- Daniel Salomão Roque
- De São Paulo para a BBC News Brasil
Sobre um piano vermelho-escuro, entre telas a óleo e velhas fotografias em preto e branco, repousa um crachá com desenhos de Keith Haring. As linhas grossas, formando silhuetas estilizadas, obedecem à mesma estética difundida pelo grafiteiro nas ruas de Nova Iorque, embora a inscrição nomeie um cenário europeu: os camarins do Festival de Jazz de Montreux, na Suíça.
“Cada músico ganhava um desses”, explica Paulo Garfunkel, rodeado por seis cachorros, dois gatos e uma tartaruga em sua casa na Vila Madalena, zona oeste da capital paulista. “Toquei com o Ney Matogrosso na edição de 1983”.
Garfunkel, vulgo Magrão, é um ogã alabê — filho de santo que cuida dos tambores num terreiro de candomblé. Ele venera quadrinhos franco-belgas e credita aos personagens Asterix e Lucky Luke um papel crucial em sua alfabetização. Por parte de mãe, é neto de imigrantes russos e italianos. O avô paterno, vindo da região metropolitana de Paris, radicou-se como pintor em Curitiba.
“Uma baita mistura”, diz. “Eu e meu irmão nascemos assim, mestiços e enferrujados, os únicos ruivos da família. No primário, estudávamos de gravata, mas depois que nosso pai morreu, degringolamos de grana. Aí, a gente se enveredou pela música e perdeu o ranço burguês. Esse é um caminho sem volta”.
No início dos anos 1970, Garfunkel estudou flauta no Centro Livre de Aprendizagem Musical, fundado por integrantes da banda Zimbo Trio. Junto ao irmão, Jean, participaria de inúmeros festivais até o início da década seguinte: “A gente era caça-prêmio”, admite. “Muitas vezes, chegávamos nas cidades sem nada no bolso, tentando faturar uns trocados com músicas de maior apelo”.
A situação melhoraria com um telefonema, recebido em 1979. No outro lado da linha, encontrava-se o arranjador César Camargo Mariano, buscando jovens músicos para os próximos shows de sua esposa, Elis Regina. “Pensei que fosse um engano”, lembra. “Logo eu, tocando com a Elis?”.
A turnê resultou num disco duplo, o clássico Saudade do Brasil. Calcanhar de Aquiles, um dos tantos sambas que Garfunkel havia escrito com o irmão, foi gravado no álbum Elis, de 1980 — o último que a cantora lançou em vida. Posteriormente, os caminhos do instrumentista se cruzariam com os de Rita Lee, Johnny Alf e Jackson do Pandeiro, entre outros medalhões da MPB.
“Mas não trabalhei apenas com grandes compositores e intérpretes”, observa. “Músicos são operários, quase nunca podem se dar ao luxo de recusar um convite. Estive em carretas de caminhão, feiras de gado, prostíbulos de quinta e num monte de evento cafoninha”.
Macunaíma sem preguiça
Em 1989, Garfunkel tocava sax numa famosa boate do Itaim Bibi: “Era aquele típico lugar metido a besta, com executivos xavecando secretárias bilíngues”, descreve. “Quando caía a madrugada, os policiais da ronda noturna se sentiam mais à vontade para cheirar cocaína no balcão”.
Garfunkel subia aos palcos à uma da manhã, revezando-se com outros músicos até as cinco — o repertório, em suas palavras, era “meio soul, meio pop, tipo Stevie Wonder”. Nos intervalos, costumava bater papo com o porteiro da casa noturna — um “negro forte, grisalho, transbordando altivez”. E foi então que o passado daquele homem se descortinou.
O velho funcionário contava histórias mirabolantes sobre Hitler, as Olimpíadas de Berlim, a experiência de subir no ringue dos nazistas e as supostas medalhas que teria disputado em nome do Brasil. Chamava-se Luiz Campos Soares, mas nos anos 1930 fora conhecido pela alcunha de Gaúcho. Era um ex-boxeador, vice-campeão sul-americano na categoria dos meio-pesados. O Jornal dos Sports referia-se a ele como a “personificação da delicadeza e disciplina”; um cronista do Sport Ilustrado o descrevia como “destemido e possuidor de um golpe potente”.
