“Eu não daria um centavo por essas duas velhas acabadas…”, comentou maldosamente certa vez Jack Warner, então presidente da Warner Bros, para o diretor que estava sentado do outro lado da mesa de mármore de sua sala.
O diretor era Robert Aldrich. Ele insistiu e acabou convencendo o figurão do cinema a liberar um orçamento, ainda que reduzido, para que ele pudesse dirigir o filme O que terá acontecido a baby Jane?
A adaptação para o cinema do romance gótico de Henry Farrell, feita por Aldrich em 1962, contou com as estrelas Bette Davis e Joan Crawford. Ambas na casa dos 50 anos, elas interpretaram duas irmãs em disputa, confinadas em uma mansão de Los Angeles com seus traumas e ressentimentos perversos pairando no ar.
Teoricamente, o filme era um risco claro para a Warner, especialmente em uma era em que a discriminação com base no sexo e na idade fazia com que a maior parte das mulheres de Hollywood fosse rejeitada para novos papéis a partir dos 45 anos.
Mas o filme Crepúsculo dos Deuses (1950), com a notável interpretação de Gloria Swanson como a personagem Norma Desmond, comprovou que a história de uma mulher com mais idade, desprezada e delirante, poderia trazer algo de poderoso.
Depois do enorme sucesso de Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, a Warner sabia que filmes de terror de baixo orçamento, concentrados em personagens excêntricos reclusos e seus nefastos segredos, ainda conseguiam cativar o público.
Lançado no Dia das Bruxas 60 anos atrás, O que terá acontecido a baby Jane? contrariou completamente as expectativas ruins da Warner.
Inicialmente, nem todos os críticos elogiaram o filme (“este não é um filme, é uma caricatura!”, escreveu o jornal Chicago Tribune em uma resenha devastadora). Mas a obra recebeu cinco indicações ao Oscar, além de atrair audiências diversas, muitas hipnotizadas pela rivalidade tóxica entre as irmãs e pelo retrato de duas mulheres lutando desesperadamente para escapar das prisões a que elas mesmas se impuseram.
Com custo de US$ 900 mil (cerca de R$ 4,5 milhões), o filme teve uma bilheteria de US$ 9 milhões (cerca de R$ 46 milhões) — valor que, corrigido pela inflação americana, representaria atualmente US$ 90 milhões (cerca de R$ 459 milhões).
Bette Davis representa a versão de meia idade da estrela mirim Baby Jane Hudson, que saiu dos palcos onde por anos dançou um sapateado pretensioso a plateias lotadas – época em que exigia sorvete aos gritos, como uma verdadeira diva em idade escolar – para a decadência e a solidão.
A passagem do tempo não impediu que Jane ainda se vestisse de forma extravagante, como se tivesse nove anos, sem falar nas tranças e no rosto cheio de pó branco, lutando para esconder as rugas.
Davis mantém perfeito equilíbrio entre a inocência infantil desajustada e o desrespeito arrogante. As personalidades divididas da personagem são o resultado de uma vida que, um dia, foi cheia de glamour e agora parece destruída.
Enquanto isso, Joan Crawford interpreta sua irmã menos dominadora, Blanche. Ela escapa da sombra opressiva de Jane para ter sucesso como estrela de Hollywood, de forma muito mais elegante que a irmã e por sua própria capacidade, até que um acidente de carro misterioso destrói seu futuro promissor.
Como uma trêmula relíquia do passado em uma cadeira de rodas, a personagem de Crawford forma a base do filme, incitando a alta teatralidade de Davis e oferecendo um alvo constante para o ciúme descontrolado da irmã.
A presença de Crawford e Davis juntas na tela é sempre explosiva, emocional e impossível de ser ignorada.
Grande parte da infindável fascinação pelo filme (que foi preservado pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 2021 como “historicamente significativo”) decorre da rivalidade sórdida entre as duas atrizes fora das telas do cinema. Relatos da época indicam que uma cena do filme, em que Jane ataca Blanche violentamente com uma série de chutes devastadores, na verdade, não foi um trabalho de representação.
Bette Davis foi indicada para o Oscar de melhor atriz por sua atuação. Ela afirmava que Crawford teria sentido muita raiva por ter sido preterida para a indicação em favor da outra estrela do mesmo filme. E que, por isso, Crawford teria usado suas conexões em Hollywood para garantir que Davis perdesse o prêmio na entrega do Oscar em 1963. Crawford negou a acusação.
