- Ute Eberle
- Revista Knowable*
A primeira vez que Marcus Maeder fixou um sensor de ruídos no solo foi por curiosidade. Artista do som e ecologista acústico, ele estava sentado sobre a grama da montanha e fincou no solo um microfone especial que ele havia construído.
“Eu estava apenas curioso”, relembra Maeder, que agora trabalha em uma dissertação sobre os sons da biodiversidade no Instituto Federal de Tecnologia em Zurique, na Suíça.
Ele certamente não estava preparado para a algazarra que invadiu seus fones de ouvidos. “Eram sons muito estranhos”, afirma ele. “Havia vibrações, trinados e raspagens. Você precisa de um vocabulário novo para descrevê-los.”
Maeder percebeu que estava espionando criaturas que vivem no solo.
Os ecologistas sabem há muito tempo que a terra abaixo dos nossos pés abriga maior diversidade e quantidade de vida que quase qualquer outro lugar do planeta. Para o leigo, o solo parece pouco mais que uma camada compacta de terra suja. Mas, na verdade, o solo é um cenário labiríntico de túneis, cavidades, raízes e detritos em decomposição.
Em apenas uma xícara de terra, os pesquisadores já contaram até 100 milhões de formas de vida, de mais de 5 mil espécies. Os moradores do subsolo variam de fungos e bactérias microscópicas, ácaros e colêmbolos do tamanho da ponta de um lápis, até centopeias, lesmas e minhocas que podem chegar a mais de um metro de comprimento. Junto a eles, existem as toupeiras, ratos e coelhos que vivem ao menos parte das suas vidas em túneis e covas subterrâneas.
“É uma biodiversidade extraordinária”, afirma Uffe Nielsen, biólogo do solo da Universidade do Oeste de Sydney, na Austrália. E também é vital — coletivamente, essas comunidades subterrâneas formam grande parte da base da vida do planeta, desde os alimentos que comemos até o ar que respiramos.
Atualmente, no campo relativamente novo conhecido como bioacústica do solo — que alguns preferem chamar de biotremologia ou ecoacústica do solo —, cada vez mais biólogos estão capturando ruídos subterrâneos para abrir uma janela para esse mundo complexo e misterioso.
Eles descobriram que um simples prego metálico fixado na terra pode funcionar como uma espécie de antena de cabeça para baixo, se for equipado com os sensores corretos. E, quanto mais os pesquisadores escutam, mais se torna evidente como é vibrante a vida no solo sob nossos pés.
Espionar essa cacofonia de sons subterrâneos promete revelar não apenas quais formas de vida residem abaixo dos nossos pés, mas também como elas passam sua existência – como elas comem ou caçam, como deslizam umas sobre as outras sem serem notadas e como tamborilam, sapateiam ou cantam para chamar a atenção dos demais.
Para Nielsen, a vida no subsolo “é uma caixa preta. À medida que a abrimos, percebemos como nosso conhecimento é pequeno.”
A compreensão dessa vida no subsolo é importante porque a ecologia do solo é fundamental. “O solo ajuda a transformar elementos nutrientes como carbono, nitrogênio, fósforo e potássio, que alimentam as plantas, para termos comida, florestas ou para preencher o ar com oxigênio e todos nós podermos respirar”, segundo Steven Banwart, pesquisador do solo, agricultura e da água da Universidade de Leeds, no Reino Unido.
Banwart é um dos autores de uma análise das funções do solo, publicada na revista Annual Review of Earth and Planetary Sciences. Minhocas, larvas, fungos, bactérias e outros decompositores estão envolvidos em todas as etapas.
E cada organismo do solo produz sua própria trilha sonora. Larvas que se alimentam de raízes emitem cliques curtos enquanto rompem as fibras da sua refeição. Minhocas sussurram enquanto se arrastam pelos túneis, da mesma forma que as raízes das plantas à medida que empurram grãos de terra, como relataram pesquisadores suíços em 2018.
Mas as raízes se movem mais lentamente que as minhocas e em velocidade mais constante. Diferenciando esses sons, os estudiosos da acústica do solo pretendem esclarecer questões que ainda estão sem resposta, como: quando as raízes das plantas crescem? à noite? durante o dia? somente quando chove?
