- Author, Sue Nelson
- Role, BBC Future
A demência é uma destruidora de mundos.
Ela apaga, altera e rouba as lembranças. Ela causa falta de concentração, confusão e mudanças de humor.
Faz com que rostos familiares e ações do dia a dia que antes eram simples se tornem quebra-cabeças incompreensíveis.
As pessoas que presenciam o declínio mental de um ente querido também são afetadas.
Suas experiências variaram de isolamento social, estresse e maiores riscos à saúde até problemas financeiros.
E, se o ente querido for seu pai ou sua mãe, a demência também refaz e reverte uma das conexões mais importantes das nossas vidas.
Minha nova relação entre pai e filha começou no dia de Natal de 2019.
Uma árvore de Natal artificial superlotada de enfeites ficava no canto da sala.
Meu marido usava um casaco berrante. Nosso filho, em idade escolar, jogava cartas e disfarçava um bocejo.
O avô dele – meu pai – servia-se do tradicional peru da ceia. Até ali, tudo muito natalino.
A única diferença, desta vez, era o local: o Hospital Lister em Stevenage, uma cidade ao norte de Londres.
Meu velho pai tinha então 87 anos de idade. Ele havia sido internado 24 horas antes, doente, confuso e vomitando o que pareciam ser grãos de café pretos.
Como ele brincou mais tarde com as enfermeiras, o mal-estar não foi causado pela minha comida. Na verdade, os exames revelaram uma causa que nos assombrou a todos: overdose de analgésicos.
Fiquei ainda mais surpresa com a pergunta feita pelo médico: “Há quanto tempo o seu pai sofre de demência?”
“Até onde sei”, respondi, “ele não tem demência”.
Cerca de 57 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de demência. Uma equipe internacional de pesquisadores prevê que este número triplique para 153 milhões de casos até 2050, devido ao envelhecimento cada vez maior da população mundial.
“A demência é um termo guarda-chuva para uma série de condições progressivas que afetam o cérebro”, segundo Caroline Scates, vice-diretora de desenvolvimento de enfermeiras especializadas da organização Dementia UK.
Essas mudanças no cérebro são causadas por diversas doenças.
“Existem mais de 200 tipos diferentes de demência”, afirma Scates. “As mais comuns são mal de Alzheimer, demência vascular, demência com corpos de Lewy, demência frontotemporal e demência mista – e todas elas podem estar presentes de formas variadas.”
A demência com corpos de Lewy, por exemplo, é causada por depósitos de proteínas no interior das células do cérebro, os chamados corpos de Lewy. Seus sintomas incluem alucinações, sonolência e desmaios.
Mas o primeiro sintoma de demência normalmente observado pelas pessoas e pelos seus entes queridos é a perda de memória. Ela é causada pelos danos cerebrais.
Quando as células do cérebro param de funcionar adequadamente, elas afetam os nossos pensamentos, a memória e a capacidade de comunicação.
“Quando alguém sofre de demência, os médicos não têm nada a fazer para evitar a progressão da doença”, explica Rosa Sancho, chefe de pesquisa da organização Alzheimer’s Research UK.
“As pessoas podem tomar remédios, mas eles só irão aliviar os sintomas temporariamente.”
Como as doenças que causam a demência são atualmente incuráveis, as únicas soluções no momento são gerenciar os sintomas, fornecer um ambiente que suporte e estimule as funções cerebrais remanescentes e tomar medidas para reduzir o risco de desenvolver a demência antes que ela apareça.
“A demência não é diagnosticada apenas para uma pessoa”, segundo Scates. “O diagnóstico é fornecido para o cônjuge, parceiro, filho, família estendida e amigos, de forma que o impacto atinge toda a família. Cada diagnóstico que é feito muda a vida de diversas pessoas.”
‘Momentos de velhice’?
Para quem cuida de pessoas com demência, a perda de memória pode transformar a vida diária em uma série infindável de mistérios esperando solução.
No caso do meu pai, havia o mistério do motivo que o levou a ingerir uma overdose de analgésicos. Até que eu lembrei que, alguns dias antes, ele estava mancando quando fui buscá-lo na estação do trem.
O que aconteceu é que ele havia quebrado o pé quando escorregou do meio-fio várias semanas antes.
“Eles não engessaram?”, perguntei. “Sim, mas estava me dando nos nervos”, respondeu ele. “Estou bem.”
O médico do hospital imaginou que meu pai pudesse ter tomado algum remédio para a dor, mas que acabou tomando demais por acidente, por não se lembrar de já ter tomado a medicação.