Ainda sob o impacto de tais narrativas, Garfunkel viu um colega assumir a paternidade de uma criança. Ele relembra: “A mãe tinha dado para vários caras do bairro, mas o menino nasceu com a fuça idêntica à desse tecladista. Ninguém fazia teste de DNA naquela época, saca? Então fiquei pensando que loucura não seria, se o bebê herdasse características físicas de todos os pais”.
Garfunkel concluiu que o brasileiro, mesmo quando se enxerga como branco, nada mais é do que um cão sem raça. Diante dessa realidade, imaginou um herói boêmio, multiétnico, filho de vários homens e uma única mulher. Um Macunaíma nada preguiçoso, com pele escura, físico de pugilista, infinita disposição para o sexo e trejeitos de samurai urbano.
Estava lançada a premissa de um gibi erótico — O Vira-Lata: “Sempre gostei de quadrinhos do gênero”, diz. “Mas achava os enredos, em sua maioria, bem fracos. Eram meras desculpas para transas desconexas. Eu queria bolar algo melhor, uma história violenta e cheia de ação, com texto bem trabalhado”.
Aos poucos, a trama ganhou forma. Nas esquinas de São Paulo, o grupo de extermínio Saneamento Básico mataria prostitutas e mendigos. Um andarilho, versado em ritos afro-brasileiros e manejo de espadas, vingaria cada assassinato, desmantelando a organização. Paralelamente, flashbacks mostrariam ao leitor as origens do herói: sua mãe, vítima de feminicídio, engravidara de sucessivas relações sexuais com um negro, um japonês, um alemão e um ibérico.
Unidos por Hugo Pratt
Em 1990, Garfunkel fez um desabafo ao músico e produtor Marco Antônio Gonçalves dos Santos, vulgo Skowa: “Estou escrevendo esse roteiro para uma HQ. Já virou um livro, mas não pinta nenhum desenhista”.
Skowa deduziu que o projeto interessaria a um amigo, Líbero Malavoglia, a quem telefonou naquele mesmo instante. O ilustrador, conhecido simplesmente como Líbero, tinha uma viagem marcada à Europa, mas se dispôs a encontrá-los dali a alguns minutos, ao ouvir de Garfunkel que ele buscava “uma onda Hugo Pratt”.
Pratt é frequentemente comparado aos escritores Joseph Conrad e Jack London. Teve uma vida nômade e aventureira, evocada nas histórias de seu personagem mais célebre, o marinheiro Corto Maltese. Quando pequeno, Líbero descobrira o quadrinista nas páginas do Corriere dei Piccoli — suplemento infanto-juvenil do Corriere della Sera, o maior jornal da Itália. Ele ainda guarda os exemplares.
“Olha que lindo”, diz, frente às prateleiras de sua casa, em São Paulo. “Foi aqui que eu conheci as HQs. Também tinha contos, passatempos e matérias educativas. Tudo impresso em quatro cores”.
Líbero é filho de um repórter siciliano, ex-colaborador do Corriere. Rabiscava desde a infância e tornou-se um adolescente obcecado pela Marvel Comics: “A anatomia que eu dominava era a dos super-heróis”, lembra. “Muito músculo e poucas curvas. O tesão me levou a esboçar mulheres, mas eu sempre empacava. Era difícil fazer peitos, coxas, bundas. Eu só sabia desenhar corpo de homem”.
As travas foram superadas no início dos anos 1980, ao tornar-se assistente de Alain Voss (1946-2011). O artista franco-brasileiro, ligado à banda Os Mutantes e à mítica revista Métal Hurlant, o introduziu no mercado da ilustração publicitária, após ter lido algumas de suas histórias.
“Eram narrativas bem curtinhas, publicadas em gibis underground que nunca passavam do segundo número”, diz. “O Vira-Lata, na verdade, foi meu primeiro trabalho de fôlego como quadrinista. Se o Magrão é o pai do personagem, eu sou a mãe. Tive que parir esse negócio”.
Líbero afirma não conhecer nada tão cruel e exaustivo quanto a elaboração de uma HQ — em minutos, os leitores devoram um produto que lhe custou meses de trabalho. Garfunkel, entretanto, define os quadrinhos como um espaço de liberdade total.
“Você pode criar qualquer coisa, sem preocupações com orçamento. Se você quiser uma fuga de helicóptero nas cataratas do Iguaçu, está tudo certo. Seu personagem vai mergulhar numa bolha de urina, lá nas profundezas do rio Tietê? Tranquilo, também”.