Ruídos do solo são úteis para os animais
Nós, seres humanos, podemos ser os últimos a descobrir essa trilha sonora subterrânea.
Os pássaros podem ser frequentemente vistos pulando nos gramados com a cabeça em riste. Pesquisadores acreditam que isso ocorre porque eles estão ouvindo as larvas e minhocas embaixo da terra. Muitas vezes, eles bicam o solo no momento certo para puxar sua presa desprevenida.
Já a tartaruga-da-madeira da América do Norte beneficia-se da atenção dada pelas minhocas às vibrações causadas pela queda de chuva. A tartaruga pisa forte sobre o solo para imitar a chuva, de forma que as minhocas vêm à superfície e se tornam um lanche suculento para o réptil.
As vibrações subterrâneas podem também ser fundamentais para sinais que parecem ser propositais. Acredita-se que os ratos-toupeira, que vivem em tocas subterrâneas, possam comunicar-se com os demais nas proximidades batendo suas cabeças ou os pés contra as paredes dos seus túneis.
Também já se observou que as formigas cortadeiras criam ruídos quando ficam enterradas durante escavações nos formigueiros, para que outras formigas trabalhadoras corram até o local e comecem a cavar para resgatar a companheira.
Alguns desses sons subterrâneos são audíveis para o ouvido humano, mas muitos têm frequência e volume altos ou baixos demais. Para estes, os pesquisadores utilizam instrumentos como sensores piezoelétricos, que funcionam como os microfones de contato que você pode fixar a um violão.
Fixados a um prego enterrado no solo, que pode ter até 30 cm de comprimento, esses sensores detectam vibrações que os pesquisadores convertem em sinais eletrônicos e amplificam até que os seres humanos possam ouvi-los.
‘Cantos de pássaros’
Carolyn-Monika Görres, ecologista da paisagem da Universidade de Geisenheim, na Alemanha, ficou surpresa ao descobrir o quanto podem revelar os ruídos subterrâneos.
Görres estuda as larvas de besouros que se alimentam de raízes, conhecidas como larvas brancas. Seu interesse específico é pelos gases que essas larvas emitem, como metano. Os biólogos suspeitam que esses pequenos insetos, pertencentes a várias espécies, são responsáveis por quantidades substanciais de emissões climáticas, devido aos seus imensos números. Estima-se que os cupins, por exemplo, produzem cerca de 1,5% das emissões globais de metano. Comparativamente, as emissões da mineração de carvão representam 5-6%.
Inicialmente, Görres ficou desorientada. Como ela saberia quantas dessas larvas com centímetros de comprimento viviam em um pedaço de solo? “Tradicionalmente, você cava o solo para ver o que há ali”, ela conta. “Mas, assim, tudo fica danificado.”
Por isso, Görres foi de bicicleta até pradarias e florestas perto da sua cidade e enterrou duas dúzias de sensores acústicos no solo para gravar as larvas cuidando das suas atividades. Ela conta que, quando mostra as gravações para outras pessoas, “alguns dizem que parece o rangido de uma árvore. Outros ouvem pedaços de lixa sendo esfregados entre si.”
Görres aprendeu a diferenciar as duas espécies de larvas brancas que ela estuda — o besouro-comum (Melolontha melolontha) e o besouro-da-floresta (Melolontha hippocastani) — devido a um zumbido que é similar ao canto estridente (estridulação) das cigarras e dos gafanhotos acima da terra.
As larvas produzem esse som esfregando suas mandíbulas. “Pode-se dizer que elas rangem os dentes para falar com as demais embaixo da terra”, descreve Görres. “A beleza dessas estridulações é que elas parecem ser específicas para cada espécie, como os cantos dos pássaros.”
Quando as larvas se transformam em pupas, elas alteram seu mecanismo de produção de ruídos, girando o abdômen dentro da sua carapaça e batendo-o contra a parede da carapaça. Mas por que elas fazem isso? O motivo não está claro.
