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Nos primeiros minutos do filme de ficção científica Blade Runner 2049, um carro de polícia sobrevoa uma paisagem que foi transformada pela agricultura sintética.

Espelhos dispostos concentricamente para capturar a energia solar se inclinam em direção a torres centrais, como devotos voltados para Meca, circunferência após circunferência, se perdendo no horizonte.

Mais adiante, um mosaico de fazendas cobertas por plástico cobre cada centímetro de terra, brilhando à luz do Sol como facetas de um verniz rachado.

Dentro de cada uma destas células, um trabalhador vestindo traje de proteção draga um punhado de larvas de besouros que se contorcem de dentro de um tanque com água verde musgo.

Ficamos sabendo que estas técnicas agrícolas salvaram a humanidade da fome causada pelo colapso ecológico em meados da década de 2020.

O planeta inteiro está devastado, contendo nada além de relíquias altamente cobiçadas de organismos “reais” e um clima disfuncional caracterizado pela poeira seca.

Ainda assim, humanos sobrevivem e até prosperam — pode não haver mais nada selvagem, mas eles podem criar animais replicantes perfeitamente projetados para substituir as coisas reais.

O “cordão umbilical” metafórico que conecta a sobrevivência humana e a biosfera foi realmente cortado.

Ao longo de 2020 e 2021, enquanto o mundo se recolhia por causa da pandemia de covid-19, me peguei refletindo sobre esta representação sombria, como parte do meu trabalho no Centro para o Estudo do Risco Existencial (CSER, na sigla em inglês) da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

Fiquei intrigada sobre como seria o futuro uma vez que a humanidade tivesse superado a covid-19, e a crise climática-ecológica mais uma vez veio à tona.

Se a degradação ambiental severa continuar, um caminho plausível é aquele em que os seres humanos, por necessidade, se desvinculam de uma biosfera que deixa de funcionar.

Um pensamento não saía da minha cabeça, algo que o pesquisador de sistemas complexos Brad Werner falou em uma grande conferência científica em 2012.

Em uma palestra intitulada “Is Earth F**ked?”, ele disse que o capitalismo global, auxiliado pela tecnologia, “tornou o esgotamento de recursos tão rápido, conveniente e livre de barreiras que os ‘sistemas humano-Terra’ estão se tornando perigosamente instáveis em resposta”.

E se, como Werner sugeriu, a Terra realmente estiver com problemas e os sistemas naturais do planeta estiverem fadados a entrar em colapso e morrer?

Vamos desenvolver cópias artificiais para substituí-los, como em Blade Runner? E se isso acontecer mesmo, como seria esse mundo?

Estas perguntas me levaram a publicar um artigo analisando as consequências e os perigos de cortar o cordão umbilical entre os seres humanos e a biosfera humana e como este processo pode já ter começado.

A humanidade já está no caminho da dissociação dos sistemas naturais — então, se quisermos evitar os piores cenários desta trajetória, o que podemos fazer a respeito?

Diante de um iminente colapso dos sistemas naturais da Terra, falar sobre dissociação não é mais ficção científica. Em alguns casos, ela se manifesta como “reparos” cada vez mais profundos para preservar nossa busca por uma vida boa.

Por exemplo, os cientistas começaram a inventar maneiras de sintetizar “serviços ecossistêmicos” — como polinização ou outros processos naturais que beneficiam a sociedade humana.

Na produção de alimentos, isso envolve tentar plantar sob luz artificial no subsolo, cultivar microalgas, micoproteínas e larvas em biorreatores e introduzir genes modificados para aumentar a resiliência de espécies agrícolas às mudanças ambientais.

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Cultivar algas em um ambiente sintético é uma das diversas formas para substituir os serviços ecossistêmicos da natureza

Outras vezes, a desvinculação proposta é enquadrada como uma forma de escapismo.

O recém apresentado “metaverso”, por exemplo, promete uma forma de distanciamento espacial, laboral e recreativo da “vida real” do mundo físico: por que visitar uma floresta ou lago poluído quando você pode acessar uma simulação digital quase perfeita de um ambiente limpo a partir da sua casa?