“Joan não queria que eu ganhasse aquele Oscar!”, exclamou Davis em entrevista a Barbara Walters, anos depois que a poeira já havia assentado.
As personagens similares que se seguiram
Fofocas e conjecturas à parte, o legado mais significativo de O que terá acontecido a baby Jane? pode ser encontrado nos filmes que vieram a seguir.
Nos anos após seu lançamento, Hollywood começou a produzir uma série de filmes do chamado terror de “Hagsploitation” (algo como “exploração de bruxas velhas”, em português). O subgênero também recebeu outros nomes, como “psycho-biddy horror” (“terror das mulheres psicóticas”), “terror das bruxas” e “Grande Dame Guignol” — mas todos desenvolvem a ideia de mulheres que ficaram descompensadas com a idade.
Nesses filmes, atrizes veteranas como Barbara Stanwyck, Tallulah Bankhead, Shelley Winters e Debbie Reynolds interpretaram vilãs delirantes e exageradas como baby Jane. Esses papéis garantiram a continuidade de suas carreiras.
Mas este subgênero é profundamente problemático, a começar pela sua própria denominação.
“Hagsploitation é um termo misógino e preconceituoso com relação aos mais velhos, que é aplicado a estrelas do cinema decadentes que foram reinventadas como esses fantasmas grotescos”, diz Christopher Pullen, professor de mídia e inclusão da Universidade de Bournemouth, no Reino Unido.
“Reconheço que esses filmes foram grandes oportunidades para [as mulheres de meia idade] encontrarem novos papéis, mas, de muitas formas, eram papéis humilhantes que transmitiam estereótipos problemáticos sobre o envelhecimento de corpos femininos e as possibilidades de vida que podem existir para mulheres mais velhas”, completa.
Em muitos aspectos, é difícil discordar dessas observações.
O gênero Hagsploitation foi construído sobre noções duvidosas sobre mulheres mais velhas, incapazes de manter um casamento ou criar um filho adequadamente, que ficaram devastadas. E, para elas, cometer assassinatos ou gritar para os céus era praticamente tudo o que ainda poderia lhes gerar satisfação.
No filme Alguém morreu em meu lugar (1964), Bette Davis interpreta duas irmãs gêmeas, Margaret e Edith Phillips. Enquanto Edith é rica e glamourosa, Margaret é pobre, envelhecida e dirige um bar que, nitidamente, é uma espelunca.
Edith decide então assassinar a irmã para assumir sua identidade e riquezas em uma jogada de xadrez maquiavélica. O filme mostra o estereótipo nocivo de que uma mulher envelhecida, incapaz de manter a segurança do casamento, é alguém praticamente inútil que começará a alimentar uma raiva incontrolável que acabará por definir a sua vida.
Lançado no mesmo ano, A Dama Enjaulada adota a mesma metáfora. Sua história concentra-se na sra. Hilyard (interpretada por Olivia de Havilland), uma mãe solteira de fala suave que protegeu seu filho crescido por toda a vida, levando-o a fugir e deixar uma carta confirmando suas tendências suicidas, causadas pela natureza dominadora da mãe.
Quando a personagem interpretada por Havilland, que sofre de uma fratura no quadril, fica perigosamente presa no elevador doméstico que ela havia instalado, ladrões decidem aproveitar e saquear a casa, tratando-a com total indiferença.
Os gritos desesperados da sra. Hilyard — “sou um ser humano, uma criatura pensante, com sentimentos!” — são motivos de risos. Ela então perde gradualmente o juízo, o que é algo que costuma ser comum no gênero Hagsploitation.
Na visão fria da sociedade mostrada pelo filme, da sobrevivência do mais adaptável, a personagem de Havilland é considerada totalmente inútil, em uma óbvia metáfora de como os Estados Unidos tratam as mulheres na menopausa ou pós-menopausa.
Outro filme importante do gênero Hagsploitation é o terror britânico Fanatismo macabro (1965). Sua personagem principal, a sra. Trefoile (interpretada pela atriz Tallulah Bankhead) é uma mulher idosa infeliz que se irrita quando a namorada do seu filho morto se atreve a visitá-la.
