- Heloisa Villela
- De Nova York (EUA) para a BBC News Brasil
Nos Estados Unidos, policiais e profissionais de saúde trabalham juntos em um número cada vez maior de cidades.
Um homem aparentemente idoso, apoiado em uma bengala, gritava por socorro na esquina da avenida Amsterdam com a rua 104, em Manhattan. Ele parecia congelado, incapaz de se mover.
Em poucos segundos chegou o socorro e, acompanhando a cena, observei que os paramédicos que saltaram da ambulância reconheceram o morador com distúrbios mentais que volta e meia é recolhido e levado ao hospital para, semanas depois, repetir a rotina.
Foi a primeira vez, mas não a última, em que ouvi os gritos daquele vizinho no verão de 2020. O que acontece com ele é comum em grande parte das cidades dos Estados Unidos. E é para lidar com esses problemas de saúde mental e com o desespero por falta de moradia que cresce cada vez mais a presença de assistentes sociais e psicólogos dentro dos departamentos de polícia.
Equipes móveis formadas por um profissional de saúde mental e um enfermeiro hoje percorrem cidades em mais de 34 Estados americanos reduzindo a pressão sobre os policiais que, nas últimas décadas, foram obrigados a assumir a responsabilidade pelo atendimento de chamados para os quais não são treinados.
“Já pedimos aos policiais para fazer muitas coisas. Cuidar dos sem-teto, dos drogados, é tudo com eles”, diz o professor Jeffrey Coots, advogado e líder do programa “Da Punição à Saúde Pública”, da Universidade John Jay de Justiça Criminal, em Nova York.
Ele trabalha em iniciativas que reorientam para serviços de assistência médica e social as chamadas de emergência que chegam às delegacias de polícia. Ele também treina promotores públicos para que possam identificar os casos de detidos que precisam de cuidados e não de cadeia.
Nova York está apenas engatinhando nessa área. Tem um projeto piloto que começou no Harlem, em julho, chamado “B-Heard”. Em português seria “Ser Ouvido”. Ele reorienta as chamadas que chegam ao número de emergência, o 911, que todo mundo no país aprende a discar, desde criança, em caso de problema.
Os funcionários que atendem essas chamadas precisam decidir, rapidamente, se enviam policiais ou bombeiros para o local.
Agora, nesse projeto piloto, eles podem acionar equipes móveis de assistência que sempre incluem alguém que se envolveu com drogas ou viveu em situação de rua e, por isso mesmo, é capaz de entender e dialogar mais facilmente com a pessoa que está sendo atendida.
Se a situação mudar, se tornar violenta, a equipe se afasta e chama reforço policial.
Em Bloomington, Indiana, o sistema é diferente. Em 2019 a cidade, de 80 mil habitantes, contratou a primeira assistente social, Melissa Stone. Ela agora tem duas outras colegas e conta que elas nunca saem sozinhas.
O primeiro atendimento é sempre feito junto com a polícia. Nas visitas seguintes, para dar continuidade ao atendimento, elas não precisam dos policiais.
Elas se encarregam de encaminhar a pessoa para um tratamento, um abrigo, uma residência permanente. O objetivo é resolver o problema para a pessoa não precisar chamar o serviço de socorro novamente.
Ronnie Roberts foi chefe de polícia de Olympia, em Seattle. Mas antes passou por um aprendizado de quase 24 anos em Eugene, no Oregon. A cidade é pioneira no país com um programa que já funciona há três décadas substituindo policiamento por assistência, sempre que possível.
“Eu estava lá quando começou”, conta o chefe de polícia aposentado, “e nós achávamos que aqueles cabeludos tomariam nossos rádios, nosso emprego, nossas chamadas”.
Mas aos poucos os policiais foram entendendo que o programa, chamado Cahoots, trazia vantagens para todo mundo.
Uma pesquisa do Instituto Vera para a Justiça e do jornal The New York Times mostrou, em 2019, que apenas 2% das chamadas de emergência para a polícia estavam relacionadas a crimes violentos. A grande maioria dos pedidos de ajuda tem origem no consumo de drogas e álcool, na intersecção de moradores em situação de rua com saúde mental. São problemas sociais que acabam na delegacia.
Por isso a cidade de Eugene topou a proposta de uma clínica médica e criou a parceria que depois de 30 anos continua crescendo, como conta o atual chefe de polícia da cidade, Chris Skinner.
Depois que policiais de Minneapolis mataram George Floyd, em 2020, na rua, diante de testemunhas, os protestos no país explodiram. Muitos pediam a redução do orçamento das polícias e mais investimento em assistência social, saúde e educação.