E a pasta do meu pai confirmou a teoria. Encontrei dentro dela mais de 10 embalagens de analgésicos – a maioria, vazias.
É fácil deixar passar sinais de demência como sendo “momentos de velhice”.
Meu pai havia sempre sido esquecido e distraído – características que eu mesma herdei – de forma que eu relevava mentalmente seus lapsos de memória, convencida de que perder sempre o celular era normal para alguém na casa dos 80 anos.
E, em outras áreas, ele estava indo muito bem para sua idade. Ele lia o jornal The Times todos os dias e assistia com frequência ao noticiário da televisão.
Ele adorava discutir política, viajava para todos os lugares de ônibus ou trem, andava quase 10 km todos os dias e ia ao estádio assistir a todos os jogos, sempre que o seu time de futebol jogava em casa, o Everton – embora eu tenha minhas dúvidas sobre os benefícios desta atividade para sua saúde mental.
É verdade que a família vinha ouvindo cada vez mais as mesmas histórias se repetirem.
Houve uma vez em que ele saiu para as lojas da região e se perdeu, voltando para casa três horas depois. Mas não aconteceu nada e ele simplesmente riu da situação.
Para muitos adultos que lidam com um pai ou parceiro esquecido, a aceitação pode parecer algo sensível e respeitoso. Mas ignorar os primeiros sinais tornou-se um grande problema de saúde em todo o mundo. A demência é subdiagnosticada.
“Uma pesquisa de 2017 concluiu que, globalmente, o índice de demência não diagnosticada é de 62%”, afirma a professora Elizabeth Ford, do Departamento de Cuidados Primários e Saúde Pública da Escola de Medicina de Brighton e Sussex.
“Ou seja, apenas 38% dos casos em todo o mundo estão sendo diagnosticados.”
Ford atribui a inexistência de cura ou tratamento que altere a condição como uma das principais razões que levam as pessoas a não buscar um parecer médico, além do fato de ser um diagnóstico “sombrio e altamente estigmatizado”.
“Metade dos adultos britânicos afirma que esta é a condição que eles mais receiam”, segundo ela, “e os médicos tendem a esperar o máximo possível antes de encaminhar [os pacientes] para o diagnóstico. Eles pisam com cuidado para ter certeza que o paciente está pronto para a longa bateria de testes e para ouvir o resultado, pois nem todo paciente quer ouvir se tem demência.”
Observar as mudanças
E os índices de diagnóstico são ainda mais baixos nos países mais pobres. A desigualdade de acesso à assistência médica é uma das grandes responsáveis.
Mas, mesmo em locais onde a demência pode ser diagnosticada com mais facilidade, as pessoas podem enfrentar negação ou achar que não há sentido no processo.
Existem cônjuges, amigos ou parentes de adultos com demência que criam a chamada “bolha da normalização”.
Eles tentam justificar o comportamento cada vez mais irregular do seu ente querido, levados pelo medo de confrontar a realidade, que pode causar dor ou abalar a pessoa, sem falar na infelicidade com a inevitável perda da independência.
Mas as evidências indicam que o diagnóstico precoce pode acabar sendo reconfortante e encorajador para os adultos com demência e suas famílias. E podem melhorar a qualidade de vida, permitindo que eles planejem a assistência e encontrem apoio para sua saúde mental e emocional.
No caso da minha família, os sinais de alerta deveriam ter começado a soar quando meu pai insistiu, erroneamente, que um parente havia retirado todo o dinheiro da sua conta bancária.
Não importava quantas vezes eu mostrasse para ele os extratos ou o acompanhasse pessoalmente ao banco para que ele tivesse certeza. A raiva e a agitação sempre voltavam – às vezes, antes mesmo de voltarmos para casa.
“Desculpe perturbar você, Sue, mas acho que alguém está roubando meu dinheiro.”
Depois veio o ferro de passar que ficou ligado e queimou uma parte da tábua de passar. E o gás que ele não fechou completamente. Graças a Deus, ele não fumava.
Em vez de dar atenção aos sinais, eu me tranquilizava ao saber que também eu havia cometido aqueles erros. Fui insensata, olhando pela lente do amor, sem aceitar o óbvio.
Até que, no verão de 2019, um dos seus netos o colocou no trem pela manhã em Chester, perto da sua casa, para vir para Londres, perto de onde eu moro. E, infelizmente, aquele foi um dia caótico no transporte, com trens quebrados e centenas de pessoas abarrotando as estações, com trens atrasados ou cancelados.