Irada, a sra. Trefoile descreve vestidos vermelhos como “satânicos” e proíbe todos os condimentos da mesa de jantar. Ela incorpora completamente as noções misóginas de que, quando as mulheres chegam a certa idade, sua existência precisa ser seca e sem sexo, puramente dedicada a Deus, à maternidade e a reviver as glórias do passado.
“A essência da ideia da bruxa mostra como, pelo menos em muitas culturas, as mulheres mais idosas são figuras repulsivas”, explica sobre esses filmes a pesquisadora de estudos do cinema da Universidade de Roehampton, no Reino Unido, Deborah Jermyn.
“Em uma sociedade em que o capital das mulheres é mais ostensivamente ligado à beleza e a fertilidade, e a beleza e a fertilidade são características da juventude, as mulheres mais velhas deixam de ter uma função que pode ser demonstrada e sua presença torna-se incômoda, repugnante e inoportuna”, afirma Jermyn.
Para ela, “é por isso que as mulheres mais idosas aparecem com frequência entre as historicamente acusadas de serem bruxas. O cinema Hagsploitation cristaliza todas essas ideias.”
Mesmo que esses filmes tenham sido pensados por executivos de Hollywood como forma de fazer o público rir dos sinais de envelhecimento, a notável interpretação das suas estrelas destaca-se por si própria.
Em O que terá acontecido a baby Jane?, por exemplo, as ações de Jane são abertamente demoníacas (como na cena em que Jane tenta servir um periquito morto para Blanche no jantar), mas existe uma tristeza nos olhos de Bette Davis que transpõe os limites da tela. Davis eleva a personagem original e força o espectador a sentir algo por Jane que seria improvável apenas com a caricatura nua e crua idealizada pela Warner Bros.
Davis repete seu bom desempenho no filme Nas garras do ódio (1965), que conta a história de uma babá assassina. Ela transforma a personagem em uma anti-heroína que você simplesmente deseja que tivesse recebido mais atenção da família arrogante de classe média para quem ela trabalhou por tanto tempo.
Também as duas atuações impressionantes da atriz Shelley Winters nos filmes de Hagsploitation criminosamente menosprezados do cineasta americano Curtis Harrington — Fábula macabra e Obsessão sinistra (ambos de 1972) — são outra prova de que esses papéis trouxeram muitos frutos para as estrelas que os representaram.
Em Fábula macabra, Winters interpreta a personagem Rosie “Roo” Forest, uma matriarca rica, mas solitária, que perde sua filha em circunstâncias trágicas. Todos os anos, Forest convida as crianças de um orfanato local para uma festa de Natal, tentando preencher a lacuna deixada no coração pela morte da sua filha.
Em alguns momentos, Winters brinca com essas crianças como um gato torturando um grupo de filhotes de camundongos indefesos. Um jovem valente chamado Christopher (interpretado por Mark Lester) compara Forest explicitamente com o arquétipo da bruxa que come crianças da fábula de João e Maria.
Em uma cena realmente apavorante, pode-se ver Forest colocando delicadamente o corpo mumificado da filha para dormir em um berço. É um momento que causa um misto de medo e empatia do espectador, por sua referência ao nosso medo coletivo da solidão. A interpretação do luto e do sofrimento feita por Winters, atravessando diversos ciclos de traumas, toca profundamente até hoje.
A crítica de cinema britânica Steph Green concorda que o gênero Hagsploitation inclui uma boa parcela de misoginia e temas moralmente insensíveis, mas também destaca suas virtudes. Seus filmes oferecem “personagens complexas e incomuns, malucas e divertidas, para mulheres que não conseguiam mais ofertas de papéis interessantes”.
A razão pela qual essas interpretações tendem a ser negligenciadas na história do cinema, segundo Green, é porque o público foi treinado para pensar nos filmes do gênero Hagsploitation como atrações sensacionalistas, e não como dramas humanos.
“Sinto que [o que as pessoas] deixam de reconhecer, muitas vezes, é a inteligência e a habilidade necessárias para interpretar uma caricatura e ainda extrair empatia dos espectadores que passaram as últimas duas horas simplesmente tendo pena de você”, explica ela.
“Nos anos 1960 e 1970, os homens conseguiam interpretar chefes de Estado, heróis, detetives e advogados gentis até os 70 anos; as mulheres tinham menos escolhas.”