Em Eugene, diz Chris Skinner, o departamento de polícia investe cerca de US $1 milhão (R$ 5,3 milhões) por ano na parceria com a clínica responsável pelo Cahoots.
“Sem essa parceria, não daríamos conta porque temos muitas pessoas em crise, nas ruas. Mais de 1% da população da cidade vive em situação de rua. São mais de 17 mil pessoas. Mas o programa é bem sucedido e toda semana falamos sobre ele com outras cidades dos Estados Unidos e do Canadá”, conta Skinner.
Ronnie Roberts saiu de Eugene para replicar o modelo de parceria em Olympia, no Estado de Washington. Ele assumiu a liderança do departamento de polícia em 2010. Implantou um programa semelhante ao de Eugene e aprimorou o projeto aos poucos.
“No começo, era sempre a polícia que atendia as chamadas para depois aparecer a equipe de assistência. Mas invertemos essa lógica”, conta.
O time começou pequeno, com 10 pessoas, e investiu no treinamento da equipe que faz o primeiro contato com os problemas: o pessoal que atende as chamadas. Eles precisam entender rapidamente do que se trata para saber quem vai responder ao pedido de socorro.
Com mais de 30 anos de experiência, Ronnie Skinner aponta os dois maiores obstáculos que esses programas enfrentam: manter os profissionais, já que o trabalho é muito difícil, e contar com os serviços necessários oferecer às pessoas atendidas pelas equipes.
A primeira providência para estabilizar pessoas com problemas de saúde mental é a moradia. Garantir um teto é essencial. Se a prefeitura não tem como oferecer residência subsidiada ou abrigo seguro, o atendimento é um paliativo e não uma solução.
As cidades também precisam de centros de desintoxicação, reabilitação e um número maior de clínicas especializadas.
Em Nova York, Jeffrey Coots se depara com as mesmas dificuldades. Mas vê saída. Ou melhoras lentas. A moradia é o grande entrave.
“Temos 50 mil pessoas nos abrigos e outras 35 mil que se recusam a ir para esses lugares, porque têm medo, e vivem nas ruas. Outras 200 mil pessoas moram em residências públicas, subsidiadas pelo governo”, diz.
Mas agora, desde que o Congresso aprovou a reforma da saúde, mais conhecida como Obamacare, em 2008, aos poucos, essa população passou a ter acesso a tratamentos que antes nem sonhavam em usufruir.
Mas é preciso encontrar, cadastrar e orientar essas pessoas. É o que ele tem feito, no Brooklyn, em campanhas que se instalam nas comunidades por cinco ou seis dias a cada quatro ou cinco meses.
Sem a presença da polícia, eles ouvem os moradores, descobrem quais são os problemas mais urgentes, cuidam da documentação de quem não tem, encaminham para os serviços disponíveis e checam, na visita seguinte, se o atendimento está andando.
Jeffrey Coots se diz otimista apesar da burocracia e do ritmo geralmente lento da máquina governamental. Ele se lançou nesse trabalho há 9 anos e, se antes tinha uma meia dúzia de pessoas envolvidas no projeto, hoje conta com mais de 200 em diferentes áreas de atuação da prefeitura, da academia e de organizações não-governamentais.
Ele também enfrenta o desafio de contratar e manter os profissionais de saúde e de assistência social — porque o trabalho é pesado e a demanda por esses serviços só aumentou por causa da pandemia de covid.
“Durante 50 ou 60 anos, não encaramos esses problemas. A concentração da população nos centros urbanos só aumentou. Mas hoje, essa estratégia de intervir e dar assistência antes que a pessoa seja detida ou fichada já foi replicada em mais de 40 cidades e participamos de conferências nacionais para discutir o assunto.”
Por isso, ele não desanima e adianta que esse ano de 2023 vai ser melhor, com mudanças na distribuição de verbas do sistema federal de saúde para Nova York dar mais ênfase a trabalhos como o dele.
É um passo importante: o Medicaid é o programa do governo americano que dá assistência médica aos mais pobres.
Se ele reconhece a validade da associação entre profissionais de saúde e as polícias municipais no atendimento dessa população, eles terão mais dinheiro para tornar mais amplas e eficientes iniciativas como a B-Heard, de Nova York, a Cahoots, de Eugene, o trabalho já consolidado em Olympia e os mais de 40 projetos em andamento em diferentes regiões do país.
Você precisa fazer login para comentar.