Ilustrador e roteirista se encontravam para buscar os filhos na escola, e discutiam ideias pelo meio do caminho. Ao longo da entrevista, vão citando mais algumas inspirações: as obras de Carlos Zéfiro, Jack Kirby e Moebius; o mangá Lobo Solitário; a série noir espanhola Torpedo 1936; os filmes Sanjuro, de Akira Kurosawa, e Era uma Vez na América, de Sergio Leone; suas próprias vivências enquanto praticantes de artes marciais. Garfunkel é praticante de kenjutsu, e Líbero, faixa preta em aikido.
“As cenas de ação eram uma bronha”, confessa o desenhista. “A gente discutia a maneira mais adequada de meter a faca nos vilões, de rasgar suas gargantas com lâmpadas tubulares, de estilhaçar um prato na cara deles. Chegávamos a coreografar os golpes nos mínimos detalhes”.
A história foi publicada em novembro de 1991, pela revista Animal — na época, a maior referência em quadrinhos adultos do Brasil. O marido da atriz Regina Braga, com quem Garfunkel trabalhara na peça Estrebucha Baby, adquiriu um exemplar. Ele chefiava o serviço de imunologia do Hospital do Câncer e via no gibi a oportunidade ideal para mitigar uma velha angústia. Seu nome era Drauzio Varella.
Uma pandemia assola o Brasil
Varella ainda se lembra daquele almoço, no segundo semestre de 1981. Junto aos colegas, ele recepcionava um médico norte-americano que desembarcara em São Paulo há poucos dias. Surpreso, o estrangeiro descrevia aos anfitriões o quadro clínico de alguns pacientes — três jovens homossexuais, diagnosticados com uma variante agressiva do sarcoma de Kaposi.
“Era um tipo de câncer, até então raríssimo”, explica Varella. “Classicamente, evoluía de forma lenta, com lesões roxas na pele, e vitimava judeus, árabes, homens idosos do Mediterrâneo. Fiquei invocado com aqueles casos em rapazes tão novos”.
Menos de 24 horas depois, dirigiu-se à Escola Paulista de Medicina. Na biblioteca, folheou a coleção do Morbidity and Mortality Weekly Report, periódico científico editado pelo Serviço Nacional de Saúde dos EUA. Um número recente continha descrições semelhantes às que ouvira na véspera.
Em Los Angeles, os infectologistas Michael Gottlieb e Joel Weisman haviam examinado cinco portadores de Pneumocystis carinii — fungo causador de pneumonia em indivíduos imunossuprimidos, mas pouco usual noutros quadros. Os pacientes, sem nenhuma condição prévia que justificasse sintomas graves, apresentavam febre alta, diarreia crônica, erupções cutâneas, perda de peso e inchaço nos gânglios linfáticos. Todos eram gays, e dois já estavam mortos.
O artigo, publicado em 5 de junho daquele ano, é hoje considerado o primeiro registro sobre a AIDS na história da literatura médica: “Eu queria muito entender aquele negócio”, lembra Varella. “Uma doença viral, que provocava depressão imunológica, infecções oportunistas e câncer. Tudo o que sempre gostei de estudar”.
Em 1983, o oncologista fez as malas rumo a Nova Iorque, epicentro da nascente epidemia. Como estagiário do Sloan Kettering Memorial Hospital, em Manhattan, observou diversos enfermos com HIV. Certa noite, ao final do expediente, encontraria um velho amigo.
“Alguém gritou meu nome no outro lado da rua, enquanto eu saía do hospital. Olhei em meio à escuridão e o cara estava lá, todo encapotado, só esperando uma brecha no trânsito para vir falar comigo. Ele dava aulas de piano na cidade e me chamou para jantar com um grupo de brasileiros. Nem roupa eu tinha direito, mas topei mesmo assim”.
Foi uma festa alegre e majoritariamente LGBT. Entre amenidades e pratos de feijoada, os convidados teciam palpites sobre a nova moléstia. A AIDS, diziam eles, era um plano do governo Reagan para aniquilar homossexuais. Ali na mesa, porém, todos estariam a salvo — afinal de contas, tinham preparo físico, equilíbrio psicológico e boa alimentação.
