- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Era uma cidade pequena e bastante provinciana, o Rio de Janeiro do século 18. Mas o eixo econômico da colônia já, fazia décadas, tinha se transferido do nordeste, com a cana de açúcar, para o sudeste, com a descoberta e posterior exploração intensa de ouro, diamante e outras preciosidades minerais.
Em 27 de janeiro de 1763, há 260 anos, a coroa portuguesa elevou suas terras sul-americanas ao status de Vice-Reino do Brasil. Na mesma data, a capital da colônia foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro.
Essa mudança ocorreu principalmente por causa do deslocamento do eixo econômico do Brasil, segundo pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil. Mas não só: também havia um interesse genuíno da corte portuguesa em controlar melhor a região sul de suas terras sul-americanas — justamente porque, frente ao desenvolvimento da América Espanhola onde hoje é a Argentina, havia um temor em perder espaço.
“Muitas interpretações reforçam que a transferência da capital foi feita para fortalecer duas questões: em primeiro lugar, o controle da saída de metais e pedras preciosas. Outro aspecto importante é associado ao interesse maior do governo português em controlar as relações com a região do Prata, Buenos Aires e Sacramento”, pontua o historiador Paulo César Garcez Marins, professor no Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
“As relações comerciais eram intensas entre as capitanias do sul com essa região e a transferência da capital para o Rio fortalecia o controle geográfico. Sempre foi muito delicada essa região fronteiriça entre as colônias portuguesa e espanhola aqui na América do Sul”, explica ele.
Sobre o primeiro aspecto, contudo, o historiador ressalta que o chamado Ciclo do Ouro já estava em decadência. Processo que iniciou em 1690 e teve seu auge em 1750, a exploração não era mais motivo para tanto frisson.
“O auge tinha passado e havia uma decadência da produção mineradora”, diz Marins. “A transferência não visava a proteger ‘o porto do ouro’, como algumas pessoas já disseram, mas sim fortalecer um controle do fluxo em um momento de decadência, mas ainda com alto fluxo do distrito diamantino, ou seja, das pedras preciosas, sobretudo o diamante, que este sim estava no auge.”
Se esse extrativismo era realizado sobretudo nas terras onde hoje fica Minas Gerais, o Rio se tornou chave justamente por ser o porto principal de escoamento. Assim, toda a estrutura de controle e tributação foi montada ali.
Motivações
Professor na Universidade Federal de Minas Gerais, o historiador Luiz Carlos Villalta contextualiza dizendo que “há indicações e documentos que mostram que o Rio de Janeiro veio alcançando uma importância econômica, militar e política desde início do século 18, senão antes”.
“Sua importância econômica associava-se à mineração do ouro e dos diamantes, escoados principalmente pelo porto fluminense”, enumera. “Vinha também do Rio de Janeiro ter centralidade no abastecimento de algo de relevância fundamental à época: o braço escravo africano. A cidade ocupava um papel relevante no tráfico negreiro.”
Ele explica que a importância política advinha justamente da posição geográfica frente às capitanias mais ao sul, além do Rio ser um epicentro para as “questões relativas à defesa militar, aos embates com os espanhóis”.
“A natureza litorânea da cidade e, ainda, as qualidades do seu porto também podem ter pesado [na escolha como nova capital]”, afirma ele.
Villalta lembra, contudo, que é preciso reconhecer que Salvador ainda gozava de prestígio econômico. “O que explicaria privilegiar-se o Rio de Janeiro? O que contou mais?”, pergunta-se. Uma pista pode ser o documento escrito pelo nobre português Luís da Cunha (1662-1749), homem que tinha, segundo o historiador, “extrema ascendência” sobre o rei dom João V (1689-1750) “e cujas ideias repercutiram sobre os ministros de seu sucessor, dom José I” (1714-1777) — que seria o responsável pela mudança da capital.
“[Ele] defendia a transferência da família real para o Rio de Janeiro e ressaltava as qualidades e relevância do Brasil [em texto escrito em 1736]”, diz Villalta. “Teria havido na decisão de dom José I algum eco do que havia sido defendido por um homem de grande atuação durante o reinado do seu pai?”
