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Pozzo ergue a taça Jules Rimet após a vitória da Itália na Copa do Mundo de 1938

Quando Didier Deschamps comandar a seleção francesa contra Marrocos na semifinal da Copa do Mundo na quarta-feira (14/12), ele espera dar mais um passo para se tornar apenas o segundo técnico na história a vencer o torneio consecutivamente.

Apenas dois países venceram Copas do Mundo masculinas seguidas: a Itália em 1934 e 1938 e o Brasil em 1958 e 1962. Mas como o comando da seleção brasileira mudou de mãos entre os campeonatos, o ex-técnico da Azzurra Vittorio Pozzo (1886-1968) é até hoje o único a realizar tal feito.

Apelidado de Il Vecchio Maestro (o velho mestre, em italiano), Pozzo foi considerado um visionário da época e é creditado como uma das mentes por trás da formação Metodo, o exemplo mais antigo do 4-3-3 que conhecemos hoje.

No entanto, longe de ser reverenciado como o único técnico a vencer a Copa do Mundo masculina duas vezes, Pozzo permanece relativamente pouco conhecido. E há uma razão para isso.

“É intencional que poucas pessoas saibam quem ele é”, diz o historiador Alex Alexandrou, presidente e cofundador da rede Football and War.

“Se você pensar na Itália pós-1945, e como a Fifa e a Federação Italiana de Futebol se projetam e se promovem, a única coisa que eles não queriam fazer era dar crédito a Pozzo e ao que aconteceu durante a década de 1930, porque há uma significativa ligação com a extrema-direita e o fascismo.”

Apesar de Pozzo ter assumido o comando da seleção italiana pela primeira vez nas Olimpíadas de 1912 – antes dos fascistas chegarem ao poder – e nunca ter sido membro do Partido Nacional Fascista, sua história está intrinsecamente ligada ao movimento de extrema-direita que culminou na ditadura de Benito Mussolini.

As quatro estrelas orgulhosamente estampadas na camisa da seleção italiana para simbolizar suas quatro vitórias na Copa do Mundo reconhecem as conquistas de 1934 e 1938, mas ainda há algum desconforto em torno delas.

“Pozzo não é tão famoso ou exaltado quanto poderia ser, porque ganhou seus troféus sob um regime fascista”, explica o especialista em futebol italiano John Foot.

“Ele não foi forçado a fazer isso, ele participou disso. Os jogadores fizeram a saudação fascista, e havia muita retórica oficial em torno deles, então, é um problema no contexto italiano. Essas Copas do Mundo contam mesmo?”

O historiador esportivo Jean Williams acrescenta: “Muitas pessoas descrevem Pozzo como alguém que capitulou ao regime – que concordou com ele em vez de enfrentá-lo”.

“A menos que você deixasse o país, era muito difícil evitar, da mesma forma que muitos jovens teriam se tornado parte da Juventude Hitlerista [na Alemanha nazista] porque era essencialmente a versão deles dos escoteiros.”

Alexandrou concorda. “Acho que Pozzo não tinha muito tempo para a política em si ou mesmo para os fascistas, mas ele amava seu futebol e tinha que sobreviver naquele regime. Ele fez o que sentiu que tinha que fazer para realizar o trabalho que queria, que era ser técnico.”

O governo fascista de Mussolini identificou rapidamente o valor de uma forte associação com o futebol depois de tomar o poder em 1922, e seu envolvimento com o esporte da Itália se aprofundou quando o país se tornou uma ditadura.

Propaganda e suspeitas de trapaça

Houve um investimento no futebol em busca da melhor chance possível de sucesso no cenário internacional, com a Série A reorganizada em 1929 para criar uma competição mais forte e ajudar a desenvolver jogadores que pudessem competir no nível mais alto.

O general Giorgio Vaccaro (1892-1983) foi nomeado chefe da Federação Italiana de Futebol. Mas, quando se tratava da seleção, Pozzo era o garoto-propaganda.

A Itália foi anfitriã da Copa do Mundo em 1934. Os governantes do país consideraram crucial que eles vencessem, reafirmando assim os fortes valores nacionalistas do fascismo e transmitindo globalmente a imagem de uma nação moderna e assertiva.

Embora uma combinação da abordagem tática de Pozzo e uma torcida partidária ajudasse as chances de glória da Itália, também havia rumores de trapaça – com Mussolini supostamente se reunindo com os árbitros do torneio na noite anterior às partidas importantes.

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Pozzo, em outubro de 1938

Embora nenhuma corrupção tenha sido provada, os adversários reclamaram da leniência dos dirigentes em relação ao jogo agressivo da Azzurra.

