- Stephen Dowling
- BBC Future
Em 19 de julho de 2020, poucos meses depois do início da pandemia que paralisou o mundo, um foguete subiu aos céus na base de lançamentos da ilha de Tanegashima, no sul do Japão.
A bordo do foguete, havia uma pequena espaçonave, com pouco mais de dois metros de largura e mais ou menos o peso de um automóvel Ford Focus. Ela incluía uma série de câmeras e espectrômetros vitais para sua missão iminente, que teria lugar depois de uma viagem de mais de 493 milhões de quilômetros a partir da Terra.
Empoleirada sobre sua estrutura dourada, havia uma grande antena de rádio preta, para enviar seus dados através do vasto e frio abismo no espaço, até os atentos controladores no centro de controle.
A espaçonave chama-se Hope (Esperança, em inglês). Ela não é americana, nem russa, chinesa ou europeia. Hope foi a primeira espaçonave da Agência Espacial dos Emirados Árabes Unidos (Uaesa, na sigla em inglês) a viajar além da órbita do nosso planeta.
Com sucesso, ela foi a primeira espaçonave de um país árabe a chegar a Marte. Os Emirados Árabes são agora a quinta nação do mundo a colocar com sucesso uma espaçonave em órbita do planeta vermelho.
Seis anos antes do lançamento, a Uaesa nem mesmo existia.
Mas, no momento em que os Emirados Árabes Unidos se preparavam para celebrar seu cinquentenário, a agência espacial do país apostou sua reputação colocando uma espaçonave em órbita de Marte na primeira tentativa, para transmitir detalhes sobre o clima marciano que nunca haviam sido observados antes.
Iniciativa ousada
O Centro Espacial Mohammed Bin Rashid (MBRSC, na sigla em inglês) fica nos limites do Aeroporto Internacional de Dubai, nos Emirados Árabes, a cerca de uma hora de carro a leste do imenso edifício Burj Khalifa.
Ele é relativamente compacto, pelos padrões dos centros espaciais. O MBRSC provavelmente se perderia no estacionamento do enorme Centro Espacial Johnson da Nasa em Houston, nos Estados Unidos.
Aqui, o conjunto de escritórios, oficinas e espaços vazios é o centro nervoso da UAESA, criada há menos de uma década. Nele, foi realizada grande parte do trabalho para dirigir a Missão dos Emirados para Marte até o Planeta Vermelho.
Visitei a Uaesa em fevereiro de 2022, um ano depois que a nave Hope chegou ao fim da sua viagem de cerca de 500 milhões de quilômetros da Terra até a órbita de Marte.
Chegar a Marte já havia sido uma conquista, especialmente para uma agência espacial com tão pouca experiência. Só quatro países chegaram ao planeta vizinho antes — Estados Unidos, Rússia, China e Índia — e sua agência espacial foi a segunda a ter sucesso na primeira tentativa, atrás apenas da Índia.
O país novato é um dos mais ambiciosos da indústria espacial.
A Uaesa foi fundada apenas em 2014. Houve uma tentativa de formar um programa espacial pan-árabe, inspirado na Agência Espacial Europeia. A tentativa durou seis anos, mas acabou não se concretizando. Isso impulsionou os Emirados Árabes a desenvolver sua própria agência espacial e pode ajudar a explicar por que sua abordagem foi acelerada desde então.
Os Emirados Árabes Unidos haviam lançado sete satélites antes da criação da sua agência espacial. Todos eles foram construídos por companhias estrangeiras, como a Eads da Europa, a Boeing dos Estados Unidos e a Iniciativa Satrec, da Coreia do Sul.
Foi apenas em 2018 que o país conseguiu realmente projetar o seu próprio satélite: o sensor da Terra KhalifaSat, construído por uma equipe de engenheiros dos Emirados na Coreia do Sul, nas instalações da Iniciativa Satrec.
O KhalifaSat foi lançado em 2018 e colocado em órbita por um foguete Proton, lançado no cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão. Suas imagens da Terra em alta resolução, captadas a cerca de 613 km acima da superfície do planeta, puderam ser usadas para tudo, desde planejamento urbano até assistência em desastres. Mas o satélite também tinha outros objetivos, como dar início a uma indústria espacial construída do zero nos Emirados Árabes.
Em fevereiro de 2022, Omran Sharaf, de 38 anos de idade, era o chefe da Missão dos Emirados para Marte. Ele conta que a inspiração da missão era o “modelo de hélice tripla, em que você tem o setor privado, o governo e os acadêmicos… operando juntos. E não ter cada setor funcionando em um silo.”
Com isso, a Uaesa apostou ser capaz de se tornar uma das principais agências espaciais do século 21.
Durante a Guerra Fria, esses desenvolvimentos teriam parecido exagerados. Mas a exploração espacial nos anos 2020 é muito diferente.
Rumo ao Jubileu de Ouro
A corrida espacial dominada pela rivalidade geopolítica entre os Estados Unidos e a União Soviética se fragmentou e agora envolve muitos outros participantes — desde empresas comerciais, como a americana SpaceX, até agências iniciantes de países relativamente pequenos, como os Emirados Árabes.
Nas décadas anteriores, os programas espaciais que colocaram satélites em órbita com sucesso voltaram sua atenção para nosso vizinho mais próximo, a Lua. Mas não foi o caso dos Emirados Árabes Unidos.
“Os Emirados Árabes não tinham tempo a perder e precisavam acelerar a construção dessas capacidades. Para isso, o país olhou para Marte”, afirma Sharaf.
O prazo para a missão atingir a órbita de Marte era a comemoração do seu Jubileu de Ouro, em outubro de 2021.