“Percebi que uma tragédia estava prestes a estourar no Brasil”, recorda Varella. “Subi a Quinta Avenida naquele frio de novembro, com medo dos rapazes voltarem infectados para cá. As mulheres não seriam poupadas, pois não existe doença sexualmente transmissível que permaneça restrita a um único gênero. Será que só eu via aquilo? Foi uma sensação muito estranha mesmo, como se eu guardasse um enorme segredo”.
No retorno ao país, o médico encontraria seus colegas totalmente despreparados. A AIDS dominara a África, e pouco a pouco se difundia em território asiático. Enquanto isso, a cocaína injetável se proliferava nos bairros periféricos paulistas, sem que ninguém relacionasse o HIV ao uso de drogas.
Varella explicou a situação ao jornalista Fernando Vieira de Mello (1929-2001), editor-chefe da rádio Jovem Pan: “Ele decidiu gravar meu depoimento. Fiquei meio constrangido, sabe? Na época, os médicos sérios não falavam com veículos de comunicação de massa”.
A entrevista foi dividida em pequenos fragmentos, reprisados no decorrer da grade semanal: “Eu pensava que aquilo ia queimar o meu filme. O Fernando, então, me obrigou a fazer uma escolha — preservar minha imagem ou transmitir informações de interesse público durante uma pandemia. Foi um momento decisivo para mim”.
Filme de sacanagem
Em 1989, Varella completou quatro anos de parceria com a Jovem Pan. Suas vinhetas, nunca excedendo três minutos, versavam sobre sexo anal, métodos contraceptivos e esterilização de seringas, entre outros temas espinhosos para aquele tempo.
“Era um trabalho muito similar ao que faço atualmente no TikTok”, diz. “O Fernando já defendia esse formato antes de todo mundo. Eu falava para senhoras que passavam roupa, para o sujeito que dirigia na rua. Se a mensagem fosse longa, o ouvinte desligaria o aparelho assim que chegasse ao seu destino. Mas, sabendo da curta duração, ele aguardava até o fim, e só depois é que abria a porta do carro”.
As intervenções cativaram Maria Odete Brandalise (1943-2014), herdeira da Perdigão e fundadora da TV Barriga Verde, atualmente afiliada à Rede Bandeirantes. A empresária catarinense, desejando produzir um material educativo sobre a AIDS, abordou Varella nos estúdios da rádio.
“Os vídeos sobre o tema eram sempre iguais”, lembra o médico. “Eles apenas botavam meia dúzia de gente famosa para repetir umas frases prontas, nunca saíam disso. Avisei que não estava interessado em nada do tipo, e ela me deu carta branca para percorrer São Paulo com uma equipe de filmagem”.
O programa resultante continha depoimentos de Hebe Camargo, Jô Soares e Pelé, mas não se limitava ao mundo das celebridades — prostitutas e dependentes químicos também apareciam em frente às câmeras. Algumas dessas entrevistas foram gravadas em boates e zonas de meretrício; outras, no Complexo Penitenciário do Carandiru, então o maior presídio da América Latina. Cerca de 7.200 pessoas viviam por ali.
“Assim que pisei na cadeia, me bateu uma emoção muito forte”, conta Varella. “Duas semanas depois, eu ainda pensava naqueles doentes magros, agonizando na enfermaria. Por fim, entendi que se aquele cenário me tocava tanto, é porque eu deveria me aproximar dele. Eu precisava viver aquela experiência”.
Com material cedido por um laboratório, o médico se dispôs a examinar todos os detentos que recebiam visitas íntimas. Seu grande medo, logo relatado à direção do cárcere, era a possibilidade daqueles homens estarem infectando namoradas e esposas.
“Mas não havia enfermeiros. Durante a coleta do sangue, acabei pedindo ajuda aos usuários de drogas. Você sabe, né? Os caras se picavam todo dia, tinham muita prática com seringa. Rapaz, nunca vi quem pegasse uma veia tão bem quanto eles”.
Na amostragem de 1492 presos, 17,3% receberam diagnóstico soropositivo. Alarmado, Varella propôs uma campanha educacional no velho cinema da penitenciária, obtendo a ajuda do carcereiro Valdemar Gonçalves (1948-2021). Viria dele o macete para garantir a presença do público às sete da manhã: “Doutor, todo mundo tem que ver essa palestra. A gente abre individualmente cada pavilhão, o povo chega e nós fechamos a porta. Aí o senhor fala, e no final a gente passa um filme de sacanagem. Mas saia da sala, para não perder o respeito”.