O árbitro suíço Rene Mercet foi até suspenso por sua própria federação de futebol após alegações de que tomou várias decisões controversas quando a Itália derrotou a Espanha nas quartas-de-final.

Apesar das acusações, não há dúvida de que a engenhosidade tática de Pozzo teve impacto. Os italianos sofreram apenas três gols em cinco partidas.

A preferência do técnico por jogar com quatro zagueiros e um meio-campista defensivo deu ao time uma base mais forte diante da popular formação 2-3-5.

“Começamos a ver o início do catenaccio, em que o meio-campo é uma espécie de defesa”, explica Williams.

Pozzo pode, em outro sentido, ser visto como um precursor do técnico internacional moderno em sua insistência em ter controle total sobre a escolha do time.

Anteriormente, muitas seleções eram escolhidas por comitês, mas Pozzo disse que a melhor chance de sucesso era o técnico assumir a responsabilidade.

Isso significava que Pozzo poderia recorrer aos oriundi, um termo usado para descrever pessoas nascidas no exterior com ascendência italiana, para reforçar seu time.

Nessa diáspora, ele convocou Luis Monti (1901-1983), que havia disputado a final da Copa do Mundo de 1930 pela Argentina, e Raimundo Orsi (1901-1986), outro ex-jogador argentino que marcaria pela Itália na final de 1934, uma vitória por 2 a 1 sobre a Tchecoslováquia.

A ideia não agradava a todos no regime fascista, mas a perspectiva de formar uma seleção mais forte fez o debate pender a favor de Pozzo.

Sua nova equipe era bem organizada, tratava as partidas como batalhas e dava o sangue para vencer. Os campos de treinamento foram pontuados com fortes mensagens nacionalistas, e os jogadores eram tratados quase como se fossem soldados, com exercícios como marchas pela floresta.

Saudação fascista na França

Pozzo continuou a desenvolver sua abordagem nos quatro anos seguintes, levando a Itália à vitória nas Olimpíadas de 1936 em Berlim e se tornando o primeiro técnico a vencer uma Copa do Mundo em solo estrangeiro, na França, em 1938.

Enfrentando uma multidão anti-italiana na partida de abertura do torneio contra a Noruega em Marselha, Pozzo e seus jogadores fizeram uma saudação fascista como um gesto de desafio e se recusaram a abaixar os braços até que as zombarias cessassem. Ao recolher a saudação, o barulho recomeçou, com Pozzo dando a ordem para que erguessem os braços mais uma vez.

À medida que a Itália avançava no torneio, um confronto nas quartas-de-final com a anfitriã França apenas aumentou ainda mais a tensão política, e os italianos trocaram suas camisas azuis habituais por uniformes pretos em vez de usar sua segunda cor, branco, por ordens superiores.

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A primeira vitória de Pozzo e da Itália na Copa do Mundo é celebrada em um desenho de 1934

A essa altura, a Itália exibia um pouco mais de criatividade, com Giuseppe Meazza crescendo em influência no centro do meio-campo cuidadosamente construído por Pozzo.

O capitão foi crucial quando os detentores do título despacharam a França por 3 a 1. Ele marcou o gol de pênalti na vitória contra o Brasil na semifinal.

Na final, ele foi fundamental para que os atacantes Luigi Colaussi e Silvio Piola ficassem em posição para marcar duas vezes cada um na vitória por 4 a 2 sobre a Hungria.

O significado da segunda vitória consecutiva na Copa do Mundo não passou despercebido pelo governo fascista. Reza a lenda que Mussolini enviou um telegrama ao time na véspera da final dizendo “vencer ou morrer”. É uma história que nunca foi confirmada.

Mas seria o fim da história de Pozzo na Copa do Mundo. A eclosão da Segunda Guerra Mundial significou que o torneio não voltou a ser realizado até 1950, quando ele foi dispensado de suas funções e banido do futebol italiano por sua associação com o governo fascista.

Pozzo se tornou um respeitado jornalista que cobria a seleção italiana para o jornal diário La Stampa, mas nunca mais voltaria ao posto de técnico. Ele morreu em dezembro de 1968, aos 82 anos.

“Pozzo era obviamente um líder muito em mobilizar e motivar suas equipes”, diz Foot em seu livro.

“Ele via o futebol como uma guerra e usava a retórica nacional em torno de torneios internacionais. Era como se a guerra tivesse sido transportada para o campo.”

*Chris Evans é o autor de ‘How to Win the World Cup: Secrets and Insights from International Football’s Top Managers’ (Como Vencer a Copa do Mundo: segredos e ideias dos maiores treinadores do futebol internacional, em tradução livre)