- Jean Mackenzie, Hosu Le e equipe do Reality Check
- BBC News
A Coreia do Norte anunciou seu primeiro caso de covid no início de maio.
O governo do país afirma que o surto está sob controle, mas os detalhes permanecem um mistério. A BBC reuniu informações conversando com pessoas que conseguiram fazer contato com moradores da Coreia do Norte e consultando as fontes disponíveis para o público.
Vozes da Coreia do Norte
Kim Hwang-sun estava sentado sozinho na cozinha de casa na capital sul-coreana, Seul, quando tocou o telefone. Era um agente chinês com a notícia que ele estava aguardando. Sua família poderia falar.
Hwang-sun fugiu da Coreia do Norte sozinho há 10 anos. Seus dois filhos, netos e sua mãe de 85 anos ainda estão no país e ele já perdeu a esperança de retirá-los de lá um dia.
Essas ligações telefônicas secretas são a única comunicação que ele tem com a família. Ele sabe que não deve fazer muitas perguntas, para o caso de estarem sendo ouvidos. E mantém conversas curtas, nunca por mais de cinco minutos.
Dois dias antes, a Coreia do Norte havia comunicado seu primeiro caso de coronavírus. Os dados divulgados pelo governo em um anúncio sem precedentes indicam que o vírus se espalhou rapidamente para todas as províncias do país.
“Eles me disseram que muitas pessoas estão doentes com febre”, conta Hwang-sun. “Fiquei com a impressão de que era muito sério. Eles disseram que pessoas estão nas ruas pedindo remédios a todos que encontram. Todos estão procurando alguma coisa que baixe essa febre, mas ninguém consegue encontrar nada.”
Hwang-sun não se atreveu a perguntar pelo número de mortos. Afinal, se eles fossem ouvidos falando sobre mortes, poderiam ser considerados críticos ao governo e ele teme que sua família possa ser morta.
Falta de medicamentos
Até o momento, cerca de 15% da população ficou doente com “febre”, segundo os dados oficiais. A falta de testes faz com que os casos sejam descritos dessa forma.
O líder norte-coreano Kim Jong-un reconheceu a falta de remédios e ordenou ao exército que distribuísse seus estoques.
Hospitais e farmácias da Coreia do Norte enfrentam falta de medicamentos há anos, segundo Hwang-sun. Os médicos escrevem a receita e cabe ao paciente encontrar o que precisa e comprar, seja de alguém que venda diretamente em casa ou em um mercado local.
“Se você precisar de anestésico para uma cirurgia, você precisa ir ao mercado, comprar e trazer para o hospital”, conta Kim Hwang-sun. “Mas agora, nem os vendedores do mercado têm os remédios.”
“O governo está nos dizendo para ferver folhas de pinheiro e beber a mistura”, segundo contou a família de Hwang-sun. O noticiário estatal também aconselha gargarejos com salmoura para aliviar os sintomas.
“É o que acontece quando não se tem remédios. Eles recorrem à medicina tradicional”, afirma o médico Nagi Shafik, que trabalha para a Unicef nas aldeias da Coreia do Norte desde 2001.
Na última vez em que ele esteve no país, em 2019, os remédios já estavam em falta. “Havia alguns, mas muito, muito pouco”, ele conta.
Quase todos os remédios são importados da China e os últimos dois anos de fronteiras fechadas interromperam esse fornecimento.
Sokeel Park, da organização internacional Liberty in North Korea, ajuda refugiados norte-coreanos a estabelecer-se na Coreia do Sul. Os que falaram com a família na Coreia do Norte disseram que tem havido uma corrida em busca de remédios. “O pouco que sobrou foi comprado, causando enorme aumento de preços.”
Lockdown nacional
O governo da Coreia do Norte ordenou um lockdown nacional no dia do anúncio do surto.
A decisão trouxe preocupações de que algumas pessoas poderiam passar fome, incapazes de conseguir alimento. Mas pelo menos alguns aparentemente conseguiram deixar suas casas para trabalhar e cultivar a terra.
O website de monitoramento NK News tirou fotografias ao longo da fronteira com a Coreia do Sul que mostram trabalhadores agrícolas nos campos dias após a imposição do lockdown. Mas em lugares com altas taxas de infecção (incluindo a capital, Pyongyang), há relatos de pessoas confinadas em suas casas.