Legado duradouro
Embora o pico desses filmes tenha ocorrido nos anos 1960 e no início dos anos 1970, eles continuaram a ser produzidos nas décadas seguintes.
No final dos anos 1970, o filme italiano A freira assassina incluiu uma interpretação surpreendente da atriz Anita Ekberg (que havia sido a beldade deslumbrante de A Doce Vida, de Fellini, em 1960), como uma freira idosa que injetava heroína e abusava dos seus pacientes.
“Nas críticas, ela foi menosprezada pelos críticos homens como ‘ultrapassada’, expondo o tipo de misoginia que é fortalecido com esses filmes”, afirma Green. “Mas A freira assassina realmente escancara as questões centrais do Hagsploitation: sombras de misoginia internalizada lutando contra o que são, muitas vezes, atuações integralmente dedicadas.”
Em 1980, Sexta-Feira 13 também trouxe novos ares para o gênero. O filme teve a ousadia de apresentar, como sua principal assassina, uma mãe idosa desesperada para punir os monitores — usuários de cannabis e que andavam seminus — do acampamento Camp Crystal Lake, onde seu filho Jason havia se afogado por negligência dos funcionários.
A personagem Pamela Vorhees, interpretada pela atriz Betsy Palmer, foi possuída por uma raiva terrível, que sussurrava “mate-a, mamãe”, na voz de Jason, sob sua respiração.
Um ano depois, Mamãezinha Querida — um filme biográfico da própria Joan Crawford, que traz a interpretação da atriz Faye Dunaway — trouxe traços de Hagsploitation, com cenas em que a atriz tortura sua enteada por se atrever a pendurar roupas no cabide. Estas cenas são tão traumáticas quanto caricaturais, em uma combinação de tons que foi fundamental para o poder do gênero Hagsploitation.
O legado do gênero ficou consolidado em 1990, com o filme Louca Obsessão, a adaptação para o cinema do romance de Stephen King publicado em 1987. Nele, um romancista famoso (James Caan) sofre um acidente de carro na área rural coberta de neve do Colorado, nos Estados Unidos. Ele recebeu tratamento da sua “fã número 1” Annie Wilkes (considerada a melhor interpretação da carreira da atriz Kathy Bates).
Wilkes é apresentada como um anjo da morte do meio-oeste americano, de meia idade e antiquada. Ela quebra os tornozelos do seu amado prisioneiro para evitar que ele escape, enquanto o censura dissimuladamente por ser “pervertido”.
Kathy Bates é a combinação perfeita entre Bette Davis como baby Jane e Shelley Winters como Roo Forest. Ela recebeu o Oscar pelo papel e o prêmio serviu para dar nova vida a este tipo de interpretação.
E, quando se fala em filmes de terror mais modernos, pode-se até argumentar que o filme Hereditário (2018), do cineasta americano Ari Aster, cujo tema central é formado por mães iradas que lutam para influenciar seus filhos, deve suas origens ao gênero Hagsploitation.
‘Retrato da indignação do sistema’
Olhando para o futuro, Deborah Jermyn espera que o público possa começar a observar os filmes de Hagsploitation, com todos os seus problemas, de forma renovada.
Grandes estrelas de Hollywood criaram nesses filmes atuações emblemáticas, contrariando as expectativas. Corajosamente, elas trouxeram visibilidade para o envelhecimento em uma indústria cinematográfica conhecida principalmente por querer escondê-lo.
Entre outros pontos, Jermyn espera que possamos começar a olhar para esses personagens e para a raiva das atuações de forma mais complexa.
“Embora muitas vezes motivadas pela necessidade financeira, as mulheres que aceitaram esses papéis personificaram uma rejeição memorável das restrições sociais impostas sobre as mulheres mais idosas”, afirma ela.
“Ao fazê-lo, na verdade, elas deram visibilidade a essas restrições sociais”, prossegue a acadêmica, “e seu impacto condenatório sobre as mulheres na indústria do entretenimento, expondo a superficialidade e a injustiça de uma sociedade que deixa de valorizar as mulheres à medida que elas envelhecem.”
“Neste particular, estrelas interpretando ‘bruxas’ furiosas em filmes da indústria cinematográfica certamente referem-se a si próprias e fazem sua crítica de forma fascinante — elas retratam a indignação de todo o sistema”, conclui Jermyn.
Esta reportagem foi originalmente publicada em – https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-64225304
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