Por anos, a iniciativa foi um sucesso. O médico, entretanto, sentia falta de um bom material complementar, que chamasse a atenção dos presos — os panfletos em papel couchê, com dizeres oficiais da Organização Mundial da Saúde, iam direto para o lixo.
“Esses caras de Genebra ficam atrás da escrivaninha, crentes que vão se comunicar com todo mundo, mas a linguagem deles não atinge as prisões”, diz. “Eu via os detentos espremidos em cubículos, os corpos cheios de sarna e furúnculos, um troço medonho. Muitos deles liam gibis, e isso me fez lembrar do Vira-Lata. Eu tinha gostado bastante da HQ, e percebi que daria um personagem bacana, se a gente adaptasse para a cadeia. Falei com o Magrão e com o Líbero, eles se interessaram imediatamente”.
O médico e os quadrinistas, entretanto, não contavam com o massacre que se avizinhava.
Fora desse planeta
Mesmo que nenhuma tragédia eclodisse naquela sexta-feira, 2 de outubro de 1992, a data teria se enraizado na memória de Varella.
Às onze horas, o médico se encontrava no cinema, palestrando para 82 travestis — uma nova testagem revelara que 78% delas eram soropositivas. Ao término da explicação, foi interpelado por uma espectadora: “Era super delicadinha”, lembra. “Me olhou muito séria, lixando as unhas, e disse que toda aquela conversa seria inútil enquanto a gente não distribuísse preservativos na cadeia. Graças a ela, me atentei para essa necessidade”.
Varella ainda assimilava a bronca quando José Ismael Pedrosa (1935-2005), diretor da penitenciária, o convidou para um café: “Era meio-dia, fui até a sala dele e ouvi um monte de causos. Ele me disse para não ter pressa, que sexta-feira era o dia mais tranquilo do Carandiru. Lá por volta de uma e pouco, avisei que precisava sair”.
Enquanto os detentos faxinavam celas no aguardo de visitas íntimas, Varella corria até a Universidade Paulista (Unip). À frente da instituição, e com apoio do hotel Maksoud Plaza, ele organizava o 2º Simpósio Internacional de Biotecnologia em Câncer e AIDS — dali a uma semana, o evento traria ao Brasil o norte-americano Robert Gallo, um dos cientistas responsáveis pela descoberta do vírus HIV.
Absorto em trabalho, o médico custou a acreditar na má notícia que um colega lhe trouxe às quatro da tarde: o Carandiru pegava fogo num suposto motim do Pavilhão 9. Em menos de uma hora, 111 detentos seriam assassinados pela polícia — quase todos, réus primários.
Garfunkel acompanhava a operação pelo telejornal: “Eu me lembro do horror, dos familiares chorando na rua, os curiosos em volta, uma situação degradante”, diz. “Como toda pessoa que gosta de bichos, fiquei nauseado ao saber que a PM atacou os presos com cachorros, que mastigavam as vísceras e genitálias dos mortos”.
Meses depois, ao adentrar o cárcere, Líbero finalmente pôde dimensionar o impacto da chacina. Vagando pelos corredores da penitenciária, o ilustrador se deparou com uma enorme pintura, ocupando toda a extensão da parede lateral — uma representação gráfica daqueles corpos nus, empilhados sobre poças de sangue.
“Eu me sentia numa trama de ficção científica”, diz. “Como se estivéssemos fora desse planeta, num satélite orbitando a Terra. As gírias, os sons, os aromas, as relações sociais, o código de ética, o aspecto visual das coisas, tudo era muito diferente do que eu conhecia”.
Em tatuagens e pichações, abundavam referências a Jesus Cristo. No pátio, homens treinavam boxe e capoeira. Ângulos retos pareciam inexistentes — em todas as quinas, havia uma pequena deformação. Escadas, por exemplo, eram íngremes, sem frisos de metal: “Tudo eles subtraíam para transformar em faca”, explica. “Os presos respiravam uma atmosfera muito tensa, qualquer bobagem poderia resultar em morte. Talvez por isso, o Carandiru tenha se mostrado um dos ambientes mais polidos em que já estive”.
