Milhares de pessoas ficaram feridas no Líbano, depois que pagers usados pelo grupo armado Hezbollah para se comunicar explodiram quase simultaneamente em todo o país na terça-feira (17/9). No dia seguinte, o mesmo aconteceu com walkie-talkies.
Pelo menos 12 pessoas foram mortas e mais de 2 mil ficaram feridas no ataque com pagers, muitas delas em estado grave; enquanto o incidente com os walkie-talkies matou 20 e deixou pelo menos 450 feridos.
Ainda não está claro como os ataques — que parecem ter sido altamente sofisticados — foram realizados, embora o Hezbollah tenha culpado Israel.
Após a explosão dos pagers, a imprensa internacional citou fontes de segurança dos EUA e do Líbano afirmando que o Mossad, o serviço de inteligência israelense, teria colocado explosivos em milhares de pagers do Hezbollah antes de os dispositivos serem detonados no país.
Até o momento, as autoridades israelenses não quiseram comentar.
Um pager — ou “bipe”, como era conhecido no Brasil — é um dispositivo de telecomunicação sem fio que recebe e exibe mensagens alfanuméricas ou de voz.
Eles costumavam ser vistos com frequência em hospitais e serviços de emergência, mas agora são uma tecnologia da qual raramente se fala, depois de terem sido substituídos nos anos 2000 pelos telefones celulares.
Houve especulações sobre como o ataque foi realizado, mas uma fonte de segurança libanesa disse à agência de notícias Reuters que uma pequena quantidade de explosivos com detonadores foi colocada dentro dos pagers que explodiram. As explosões parecem ter sido desencadeadas pelo envio de uma mensagem de texto.
A mesma fonte também contou que o grupo militante havia encomendado 5 mil pagers da empresa taiwanesa Gold Apollo, que teriam sido levados para o país no início deste ano.
Um ex-especialista em munições do Exército britânico, que pediu para não ser identificado, disse à BBC que cada dispositivo poderia ter entre 10 e 20 gramas de explosivo de nível militar, escondido dentro de um componente eletrônico falso.
E, de acordo com ele, teria sido armado para explodir por um sinal, uma mensagem de texto alfanumérica.
Mas a Gold Apollo nega qualquer envolvimento, dizendo que os pagers foram feitos por uma empresa húngara.
Estes dispositivos de baixa tecnologia, do tamanho de um maço de cigarro, geralmente são usados na cintura, presos ao cinto ou ao bolso da calça, para consulta rápida.
Eles funcionam por meio da sincronização com transmissores de alta potência — ou seja, não dependem de muitos transmissores para cobrir uma grande área, diferentemente do que acontece com telefones celulares.
Os transmissores geralmente são colocados em posições elevadas, em uma estação base, e enviam mensagens em determinadas frequências, de forma semelhante a como as estações de rádio funcionam.
Os pagers estão sempre à espera de novas mensagens enviadas em sua frequência, e a maioria dos pagers só pode receber informações — eles próprios não emitem sinais.
É por isso que alguns podem preferir os pagers em vez dos telefones celulares, uma vez que os usuários de pagers não podem ser localizados por GPS ou outros meios.
Quando um pager recebe uma mensagem, ele apita e vibra, e um pequeno texto é exibido — geralmente pedindo ao receptor para ligar de volta para a pessoa ou ir para um local.
Alguns dos pagers identificados nos vídeos das explosões parecem mostrar o Rugged Pager AR924, fabricado pela empresa taiwanesa Gold Apollo, de acordo com o jornalista Joe Tidy, correspondente de cibernética da BBC.
A empresa parece ter retirado a página do produto do site. Mas a plataforma Wayback Machine — ferramenta que coleta e armazena versões passadas de sites para a posteridade — mostra uma captura de tela do produto de setembro. Nela, o pager é aparentemente robusto, anunciado como à prova d’água e com proteção contra poeira, diz nosso correspondente.
Ele também ofereceria até 85 dias de duração da bateria com uma única carga da bateria de lítio.
A empresa negou ter qualquer coisa a ver com a suspeita de adulteração dos dispositivos.
O Hezbollah é uma organização muçulmana xiita politicamente influente que controla a força armada mais poderosa do Líbano.
Seu braço armado realizou ataques mortais contra forças israelenses e americanas no Líbano.
O grupo é classificado como uma organização terrorista por Estados ocidentais, Israel, o Conselho de Cooperação do Golfo e a Liga Árabe.
A BBC News Arabic, o serviço de notícias em árabe da BBC, diz que o Hezbollah usa pagers para evitar ser detectado por Israel, já que é um dispositivo de baixa tecnologia que acredita-se burlar a vigilância israelense.
Hezbollah e os smartphones
Fontes disseram à Reuters que o Hezbollah havia começado a suspeitar, já no ano passado, que Israel estava rastreando seus telefones.
Então, em fevereiro deste ano, os combatentes foram proibidos de usar seus celulares enquanto estavam realizando operações.
Políticos de alto escalão do Hezbollah também passaram a evitar levar o telefone para reuniões, e o líder do grupo alertou que os celulares eram mais perigosos do que espiões israelenses.