Acima do solo, os sons estridentes dos insetos atraem parceiros sexuais. Mas, para as larvas, “a reprodução ainda não é importante”, segundo Görres. Para aprender mais, a ecologista (que apelidou seu projeto acústico do solo de “Twitter subterrâneo”) encheu recipientes com solo arenoso do habitat natural dos insetos, acrescentou fatias de cenouras para manter as larvas felizes e as levou para o seu laboratório.
Ela observou que as larvas mantidas sozinhas raramente emitiam sons. Mas, se houvesse mais de uma no mesmo recipiente, elas cantavam – e muito! Um trio de larvas de besouros estridulou por 682 vezes em suas primeiras duas horas e meia juntas.
Görres suspeita que as larvas cantem para afastar as demais. As larvas comem insistentemente — “seu único propósito na vida é ganhar biomassa”, segundo ela — e, se muitas larvas dividirem o mesmo pedaço de solo, elas começam a canibalizar-se. Em apoio a essa teoria, Görres indica que os cientistas já identificaram larvas mudando de curso para evitar pupas que estão batendo seus abdomens.
O som é barato
Quando falamos sobre sons, referimo-nos principalmente às ondas de pressão que viajam através do ar. Quando atingem os nossos ouvidos, elas fazem vibrar os tímpanos e nossos cérebros, por fim, traduzem essas oscilações em sons.
Mas essas ondas também podem mover-se através de outros meios, como a água ou o solo. Os elefantes conhecem bem esse processo. Eles vocalizam um estrondo em baixa frequência que se propaga através do solo, permitindo que eles façam contato com irmãos distantes que captam os sinais com a sola dos pés.
As emissões acústicas também podem viajar por diferentes meios ao mesmo tempo. Grilos-toupeira machos (Gryllotalpa major) cavam tocas em forma de chifre no solo arenoso, de onde estridulam esfregando suas asas. Esse gorjeio serve para cortejar as fêmeas que estão voando no ar, mas ele também viaja na forma de vibrações através do solo, onde pode afastar outros grilos machos nas suas próprias tocas subterrâneas.
Alguns animais adaptaram seus ouvidos para captar melhor essas vibrações transmitidas através de substratos. No Deserto da Namíbia, vive a toupeira-dourada – um pequeno mamífero peludo de hábitos noturnos e quase cego. À noite, a toupeira caça cupins nas dunas “nadando” através da areia, com sua cabeça e os ombros submersos.
Os biólogos acreditam que ela faça isso para ouvir a presa. Um dos ossículos do ouvido médio da toupeira é muito grande. Pesquisadores acreditam que isso ajuda o animal a captar vibrações transmitidas pelo solo, em um processo similar ao verificado com ondas sonoras aéreas em ouvidos humanos.
Já as cobras recebem sinais vibratórios através dos sensores nas suas mandíbulas, enquanto a toupeira-nariz-de-estrela possui um nariz estranho com tentáculos, que pode captar vibrações. E muitos insetos possuem sensores mecânicos nas patas que registram pulsos no solo.
Faz todo sentido que os animais subterrâneos incorporem o som às suas vidas, segundo Matthias Rillig, ecologista do solo da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha. “O som é um sinal em alta velocidade que tem custo muito baixo”, afirma ele – certamente menor que o da produção de substâncias como feromônios para comunicação.
O som também tende a viajar mais rápido e mais longe que os sinais químicos. O estrondo de um elefante pode propagar-se por quilômetros. Já as vibrações criadas por um pequeno inseto subterrâneo podem atingir apenas algumas dezenas de centímetros — mas, em um mundo medido em grande parte em micrômetros, esta ainda é uma longa distância.
Plantas e fungos na escuta
Mas existem outras formas de vida, além dos insetos, que detectam essas vibrações subterrâneas e fazem uso delas?
Rillig começou um projeto em que ele e Maeder trazem para o laboratório criaturas minúsculas, como colêmbolos e ácaros do solo, e os acompanham por horas para testar quanto barulho eles fazem, isoladamente ou em grupos com outras espécies. O ecologista imagina se os fungos poderiam ser capazes de registrar os sons desses micropredadores e afastar-se dos locais onde eles se reúnem, já que alguns deles gostam de comer filamentos fúngicos.