Eu o esperei na estação do trem em Londres, mas, 12 horas depois, ele ainda não tinha chegado. Liguei para a polícia e eles acabaram encontrando meu pai voltando para a casa dele às três horas da manhã.
Quando consegui falar com ele ao telefone, meu pai me agradeceu alegremente pelo agradável fim de semana, mesmo sem nunca ter chegado à minha casa.
Naquele dia, as placas tectônicas do nosso relacionamento se moveram, mas permaneci em negação.
Meu pai sempre me deu seu amor incondicional e infinito apoio. Por isso, voltei inicialmente para minha posição normal – o modo filha mais velha.
Depois de crescer com cinco irmãos mais novos, acabei formando, eu acho, uma mentalidade útil para ajudar meu pai, agora dependente. Eu organizava, supervisionava e verificava tudo, enviando lembretes frequentes de coisas a fazer.
“É por isso que chamam você de mandona”, bufava ele, provocando.
Por isso, pode ter sido, em parte, a minha personalidade. Gosto de estar no comando. E, de fato, cada vez mais pesquisas revelam como a dinâmica familiar pode orientar profundamente os cuidados com a demência.
Especialistas acreditam que conhecer o jogo complexo de sentimentos, como culpa, negação, luto, rivalidade e medo, nas famílias atingidas pela demência pode ajudar pacientes e seus parentes.
“Observar mudanças de comportamento em alguém que você conhece há muito tempo pode ser estressante”, afirma Scates.
“Mas começar a aprender o que está por trás do comportamento pode ajudar a compreender o que aquela pessoa precisa ou o que ela está tentando comunicar.”
Depois da overdose acidental, marquei uma consulta com a médica do meu pai. E, com o consentimento dele, ela revelou que ele havia sido diagnosticado com Alzheimer em 2017. Meu pai havia mantido o diagnóstico em segredo de todos nós.
Mas o quadro caótico que ele se esforçou tanto para esconder revelou-se no seu apartamento, em total desordem, repleto de contas que não foram pagas e avisos em vermelho das companhias fornecedoras.
A geladeira foi a maior surpresa, abarrotada de comida estragada que ele havia comprado, mas se esquecido de cozinhar.
Felizmente, meu pai já havia me confiado a capacidade de administrar seus assuntos em seu nome por procuração. Agora, eu precisava tomar decisões nos seus melhores interesses, o que significava redefinir a relação entre pai e filha.
Eu tinha, de fato, a guarda dele. Ele era meu dependente. Eu me tornei mãe do meu pai.
A pandemia
Mas uma barreira pessoal ainda permanecia. Meu pai sempre me disse: “Prometa, Sue, que nunca vai me colocar em uma casa de repouso”.
Escrever este parágrafo já me traz lágrimas e a dor física de não ter conseguido manter minha promessa.
Primeiro, meu pai entrou em uma pequena casa de repouso para avaliar todas as suas necessidades. Foi em março de 2020.
Dois dias depois, o Reino Unido anunciou seu primeiro lockdown. E, em vez de duas semanas, ele ficou lá por seis meses.
Limpar seu apartamento foi deprimente. Era como retirar os pertences de alguém depois de ter morrido – mas ele estava vivo. Apenas não era a pessoa que um dia eu conheci. Era o Pai de Schrödinger.
Minha culpa disparou quando a covid-19 se espalhou pelas casas de repouso no Reino Unido e em todo o mundo. Meu pai contraiu a doença e, surpreendentemente, livrou-se dela em questão de dias.
Mas fiquei preocupada com sua saúde mental – um homem social que não podia mais ver a família ou os amigos pessoalmente durante o lockdown ou quando havia surtos de covid ou restrições na casa.
Quando as visitas retornaram, viajei mais de 300 km para vê-lo por 30 minutos atrás de uma janela de vidro. Não pudemos nem segurar as mãos.
“Sabemos desde antes da pandemia que o isolamento social é um fator de risco para a demência”, afirma Sancho.
“Quando as pessoas são socialmente ativas e conectadas com a comunidade, é bom para sua saúde mental, comunicação e habilidades sociais. O isolamento social não é bom para a saúde mental das pessoas.”
O ano que se seguiu foi um período de dúvidas implacáveis. Ao mesmo tempo, eu estava lidando com o meu próprio diagnóstico de autismo, que acabaria se confirmando.
Em algumas visitas presenciais, ele estava quase normal. Outras vezes, ele mal conseguia falar – eu segurava sua mão e tocava Puccini, um dos seus compositores favoritos.