Em outros lugares do Vale do Silício, tecnólogos e bilionários falam da necessidade de abandonar completamente um planeta Terra degradado — e estão dando os primeiros passos para desenvolver naves espaciais com destino a Marte.

Mesmo que a gente não se separe fisicamente da natureza a este ponto, um futuro tecnologicamente adaptado, em que o mundo é projetado e modificado em torno das nossas ações, é visto por alguns como aceitável, se não necessário, para atender às duras condições do futuro.

A verdade provável é que a tecnologia pode ser a única maneira clara de escapar de futuros desastres, dadas as escalas de tempo terrivelmente curtas envolvidas.

Até mesmo a redução ou restrição generalizada da atividade humana, dados os recentes lockdowns globais, mal afetou as emissões e outras práticas destrutivas.

Algumas pessoas podem acreditar que a desvinculação não precisa ser uma preocupação. A ameaça de um mundo exclusivamente humano-tecnológico não seria uma distopia para muita gente.

Os defensores do transumanismo, por exemplo, imaginam um futuro em que os humanos transcenderam seu estado atual para se combinar com a tecnologia — nos casos mais extremos, evoluindo para seres digitais “uploadados”.

Esta não é a minha perspectiva, mas no passado fui definitivamente seduzida por uma visão de transumanismo “verde”: uma ideia explorada pela escritora feminista Donna Haraway.

Isso propõe que, em vez de buscar preservar os sistemas naturais, possamos nos integrar geneticamente à biosfera, de modo que tanto o humano quanto o natural sejam transformados.

Eu via isso como uma tentativa de preservar espécies ameaçadas de extinção, agindo como arcas biológicas para o futuro, ou como uma forma de aniquilação bela rumo a uma ecologia estranha no futuro.

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A vida em Marte, sem natureza, seria uma existência difícil

No entanto, um mundo Blade Runner que contém apenas humanos e matéria tecnologicamente organizada sob seu controle, seria um deserto de máquinas, em vez de orgânico.

Nesse futuro, o transumanismo verde não seria sequer possível.

Ou não haveria mais nada para ser absorvido, ou os valiosos pedaços da biosfera seriam totalmente absorvidos por nós, assimilados e mudados, apropriados, e o restante desapareceria.

Contrabalançando a complexidade

Então, para onde vamos a partir daqui? Poderia haver alternativas para as formas mais extremas de dissociação? Não há respostas fáceis, mas eu proporia uma sugestão.

Permita-me apresentar a vocês uma ferramenta conceitual — uma metáfora para explorar este espaço. Imagine um gradiente que representa toda a complexidade material do mundo, com a extrema complexidade da matéria “auto-organizada” em uma extremidade e a matéria conscientemente “projetada” na outra.

Então, nesta última extremidade pode estar — por exemplo — a mais delicada e primorosamente projetada estrutura humana (a inteligência artificial ou um supercomputador, quem sabe) e, no outro extremo, o ecossistema mais selvagem e diversificado.

Um ponto intermediário pode representar algo vivo, mas altamente modificado e controlado, como plantações de monocultura ou um jardim ornamental.

Este gradiente atua como uma ferramenta conceitual para ligar diferentes partes do espectro da existência material.

Nos tempos modernos, houve um rápido declínio por parte da complexidade natural auto-organizada e um aumento substancial por parte da complexidade da engenharia humana.

Uma floresta é transformada em mina e depois em eletrônicos. Trilhões de organismos são utilizados como alimento e decompostos para alimentar os corpos humanos e as invenções.

Arranha-céus se erguem, economias são criadas, terras são arrasadas ou ecossistemas complexos são substituídos por outros mais simples.

Como resultado desta atividade, 68% da biodiversidade foi perdida desde 1970, e a quantidade de matéria feita pelo homem, incluindo concreto, plástico e tijolos, agora supera a massa total de matéria biológica no planeta.

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Em peso, há mais matéria feita pelo homem na Terra do que todas as árvores, animais, seres humanos e outras matérias vivas

Mas e se o criador de cada nova coisa “feita pelo homem” tivesse a obrigação de criar seu oposto neste gradiente?

Por exemplo, uma forma de investimento em biodiversidade ou renaturalização seria instigada quando algo é adicionado no lado da engenharia.