A cozinha desperta lembranças igualmente vívidas: “Parecia uma sauna”, descreve Garfunkel. “Com ratazanas enormes e panelas gigantescas que soltavam muito vapor. A neblina encobria o rosto das pessoas, e tudo o que você enxergava eram pés. Tinha um cheiro fortíssimo de gordura rançosa, misturado com desinfetante e carne podre”.
Espaços como aquele, repletos de utensílios cortantes, eram estrategicamente geridos pelas lideranças do presídio. “A gente se reuniu com os caras”, afirma Líbero. “E eles disseram, ‘olha, a gente é do crime, aqui todo mundo gosta de história forte. Se vier com gibi fraco da Luluzinha, a gente joga tudo no lixo'”.
Garfunkel cita as primeiras mudanças efetuadas no personagem: “Nós envelhecemos o Vira-Lata, e ele deixou de matar. Antes ele matava legal, né? Mas não dava para introduzir na cadeia um herói sanguinário, assassino de polícia”.
Varella, por sua vez, tinha outros apontamentos: “Para gerar sintonia com os leitores, o Vira-Lata se torna um ex-presidiário. Ele visita os camaradas, fica sabendo de algum problema e sai para resolvê-lo. Eu também achava importante que as aventuras tivessem sexo explícito, com camisinha. E que o protagonista fosse avesso a drogas injetáveis”.
Erotizar a camisinha
Na primeira história dessa nova fase, o Vira-Lata investiga o sumiço de Maria Rosa, cujo pai se encontra no Carandiru. O paradeiro da moça logo é descoberto: trabalhando como diarista para uma família rica, fora assassinada ao engravidar de Guto, filho dos patrões. O rapaz, descrito como “mais um babaca que toma baque na veia”, só não apanha por estar morrendo de AIDS — seus capangas, no entanto, não contam com a mesma sorte. Entre uma briga e outra, o herói saca preservativos para transar com Madalena, melhor amiga da falecida, e Camila, irmã do playboy cocainômano.
A HQ foi publicada em 1993, sob patrocínio da Unip. A empresa financiou o cachê dos artistas e uma tiragem de sete mil gibis, distribuídos gratuitamente aos detentos. Na contracapa, Varella é creditado como supervisor científico, enquanto Garfunkel enumera os atributos do personagem: “Um guerreiro urbano, andarilho justiceiro, filho de todas as raças, fruto da mistura que é hoje o povo brasileiro”.
As referências musicais dão a tônica do enredo, e tornam a aparecer nas aventuras seguintes — Pixinguinha, Cartola, Noel Rosa, Luiz Gonzaga e Tom Jobim são alguns dos compositores evocados pelo herói.
“O que me atrai no cancioneiro nacional é o poder de síntese”, explica Garfunkel. “São crônicas aladas, que atravessam a janela e passam por debaixo da porta, como cheiro de bolo em cena de desenho animado”.
As citações integravam um esforço maior, de apresentar ao público-alvo uma faceta inspiradora do país. A cada número, o Vira-Lata se torna menos urbano, migrando das sarjetas para estradas, ilhas e biomas florestais: “Eu queria levar aos presos um horizonte aberto, com outros Brasis, novas possibilidades de luta”, diz o roteirista. “E além do mais, o gibi não podia ficar chato. Se a gente insistisse muito nos mesmos cenários e naquele tatibitate sobre a AIDS, ninguém teria saco de ler até o fim”.
Um artifício, porém, assegurava a atenção do leitor: a profilaxia despontava em circunstâncias atraentes, sem nunca ocupar o centro da narrativa. “Os presos tinham bastante preconceito com camisinha, diziam que era chupar bala com papel”, afirma Líbero. “Por isso, nós tentamos erotizá-la. Ela sempre aparece como fonte de excitação”.
Às vezes, o preservativo saía da mão de alguma beldade, que o desenrolava com a boca no pênis do herói. Noutras histórias, é o próprio Vira-Lata quem tira o artefato do bolso, durante festas e celebrações. Em momentos deliberadamente cômicos, Varella surge de forma caricata, reforçando algumas dicas — como a necessidade de se remover a camisinha logo após a ejaculação, ou de se utilizar lubrificantes à base de água.