Mas também surgiam vislumbres de esperança – se não para nós, para as famílias que vierem a enfrentar a demência no futuro.
Eu descobri que a Holanda desenvolveu a experiência pioneira da “cidade da demência” em 2009, formada por duas enfermeiras que queriam uma experiência diferente para seus próprios pais idosos.
Mais de 150 pessoas com demência vivem agora em Hogeweyk, uma comunidade fechada que recria artificialmente o ambiente de uma pequena vila, com supermercado e restaurante cujos funcionários são cuidadores.
No ano passado, uma empresa privada chamada Richmond Villages adotou o modelo holandês para construir a primeira “cidade da demência” no Reino Unido, ainda que em escala muito menor – seis apartamentos com cuidadores disponíveis para ajudar no que for necessário.
“Tentamos fazer com que eles preparem sua própria comida no apartamento e lavem suas roupas, como se faz quando se mora em casa”, segundo a diretora-gerente Philippa Fieldhouse.
Esta independência trouxe benefícios surpreendentes, segundo Fieldhouse.
“Eles ficam muito mais tranquilos e existe muito mais interação”, ela conta.
“Tivemos famílias que vieram e encontraram seus parentes cozinhando novamente e cuidando do jardim. Estamos descobrindo que podemos cuidar melhor deles quando estão contentes e mais bem instalados.”
Um novo estudo comportamental feito por pesquisadores chineses concluiu que existe uma relação entre o tempo dedicado a tarefas domésticas, exercícios e visitas sociais e a redução do risco de demência. Também se acredita que estilos de vida saudáveis, especialmente entre os idosos, reduzam o risco de desenvolver demência.
Se você conhece alguém com demência, certamente ele fez você reavaliar o seu próprio estilo de vida e suas perspectivas para quando ficar mais idoso.
As causas podem ser variadas e complexas e não há nada que garanta a proteção, mas existem medidas que reduzem o seu risco. Elas incluem ter vida social ativa, cuidar de problemas de audição, não fumar, não consumir álcool em excesso e ser ativo física e mentalmente.
Pode ser difícil aceitar que o seu pai ou mãe, que antes era ativo, saudável e sociável – como o meu – seja afetado.
Por mais que eu agora lamente não ter sido mais mandona quando ele sempre se recusava a cuidar dos seus problemas de audição, um pensamento reconfortante é saber que, talvez, o seu estilo de vida tenha ajudado a manter o cérebro dele em boa saúde por mais tempo, mesmo que não tenha eliminado a ameaça.
Até agora, meu pai continua a me reconhecer, ainda que as palavras surjam lentamente, como bolhas de sabão que sobem e se dissipam rapidamente no ar, enquanto ele enfrenta dificuldades para manter sua linha de pensamento.
Mas estou ciente de que, um dia, meu rosto irá se tornar o de uma estranha. E seus gentis cuidadores já são sua família alternativa.
Em uma visita recente, eu o encontrei em uma área comum ouvindo educadamente uma cantoria nostálgica, provavelmente destinada a despertar antigas lembranças. Uma das músicas era uma canção britânica popular do tempo da guerra, talvez desgastada, chamada “We’ll Meet Again” (“Nós nos encontraremos de novo”).
Quando me viu, meu pai imediatamente se levantou, radiante.
Andando em direção ao seu quarto, sugeri que tocássemos um dos seus CDs de ópera ou de música clássica. “Qualquer coisa”, respondeu ele com um sorriso maroto, “desde que não seja ‘We’ll Meet Again’.”
Foi então que, por um breve e maravilhoso momento, o pai que eu conheci havia voltado e eu, rapidamente, era sua filha mais uma vez.
Como identificar os sinais de demência?
Seus sintomas podem variar e incluem alterações do humor, mudanças de personalidade, confusão, falta de concentração e perda de memória.
Não existem exames para a demência. O que existe é a avaliação cognitiva, normalmente por assistentes de saúde, da memória de longo e de curto prazo, capacidade de comunicação, concentração, capacidade de atenção e consciência de tempo e lugar.
Organizações de apoio oferecem assistência aos parentes e amigos sobre como se preparar para conversas sobre sintomas de demência e a possibilidade de avaliação.
A avaliação é especialmente importante – mesmo que, atualmente, não haja cura, o diagnóstico precoce traz diversos benefícios.
Ele permite que as pessoas criem um ambiente seguro de apoio, planejem os cuidados necessários e gerenciem certos sintomas.
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