Há uma profunda simetria na ideia de que qualquer complexidade construída ou criada de um lado deve ser igualmente substituída ou protegida do outro para que o sistema permaneça estável.

A compensação não é uma ideia nova, e eu certamente não gostaria de receber nenhum crédito aqui por isso.

Estamos mais acostumados a encontrá-la no contexto das viagens aéreas: você pode pagar para uma empresa plantar árvores que consomem CO2.

Em termos de compensação de carbono, as árvores são um bom candidato para o oposto polar da poluição do ar no gradiente descrito acima, mesmo que a prática atualmente esbarre em problemas em termos da demora no sequestro de carbono e monoculturas de árvores doentes.

No entanto, embora a poluição ou os danos ambientais ilegais às vezes sejam multados ou tributados, a compensação raramente é considerada para outros processos que não seja a produção de carbono — e os saques feitos diretos da natureza para novas criações humanas não são “precificados”.

Outra categoria bem estabelecida de compensação é a reserva de terras para parques nacionais, cinturões verdes para conter cidades ou reservas naturais para preservar ecossistemas valiosos.

Estes programas, porém, são muitas vezes realizados por governos, e muitas vezes há uma ligação direta menor entre os construtores de projetos de engenharia, como um novo bloco habitacional ou fábrica, e as áreas de regeneração ou reflorestamento.

Embora os esforços nacionais possam ter impacto, seria inspirador ver o ônus da restauração recair mais significativamente sobre aqueles que estão desequilibrando diretamente o sistema.

Por exemplo, o governo do Reino Unido introduziu recentemente uma legislação de Ganho Líquido da Biodiversidade (BNG, na sigla em inglês), segundo a qual todos os novos desenvolvimentos precisam proporcionar uma melhoria de 10% na biodiversidade local.

Em outros lugares, experimentos com compensações mais amplas também estão começando a acontecer.

Para dar um exemplo específico, um estudo recente liderado por Katie Devenish, da Universidade de Bangor, no País de Gales, e seus colegas mostrou que uma operação de mineração em Madagascar compensou com sucesso a perda de floresta causada por uma nova mina ao diminuir o desmatamento em outras partes do país.

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E se tudo o que foi criado no ambiente construído fosse compensado em outro lugar?

Há também projetos recentes baseados nos chamados princípios da “natureza positiva”, que visam construir resiliência ecológica e reverter perdas.

A Operation Wallacea, uma organização de pesquisa sobre biodiversidade e clima, concebeu créditos de biodiversidade para rastrear as melhorias tangíveis da biodiversidade em qualquer área e desenvolver um padrão internacional de crédito de biodiversidade que poderia ser negociado da mesma forma que um crédito de carbono.

Estou ciente de que a compensação não é uma panaceia, e também pode criar dilemas morais.

O escritor e ambientalista George Monbiot, por exemplo, comparou a compensação à venda de indulgências pela Igreja Católica no século 16, quando os pecadores podiam, de fato, pagar para anular suas más ações.

É verdade que a ideia corre o risco de greenwashing (falso marketing verde) ou de dar sinal verde a processos prejudiciais, mas eu diria que qualquer ato de reposição, e de preferência equivalente, é melhor do que nenhum.

Uma verdade duradoura

Além dos benefícios práticos, acredito que pode haver razões mais profundas para adotar uma abordagem de equilibrar a complexidade humana desta maneira, enraizada em ideias humanas atemporais.

Enquanto pensava na metáfora do gradiente, havia algo sobre os dois tipos de complexidade material — a engenharia humana extrema de um lado, e a selvageria orgânica total de outro — que me lembrava o conceito de integridade psicológica; o equilíbrio dos elementos conscientes e inconscientes da psique.

Nas histórias e no simbolismo, a ideia de equilíbrio e combinação de opostos aparece continuamente ao longo de milhares de anos — abrangendo mitologias, religiões e filosofias em todo o mundo.

Nos antigos princípios do taoísmo, do preto e branco do yin e do yang, nascem as “10 mil coisas”: todas as espécies de animais, humanos, toda a vida, matéria e todas as formas de tecnologia também.