“Ou um fungo poderia reagir a indicações sonoras de perigo aumentando a produção de esporos”, afirma Rillig. Isso ajudaria a garantir a dispersão dos seus genes antes que ele seja comido.
Já existem evidências de que as plantas, pelo menos, fazem uso do som para auxiliar na sua sobrevivência. A ecologista evolutiva Monica Gagliano ofereceu a plantas de ervilha (Pisum sativum) a opção de fazer crescer suas raízes em diferentes tubos de plástico. Todos os tubos foram preenchidos com solo para os testes, mas alguns foram expostos às vibrações de fluxo de água (correndo através de um cano no lado de fora do tubo).
Gagliano, do Laboratório de Inteligência Biológica da Universidade Southern Cross, da Universidade do Oeste da Austrália e da Universidade de Sydney, todas na Austrália, relatou que as plantas de ervilha favoreceram o crescimento de raízes em direção ao som da água, mesmo que a água não fosse acessível para as plantas e que nenhuma umidade pudesse vazar para os tubos.
Controle de pragas
Além de informar os ecologistas, a acústica subterrânea poderá nos ajudar a cuidar melhor do meio ambiente e detectar pragas que causam prejuízos de bilhões de dólares todos os anos.
Em 1478, “escaravelhos do pasto estavam causando danos significativos às pradarias dos Alpes suíços, ao ponto do bispo de Lausanne excomungar os herbívoros invasores”, segundo escreveram cientistas em um estudo de 2015 sobre insetos que se alimentam de raízes.
Para indicar um exemplo atual, infestações da broca-da-raiz-da-videira, Vitacea polistiformis, podem reduzir a produção dos vinhedos em até 47%.
Sem uma forma de identificar as infestações, os administradores de campos muitas vezes precisam recorrer ao controle de pragas, como a aplicação de pesticidas de cobertura, segundo Louise Roberts, especialista em bioacústica da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. “Mas isso mata todo tipo de vida subterrânea”.
Muitas vezes, seria suficiente tratar apenas partes de um campo de plantio ou de golfe, pois os insetos do solo tendem a se reunir. “Mas, para que isso funcione, você precisa saber onde as pragas estão”, adverte ela.
Por isso, Roberts e seus colegas estão conduzindo um estudo para verificar se os administradores de campos podem colocar sensores no gramado e usar as frequências dos sons coletados para identificar infestações de pragas subterrâneas e suas espécies. O trabalho está em andamento, mas os primeiros resultados sugerem que isso é possível, segundo Roberts.
A influência humana
Para sua decepção, os pesquisadores estão descobrindo que nem tudo que eles detectam no solo é novo e exótico. Alguns ruídos são inquietantemente familiares. Quando Marcus Maeder ouve os sons subterrâneos do seu país natal, a Suíça, ele consegue “ouvir locais de construção e rodovias que estão distantes. Até aviões.”
Ainda não se sabe ao certo qual o impacto da poluição sonora humana sobre a vida subterrânea. Para Matthias Rillig, “é difícil acreditar que não haja impacto nenhum”. E os cientistas também estão descobrindo que a orquestra subterrânea de atividade animal começou a ficar em silêncio em grandes trechos de terra, particularmente nas fazendas de agricultura intensiva, onde “as coisas ficam quietas”, segundo Maeder.
A redução do ruído indica diminuição da biodiversidade e, portanto, solo menos saudável. Isso coincide com um relatório recente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) que concluiu que um terço da terra do mundo já sofreu degradação pelo menos moderada, muitas vezes devido à agricultura.
Para Maeder, talvez a acústica do solo ajude mais pessoas a perceber a importância do que está em risco. Ele começou um projeto de ciência cidadã que empresta sensores acústicos para as pessoas na Suíça ouvirem por si próprias a atividade subterrânea. As gravações estão sendo reunidas em uma biblioteca nacional de sons do solo, na esperança de incentivar a conscientização.
Até o momento, a demanda é alta, segundo Maeder. “Os sensores estão sempre emprestados.”
*Este artigo foi publicado originalmente na revista jornalística independente Knowable, da editora americana Annual Reviews, e republicado pelo site BBC Future. Leia a versão original (em inglês).
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