Para o historiador Marcelo Cheche Galves, professor na Universidade Estadual do Maranhão, o que deve ter pesado mesmo na escolha foi a atuação de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), na época secretário de estado do rei português, mais tarde conhecido pelo título de Marques de Pombal. “Uma das chaves de sua administração era de que o princípio da razão fosse aplicado à lógica administrativa”, pontua.
“A grande questão era trazer racionalidade administrativa para um Estado moldado em critérios não racionais”, argumenta o historiador.
Nesse contexto, a racionalização significava “explorar de maneira mais eficaz e organizada o território colonial”. “Por isso a transferência. O Rio de Janeiro era o lugar mais estruturado nas proximidades das Minas Gerais, que era de onde vinha a principal riqueza, já em decadência há algumas décadas, do território colonial”, explica Galves.
“A transferência tem a ver com a proximidade do Rio com relação às minas e, assim, se tentar ainda um novo impulso na tributação e na região aurífera. É esse o fundamento.”
“Mais perto das minas, a capital transferida para o Rio possibilitava controlar melhor a arrecadação de impostos oriundos da prospecção de ouro, possibilitar uma defesa mais efetiva do sul frente à coroa espanhola e gerenciar melhor o tráfico negreiro”, resume a historiadora Clarissa Sanfelice Rahmeier, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing.
Desenvolvimento da região
Marins diz que é preciso cuidado antes de estabelecer uma relação de causa e consequência entre a transferência da capital e o desenvolvimento da região mais ao sul da colônia. Isso porque, conforme ele lembra, esse crescimento, tanto em importância econômica quanto em população, já vinha acontecendo antes, em virtude da própria mineração. “A partir de 1695, o crescimento foi exponencial”, afirma ele. “Prosseguindo pelas décadas seguintes.”
Mas o que é inegável é que essa transferência da capital criou condições muito mais adequadas para que o Rio fosse a cidade ideal para receber a corte portuguesa em 1808, quando dom João VI (1767-1826) empreendeu a famosa fuga das tropas napoleônicas e transferiu a sede do reino para as terras brasileiras.
“O Rio de Janeiro, à época da transferência da corte, era uma cidade acanhada, com inúmeros problemas e construções bem modestas quando se considera o papel ao qual ela foi alçada: o de ser capital de um império europeu. Em 1799, tinha cerca de 40 mil habitantes em sua área urbana. Em 1808, a cidade, no todo, reunia cerca de 60 mil almas. Em 1821, a população ultrapassava a cifra de 110 mil”, contextualiza Villalta.
Galves ressalta que a estrutura seria ainda pior, não fosse o fato de a capital ter sido transferida para lá. “O que o Rio ganhou a partir daí, embora fosse algo nos moldes coloniais, habilitou de algum modo o Rio a ser a capital do império 50 anos depois”, diz ele.
Marins concorda. Ele lembra que houve um movimento de “embelezamento da cidade” a partir do momento em que o vice-rei passou a permanecer no Rio.
“Foram construídas igrejas de aspectos sofisticados, como a fachada da Matriz de Nossa Senhora da Candelária e a fachada da Ordem Terceira do Carmo, construções monumentais que dão ao Rio um aspecto de cidade sofisticada”, afirma ele. “Também foi construído o passeio público e empreendeu-se o ordenamento do terreno do paço. Chafarizes foram inaugurados e muitas outras obras que ecoavam soluções de arquitetura portuguesa.”
Em paralelo, a cidade também ganhou fortificações militares, justificando a sua posição de capital.
Vice-reino
Se a transferência da capital é vista como algo importante, os historiadores acreditam que o alçamento da colônia à condição de vice-reino foi algo apenas protocolar, burocrático. Villalta cita que isso significava “o crescimento da importância do Brasil”. Mas, em termos práticos, pouco mudou.
“A mudança de status foi sobretudo uma mudança nominal, porque o vice-rei do Brasil continuou se comportando como os antigos governadores gerais, ou seja, a criação de um cargo permanente de vice-rei não deu mais autonomia à colônia”, analisa Marins.
“O título dava mais pompa, status. Mas não trazia vantagem concreta à administração colonial. Era uma condição honorífica”, define Rahmeier.
Você precisa fazer login para comentar.