Os gregos antigos conceberam Dionísio e Apolo: os deuses da devassidão prazerosa e do decoro iluminado, respectivamente.

Não é incentivado viver uma vida puramente de um ou de outro, e como Friedrich Nietzsche apontou, a fusão dos modos de ser dionisíaco e apolíneo é o que cria os arcos dramáticos ou significados neste mundo.

O princípio dos opostos fundamenta até mesmo as filosofias e experimentos da alquimia antiga, com a purificação e combinação de opostos vista como um objetivo final.

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Atualmente, não compensamos o aumento da complexidade da eletrônica com investimentos na natureza, mas será que deveríamos?

Nestes exemplos, dizer que existem opostos não significa que um é ruim e o outro é bom.

Trata-se, acima de tudo, que o alto não pode existir sem o baixo, a matéria sem a antimatéria, e a vida não poderia existir sem a morte.

Se essa sabedoria é recorrente no folclore, na mitologia e em uma infinidade de símbolos porque reflete uma verdade importante, então podemos ser sábios em prestar atenção à sua mensagem e nos preocupar com a existência contínua de opostos e o jogo dinâmico entre eles.

Ou seja, mesmo se você fosse alguém que não gostasse de passar um tempo na natureza, e mesmo que encontrássemos uma maneira de não depender dela para sobreviver — por exemplo, criando sistemas artificiais que nos sustentariam em um estado dissociado —, a decisão de promover um equilíbrio entre tecnologia e natureza se alinha com valores humanos de longa data em muitas sociedades.

Os humanos não precisam se inserir no controle dos processos vitais em todos os cantos do mundo, indo até os filamentos do DNA, para forçar o sistema da Terra a absorver os choques da nossa presença.

Em vez disso, um futuro muito melhor pode ser nos tornar algo mais próximo de “alquimistas” do sistema da Terra, criando áreas de “alta modernidade”, mas neutralizando sua criação com seu oposto natural, deixando áreas abandonadas para regenerar.

O sociobiólogo E O Wilson sugeriu, ou melhor, implorou, que metade do planeta fosse “renaturalizado”.

Isso foi classificado como essencial para a sobrevivência humana, mas esta divisão 50:50 me parece ter uma beleza particular e equidade intuitiva, que não é apenas um sentimento estético, mas um sentimento espiritual, não apenas de harmonia, mas de justiça.

O que seria mais interessante, integral e completo, do que ambas as formas de existência em suas mais plenas realizações?

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O futuro de ‘Blade Runner’ é uma das muitas possibilidades que temos pela frente

Ainda pode ser possível ter um equilíbrio entre toda a existência material da humanidade (inteligência artificial, arranha-céus, automóveis, concreto, computação, economia, arte, agricultura intensiva) e a natureza (formigueiros, Amazônia, florestas inglesas, dunas de areia , pântanos de Tampa, desertos, fossas oceânicas e recifes de coral), se esta última for aumentada em qualidade e quantidade.

Imagine caminhar em uma megacidade tecnologicamente madura, mas depois atravessar os limites da cidade até a biodiversidade mais exuberante, complexa e selvagem que se estende ao longe: complexidade tecnológica equilibrada pelo orgânico.

A verdade é que podemos precisar de uma existência como Blade Runner 2049 em algumas partes do planeta, e precisamos dissociar até certo ponto, pois a tecnologia será necessária para liberar a terra necessária para a “renaturalização”.

Mas, observando a recente enxurrada de voos espaciais comerciais, me perguntei sobre quanta biodiversidade havia sido perdida para que isso acontecesse, quanto custou ao sistema terrestre.

Para que a Terra não seja irreversivelmente degradada e desequilibrada, precisamos de uma força oposta e de igual intensidade na direção de repor a complexidade natural.

Certamente a melhor recompensa de um planeta saudável é a exploração espacial, não ser uma fuga de um planeta moribundo.

Se o cordão umbilical da biosfera humana for cortado, deve deixar a mãe Terra no auge da saúde e a serviço de ambas as partes.

* Lauren Holt é pesquisadora do Centro para o Estudo do Risco Existencial da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Ela está explorando o impacto da humanidade na complexidade biológica e o efeito da tecnologia nos ecossistemas.

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