Em um discurso televisionado, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, disse aos apoiadores para quebrar, enterrar ou trancar seus telefones em uma caixa de ferro.
Em vez de smartphones, eles decidiram usar pagers. Mas um analista observa que o alerta do Hezbollah sobre o uso de telefones celulares para seus apoiadores foi público demais.
“O Hezbollah basicamente transmitiu ao mundo que estava trocando os telefones celulares pelos pagers“, afirmou Joseph Steinberg, autor do livro Cibersegurança Para Leigos, à Reuters.
“Basicamente, você está dizendo ao adversário e a quaisquer outros adversários, e o Hezbollah tem muitos, que tipo de tecnologia você está procurando adquirir.”
O jornalista Frank Gardner, correspondente de segurança da BBC, lembra que, em 1996, o Shin Bet, a agência de segurança interna de Israel, assassinou um dos principais fabricantes de bombas do Hamas, Yahya Ayyash, sabotando seu telefone celular, que explodiu, matando-o instantaneamente.
Um misterioso rastro até a Hungria
Os pagers que explodiram criaram agora um rastro misterioso de Taiwan até a Hungria.
A Gold Apollo logo anunciou que eles foram fabricados por uma empresa chamada BAC, com sede em Budapeste, que tem licença para usar sua marca.
O endereço da BAC Consulting, em Budapeste, consta como um prédio cor de pêssego em uma rua predominantemente residencial em um subúrbio, de acordo com a agência de notícias Reuters.
O nome da empresa estava em um pedaço de papel na porta de vidro. Uma pessoa no prédio, que desejou permanecer anônima, afirmou que a BAC Consulting estava registrada lá, mas não tinha presença física.
A CEO da empresa, Cristiana Barsony-Arcidiacono, que diz no LinkedIn ter experiência em organizações como a Unesco, não respondeu aos e-mails da Reuters.
Enquanto isso, em Taiwan, o Ministério da Economia se manifestou, afirmando que não há “nenhum registro de exportação direta para o Líbano”.
“A empresa duvida que o produto pertença a ela, após analisar as fotos da mídia, e considera que os pagers provavelmente foram modificados após a exportação”, declarou o ministério.
Os dispositivos sem fio são seguros?
Em teoria, os dispositivos sem fio não são seguros, “o que talvez seja um pouco assustador”, admite Joe Tidy, correspondente de cibernética da BBC.
O especialista em segurança egípcio Mohamed Nour descreveu a explosão como um “incidente cibernético” orquestrado por forças de inteligência. Ele sugeriu que a culpa era do país que fabricava dispositivos sem fio, afirmando que estes dispositivos eram “completamente inseguros”.
Segundo ele, não havia “nenhuma alternativa” para comunicação segura, acrescentando que a mensagem de Israel para o Hezbollah era clara: depois de privá-los da privacidade dos telefones fixos, suas redes, celulares, smartphones, walkie-talkies e até mesmo pagers estavam agora vulneráveis à interferência israelense.
O Hezbollah e o governo libanês consideraram Israel “totalmente responsável” pelo ataque, embora Israel ainda não tenha emitido nenhum comentário oficial sobre o incidente.
Ataques sofisticados semelhantes usando telefones ocorreram no passado, de acordo com a BBC News Arabic. A seguir, estão alguns exemplos, incluindo telefones e outras tecnologias:
1972: Mahmoud Hamshari, um representante da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), foi morto em Paris quando uma bomba colocada embaixo de um telefone foi detonada remotamente.
1996: Yahya Ayyash foi morto na explosão de um telefone celular com armadilha explosiva.
2000: Samih Malabi, um ativista do Fatah do acampamento de refugiados de Kalandia, perto de Ramallah, foi morto quando um telefone celular com armadilha explosiva explodiu perto da sua cabeça.
2007: Acredita-se que o Stuxnet, um poderoso vírus de computador criado pela inteligência dos EUA e de Israel, tenha desativado uma parte fundamental do programa nuclear iraniano.
2020: Mohsen Fakhrizadeh, um cientista nuclear iraniano, foi assassinado no Irã por uma metralhadora controlada remotamente montada em um carro.
O que vai acontecer agora?
Israel obteve um triunfo tático significativo no ataque contra o Hezbollah nesta operação — o tipo de golpe espetacular que você veria em um filme de ação e suspense, afirmou o jornalista Jeremy Bowen, editor de internacional da BBC.
E, sem dúvida, isso é uma humilhação para o Hezbollah, que vai aumentar sua insegurança e afetar seu moral.
No entanto, há uma desvantagem estratégica potencialmente grave para Israel —porque embora o ataque possa humilhar a poderosa milícia e movimento político libanês, não detém o grupo.
Além disso, não chega perto do objetivo estratégico de Israel de interromper os ataques do Hezbollah, e permitir que os mais de 60 mil israelenses da fronteira ao norte do país, que estão desalojados há quase um ano, voltem para casa.
Este ataque não afasta a região um centímetro sequer da guerra total — ele a aproxima ainda mais.
Fonte: BBC
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