presidente norte-americano se senta na frente das câmeras em 22 de outubro e parece pronto para responder com força a qualquer ataque, mas vários analistas dizem que por trás dessa fachada está um homem flexível cujo objetivo é impedir o apocalipse nuclear.
Ele fala com determinação e coragem, mas também com cautela. Uma palavra mal escolhida pode ser mal interpretada, levar a um acidente e causar uma catástrofe.
Por isso, quando anuncia que interceptará qualquer carregamento adicional de armas da URSS para Cuba, ele se refere à operação como uma “quarentena estrita” em vez de um “bloqueio” — que seria realizado com um cinturão de navios ao redor de Cuba.
“Mesmo que fosse um bloqueio de fato, Kennedy usa a palavra quarentena porque um bloqueio é considerado um ato de guerra”, explica Brenner.
Kennedy também torna públicas suas ordens para continuar e aumentar a vigilância sobre Cuba, considerar um ataque a qualquer nação do Hemisfério Ocidental como um ataque contra os Estados Unidos, reforçar a base naval de Guantánamo e convocar uma reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Finalmente, o presidente também exorta seu colega Khrushchev a “parar e eliminar essa ameaça clandestina, imprudente e provocativa à paz mundial”.
No mesmo dia de seu discurso, Kennedy enviou uma carta a Khrushchev afirmando que os EUA não permitiriam que mais armas fossem enviadas a Cuba e conclamou os soviéticos a desmantelar bases de mísseis já concluídas ou em construção e retirar armas enviadas ao território cubano.
Os dias seguintes foram os mais sombrios da crise.
23-26 de outubro: O mundo se prepara para o conflito
Em 24 de outubro, o bloqueio naval foi instalado para impedir a chegada de vários navios soviéticos que estavam a caminho. No mesmo dia, Khrushchev respondeu a Kennedy que o “bloqueio” era um “ato de agressão” e que ordenaria que os navios não parassem.
Durante os dias 24 e 25 de outubro, no entanto, alguns navios foram retirados da linha de quarentena. Outros foram detidos pelas forças navais dos EUA, mas não continham armas e foram autorizados a prosseguir.
Enquanto isso, mais voos de reconhecimento dos EUA perceberam que as bases de mísseis soviéticas em Cuba estavam perto de sua fase operacional. Se em 14 de outubro não havia míssil pronto, nos 12 dias seguintes ocorreu uma rápida habilitação.
“Até 28 de outubro, havia 12 mísseis operacionais, com planos de instalar cerca de 30 mísseis de médio alcance e outros 30 de médio alcance”, diz Brenner.
Naqueles dias, Fidel alertou os cubanos sobre o risco de invasão e cerca de 300 mil homens armados foram mobilizados.
Pela primeira vez em sua história, os Estados Unidos declararam DEFCON (Condição de Defesa) nível 2, o maior alerta antes de um confronto nuclear.
Em 26 de outubro, Kennedy disse a seus assessores que apenas um ataque dos EUA a Cuba teria chance de desmantelar os mísseis, mas insistiu em dar mais tempo à via diplomática.
A crise parecia estagnada quando naquela mesma tarde surgiu uma informação importante.
O correspondente da rede americana ABC, John Scali, informou à Casa Branca que um agente soviético lhe havia passado a possibilidade de que os soviéticos removessem os mísseis da ilha caribenha se os Estados Unidos prometessem não invadir Cuba.
Enquanto a Casa Branca avaliava a validade desse vazamento, Khrushchev enviou uma carta emocionada a Kennedy. Ele estava conversando com ele sobre a tragédia que seria um holocausto nuclear e propôs uma solução semelhante à que Scali havia vazado.
27 de outubro: O sábado negro
A mensagem de Khrushchev chega na noite de sexta-feira, 26 de outubro, em Washington, bem depois da meia-noite em Moscou.
As autoridades americanas estão exaustas. Eles passaram noites dormindo em seus escritórios. Agora estão convencidos de que as palavras do presidente soviético são autênticas e que a resolução está à vista.
Mas as esperanças duram pouco.
Quando o Excomm se reúne no sábado de manhã, eles recebem a notícia de que Khrushchev estabeleceu um novo conjunto de condições. Agora ele também pede a retirada dos mísseis Júpiter que os Estados Unidos mantêm na Turquia.