Lee Sang-yong é o responsável pelo website Daily NK. Ele mora em Seul e dispõe de uma rede de fontes dentro da Coreia do Norte. Ele conta que, na cidade de Hyesan (na fronteira com a China), as pessoas foram proibidas de sair de casa em maio por 10 dias. Segundo sua fonte, quando o lockdown foi suspenso, mais de uma dúzia de pessoas foram encontradas desmaiadas em casa, debilitadas pela falta de alimento.
Até agora, foram oficialmente informadas 70 mortes, o que representaria uma taxa de mortalidade por covid na Coreia do Norte de 0,002% – a mais baixa do mundo.
“Em um país com um frágil sistema de assistência médica, onde ninguém foi vacinado, esses números não fazem sentido”, afirma Martyn Williams, que vem rastreando os dados para a plataforma de análise 38 North.
Ele indica outro detalhe estranho. Houve um pico de mortes enquanto o número de casos ainda aumentava. “Nós sabemos que as mortes por covid-19 tendem a acompanhar as infecções após duas a três semanas. Por isso, sabemos que esses números são incorretos, mas não sabemos por quê”, segundo ele.
Williams explica que, além das declarações incorretas em nível nacional, as autoridades locais de saúde podem não querer admitir quantas pessoas morreram, com medo de punições.
Ajuda internacional
No final de maio, o número de casos novos relatados na Coreia do Norte caiu. Um editorial no jornal estatal do país afirmou que as autoridades haviam “suprimido e controlado a difusão do vírus”.
A Unicef afirma que seus funcionários locais retornaram ao escritório em Pyongyang depois que foram liberados do lockdown.
Em um comunicado da Organização Mundial da Saúde (OMS), o médico responsável por emergências de saúde Mike Ryan afirmou que ele temia que a situação “estivesse piorando, em vez de melhorar”. Segundo ele, a Coreia do Norte não permitiu acesso aos seus dados, tornando “muito difícil fornecer uma análise adequada para o mundo”.
Ryan também afirmou que eles haviam oferecido o envio de vacinas e assistência por diversas vezes. Mas a Coreia do Norte parece confiar silenciosamente nos vizinhos da China como seus fornecedores.
Dados da alfândega chinesa demonstram que as importações norte-coreanas da China dobraram entre março e abril. Embora as importações venham crescendo constantemente em 2022 após o fechamento das fronteiras por dois anos, houve um aumento súbito da compra de suprimentos médicos nos últimos meses.
Em abril, a Coreia do Norte importou mil “ventiladores” da China – o primeiro lote desde o início da pandemia, segundo os dados da alfândega chinesa. O termo “ventilador” pode também indicar, nos dados chineses, outros tipos menores de máquinas de tratamento com oxigênio.
Entre janeiro e abril, a Coreia do Norte também comprou mais de nove milhões de máscaras faciais. Não há registros de importações de máscaras nos dados da alfândega chinesa nos dois anos anteriores. E também houve aumento das importações de remédios e vacinas.
Segundo uma autoridade do governo sul-coreano, a Coreia do Norte enviou três aviões de carga para a China em 17 de maio, para buscar auxílio.
Imagens de satélite de 24 de maio mostram três aviões de carga da Air Koryo – a linha aérea estatal da Coreia do Norte – no aeroporto de Pyongyang. Suas dimensões coincidem com as dos três aviões vistos no aeroporto de Shenyang, na China, poucos dias antes.
Por outro lado, uma fonte informou à reportagem que um grande lote de suprimentos médicos chegou de navio ao porto de Nampo, ao sul de Pyongyang, no dia 13 de maio.
A BBC obteve imagens de satélite de 15 de maio que revelam a presença de uma grande quantidade de navios na área portuária. Mas não foi possível identificar de onde eles vieram e o que estavam transportando, pois muito deles estavam com seus rastreadores de navegação desligados.
Kim Hwang-sun não teve notícias da sua família na Coreia do Norte desde aquela primeira ligação telefônica.
Ele conta que, desde o surto, ficou muito mais difícil falar com eles. Os sinais telefônicos sofrem interferências frequentes e, quando ele ocasionalmente consegue falar, a linha muitas vezes é cortada. Seus amigos estão vivendo a mesma situação.
Ele está muito abalado pela preocupação sobre o que poderá ter acontecido com sua mãe de 85 anos desde que se falaram pela última vez e subiu até o topo de uma montanha local para rezar por ela. É tudo o que ele pode fazer. Como o resto do mundo, ele está no escuro e é incapaz de ajudar.
* Alguns nomes foram alterados na reportagem para proteger as fontes.
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