“Sou contra esse negócio de ficar repetindo que AIDS mata”, declara o médico. “Quando a gente botava personagens agonizando com a doença, era para dar um realismo, mostrar que essa desgraça pode acontecer. Mas nunca foi só para assustar. Está mais do que provado que isso não funciona como mensagem”.
Nas lixeiras, os quadrinistas testemunhariam o êxito de seu trabalho: “O descarte de Vira-Latas foi mínimo”, relata Líbero. “Quando um preso guarda determinado objeto, é porque realmente se afeiçoou a ele”.
Ave Maria
A entrega dos gibis obedecia sempre a um mesmo ritual: ao entardecer, os lotes eram colocados sobre carrinhos e distribuídos pelos corredores. A logística se baseava na demanda de cada cela e no pudor de seus ocupantes — evangélicos, por exemplo, se dividiam entre a recusa e a adesão velada.
“Todo dia, às seis horas, os presos escutavam a Ave Maria”, lembra Garfunkel, referindo-se à célebre composição cristã de Charles Gounod. “Havia uma beleza contemplativa naquilo tudo, e também uma melancolia insuportável. O crepúsculo anunciava as trevas e o início do fim, mas a gente seguia adiante, absorvendo os ruídos da chuva, da rádio AM, das portas trancadas”.
O aspecto homogêneo das grades, somado à angústia do momento, provocava lapsos: “Você se confundia, sem saber se já tinha deixado o gibi naquele lugar”, conta Varella. “Mas não tinha erro, era só olhar pelo guichê. Onde você tinha entregue, os caras estavam lendo”.
O herói não tardaria a ser adotado como mascote pela população carcerária. Ganhou, inclusive, uma alcunha carinhosa — Vira-Latinha.
“Nos retornos, a gente queria saber o que os presos tinham achado da história anterior”, afirma Líbero. “Daí eles sempre convidavam a gente para tomar um café, e aos poucos nos tornamos pessoas queridas lá dentro. Existia, por parte deles, uma necessidade muito grande de afeto e diálogo”.
A cada encontro, a equipe testemunhava novos avanços de consciência entre os leitores. Em 1995, os índices de HIV do presídio haviam caído para 13%. No ano 2000, se reduziram a 8%.
“Fora da cadeia, chamava-se a AIDS de peste gay”, relata Varella. “Mas os detentos conheciam a verdade. Eles mesmos cuidavam dos soropositivos, acolhendo e consolando na fase terminal. Dentro do Carandiru, o HIV nunca foi uma simples teoria”.
Até a implosão da penitenciária, em dezembro de 2002, foram produzidos oito números do Vira-Lata. Hoje, essa parceria se desdobra noutras frentes: Líbero ilustra a coluna de Varella na Folha de S.Paulo, e Garfunkel roteiriza vídeos para o médico no YouTube. O personagem, agora repaginado, está prestes a ganhar uma nova história.
“O Vira-Lata é um herói popular, sempre em defesa do oprimido, embora tenha idiossincrasias machistas”, observa Líbero.
Garfunkel adianta detalhes do roteiro em andamento: “O Vira-Lata vai topar com o crack, o PCC, as milícias, a institucionalização da brutalidade pelo Estado, e também com o Doutor Kuroda, um legista japonês que trafica órgãos”.
Kuroda, explica o músico, é inspirado no ex-diretor do IML de São Paulo, Harry Shibata, que produzia laudos fraudulentos para a ditadura militar.
Em 1975, Shibata atestou que Vladimir Herzog havia se enforcado nas dependências do DOI-Codi. O documento foi desmentido pelo rabino Henry Sobel (1944-2019), que vira marcas de tortura no cadáver do jornalista. Uma ação pública, subscrita pelo advogado Samuel Mac Dowell, apontaria a conivência do médico com o assassinato.
Em 1982, Mac Dowell namorava Elis Regina. A cantora morreu no dia 19 de janeiro daquele ano. Sua autópsia foi realizada por Shibata. O médico logo anunciou à imprensa uma suposta causa para o óbito: overdose de cocaína.
“Imagine só que grotesco”, declara Garfunkel. “A maior estrela do país, namorada de seu inimigo, aparece morta em suas mãos. Você abre o corpo dessa mulher incrível e aproveita a oportunidade para difamá-la. Fui amigo da Elis, e isso até hoje me deixa transtornado. Como já dizia Guimarães Rosa, Deus é traiçoeiro”.
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