“Parecia um acordo recíproco, mas na realidade era um ultimato. A Turquia era aliada da Otan e retirar os mísseis sob uma ameaça da URSS poderia destruir a aliança”, explica Brenner.
As exigências de Khrushchev comprometeram a posição de Kennedy. A tensão estava aumentando novamente.
Assim, à medida que as autoridades americanas determinam como proceder, ocorre o temido erro de cálculo.
Um avião de reconhecimento americano U-2 é abatido por mísseis soviéticos em Cuba. Seu piloto é morto instantaneamente. A única fatalidade da crise dos mísseis.
Os generais dos EUA recomendam atacar imediatamente.
“E os Estados Unidos estavam preparados. Reuniram soldados suficientes no sul da Flórida e aviões suficientes para atacar”, diz Brenner.
Algum tempo depois, o secretário de Defesa de Kennedy, McNamara, reconheceria em entrevista que achava que a “bela tarde” de sábado, enquanto caminhava pelos jardins da Casa Branca, seria a última que veria em sua vida.
Altos funcionários da Casa Branca foram instruídos a se abrigar com suas famílias em uma área secreta em Maryland para sobreviver no caso de uma guerra nuclear. Nada parecia impedir o resultado fatal.
28 de outubro – O fim do pesadelo
Os analistas de guerra geralmente definem essas situações extremas como “escalar para desescalar”: levar advertências ao extremo para forçar acordos.
Mas então havia muitas dúvidas sobre como interpretar Khrushchev. Todos estavam desesperados e Kennedy e seu conselho acreditavam que não tinham escolha a não ser o confronto militar.
É quando intervém o ex-embaixador na URSS Llewellyn Thompson, cuja longa experiência de negociação com comunistas lhe deu a capacidade de antecipar com precisão os movimentos contraditórios de Khrushchev.
“Thompson diz a Kennedy que o líder soviético está em uma encruzilhada e ele precisa oferecer uma saída”, conta Brenner.
Thompson recomenda abordar Khrushchev e prometer não invadir Cuba em troca da retirada dos mísseis. Informe-o também que retirará os mísseis da Turquia em segredo e sem torná-lo público como parte da negociação.
O procurador-geral Robert Kennedy então se reuniu secretamente com o embaixador soviético nos Estados Unidos, Anatoly Dobrynin, e indicou que os Estados Unidos planejavam remover os mísseis Júpiter da Turquia de qualquer maneira, e o fariam em breve, mas que isso não poderia fazer parte do processo de qualquer resolução pública da crise dos mísseis.
Na manhã seguinte, em 28 de outubro, Khrushchev declarou publicamente que os mísseis soviéticos seriam desmontados e retirados nas próximas semanas.
A crise dos mísseis era história e o segredo do acordo dos mísseis turcos foi mantido por 25 anos.
“A capacidade de pensar com empatia sobre o que Khrushchev precisava acabou com a crise”, explica Brenner.
As consequências da crise
Enquanto Kennedy e Khrushchev vendiam a resolução da crise como um triunfo diplomático para o alívio de seus cidadãos, a decepção se instalava no governo cubano.
O historiador Zanetti relata que Cuba foi excluída das negociações e que suas exigências foram ignoradas.
“O governo cubano considerou que, embora o acordo tenha eliminado o perigo de uma guerra nuclear, não oferecia as garantias necessárias para a segurança de Cuba e a paz no Caribe”, disse.
“[Fidel] Castro propôs cinco pontos que incluíam o levantamento do bloqueio econômico, o fim da promoção de atividades subversivas na ilha pelos EUA e a retirada da Base Naval de Guantánamo”, acrescenta o acadêmico.
Após este episódio, o próprio Fidel reconheceu que as relações entre Cuba e a URSS foram afetadas por algum tempo.
A diplomacia entre Havana e Washington continua condicionada em parte pelos turbulentos acontecimentos da década de 1960. O embargo econômico ainda está em vigor, assim como o governo socialista, e apesar dos esforços feitos durante o governo de Barack Obama, as relações bilaterais parecem longe de normalizar.
Por sua vez, após a crise de outubro, Washington e Moscou estabeleceram uma linha telefônica direta, conhecida como “telefone vermelho”, para evitar que tais tensões se repetissem.
A Guerra Fria durou até 1991 com a dissolução da URSS. Kennedy foi assassinado em 1963. Khrushchev morreu em 1971, aos 77 anos. Nem viu o fim do conflito que quase levou o mundo ao desastre.
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