O potencial da nascente indústria espacial pode ter sido ajudado pela queda do setor de aviação dos países do Golfo durante a pandemia de coronavírus. Centros de voos de longo percurso, como Dubai e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, ficaram quase desertos durante as proibições de viagens.
Em 2018, o setor de aviação era responsável por quase um quarto do PIB do país e esperava-se que esse índice atingisse quase a metade em 2030 — até que veio a pandemia. O país precisou então procurar outras formas de manter sua economia funcionando.
O objetivo da Missão dos Emirados para Marte não era apenas hastear a bandeira dos Emirados Árabes Unidos no cenário mundial. A intenção central era produzir as imagens mais completas já observadas dos ciclos meteorológicos de Marte. A aeronave estudaria o Planeta Vermelho com três instrumentos principais.
O primeiro era uma unidade de formação de imagens em alta resolução, capaz de medir a água, gelo, poeira e aerossóis na atmosfera do planeta. Um espectrômetro infravermelho monitoraria a radiação da superfície e da atmosfera de Marte, medindo a temperatura da superfície e as quantidades de poeira da atmosfera.
Enquanto isso, o espectrômetro ultravioleta da Hope mediria toda a atmosfera do planeta, estudando seus níveis de hidrogênio e oxigênio — os blocos de construção de água, fundamentais para a vida.
Embora mais de 30 espaçonaves e sondas já tenham visitado o Planeta Vermelho, a maioria tirou apenas fotografias do clima de Marte. A nave Hope pretendia fazer algo muito mais ambicioso, cobrindo uma órbita que permitisse formar uma imagem global do clima de Marte e acompanhá-la ao longo das distintas mudanças sazonais do planeta.
Aposta monumental
Sarah Al Amiri tem 35 anos de idade e era ministra de Ciências Avançadas dos Emirados Árabes Unidos quando visitei Dubai, em fevereiro de 2020. Posteriormente, ela se tornou ministra da Educação Pública e Tecnologia Futura.
Al Amiri é obcecada pelo espaço desde que era criança, mas, como a indústria espacial era algo improvável nos Emirados Árabes Unidos, ela estudou engenharia da computação. E, quando ela se formou, aos 22 anos de idade, a agência espacial dos Emirados Árabes começava a tomar forma.
Al Amiri acabou trabalhando como engenheira de software em dois dos primeiros projetos de satélites dos Emirados Árabes, o DubaiSat 1 e 2. E, enquanto a Uaesa promovia os benefícios da futura missão Hope, ela era a líder de ciências do projeto e a ministra de Ciências Avançadas do país.
Mesmo a abordagem ousada dos Emirados não conseguia esconder o fato de que conduzir uma missão espacial bem sucedida para Marte é uma aposta monumental. Afinal, pelo menos a metade das 50 missões realizadas desde 1960 resultou em fracasso.
No início dos anos 1970, uma corrida frenética entre os Estados Unidos e a União Soviética para fazer aterrissar as primeiras espaçonaves em Marte gerou uma série de missões fracassadas. As tentativas recentes tiveram mais sucesso, mas Marte continua sendo um destino desafiador.
“Compreendemos os desafios, entendemos o risco inerente e sabíamos que as chances de sucesso eram de 50%, segundo os dados históricos”, afirma Al Amiri. E “havia também a compreensão da quantidade de oportunidades que serão criadas após esta missão, que superam em muito qualquer apreensão pessoal com relação à viagem.”
“Para nós, era uma oportunidade imensa e somos agradecidos por termos feito parte dela… era um programa muito importante para o setor espacial nos Emirados Árabes Unidos e para a ciência e tecnologia em geral no país”, prossegue a ministra.
“Cada uma das pessoas sabia que, se não tivesse sucesso ao realizar sua pequena tarefa, todo o programa poderia ser prejudicado”, ela conta. “Este é o sentido de responsabilidade presente em cada indivíduo.”
“E precisávamos ter uma equipe que tivesse motivação própria pelo sucesso desta missão — compreendendo não apenas que fazer chegar uma missão a Marte é uma incrível contribuição para a ciência, mas também para transformar a cultura e mudar uma nação, criando um farol de esperança”, afirma Al Amiri.
A corrida contra o coronavírus
Apesar do seu entusiasmo, conhecimento e determinação, a equipe enfrentou uma enorme dificuldade.
A nave Hope deveria ter sido lançada em 2020, quando a pandemia de covid-19 começou a se espalhar pelo mundo. O espaço aéreo congestionado de Dubai e o grande tráfego marítimo do Golfo Pérsico impossibilitavam lançamentos espaciais nos Emirados Árabes.
O lançamento estava previsto para ser realizado no Japão, mas a pandemia causou uma onda de pânico no último minuto. Os Emirados Árabes Unidos precisaram negociar com o governo japonês para que mantivesse seu espaço aéreo aberto pelo tempo suficiente para que a Hope pudesse sair dos Emirados.
Ao mesmo tempo, Sharaf precisou criar três equipes diferentes — uma para preparar a espaçonave para viajar, outra para viajar com ela até a capital japonesa, Tóquio (e entrar em quarentena em seguida) e outra para viajar antecipadamente, passar pela quarentena e então receber a espaçonave.
O problema é que a Uaesa não tinha pessoal suficiente. Algumas pessoas precisaram ser enviadas do Laboratório de Física Atmosférica e Espacial (Lasp, na sigla em inglês) nos Estados Unidos até Dubai, para compor as equipes. Alguns passaram semanas envolvidos com a equipe de lançamento em Tanegashima.
A Hope precisou ser transportada de Dubai a bordo de um enorme avião Antonov da era soviética, conduzida em um contêiner “limpo” superdimensionado. Após a aterrissagem, a espaçonave foi transferida de Tóquio para um porto no sul, de onde seguiu viagem de barca até as instalações de lançamento — uma solução de baixa tecnologia para um passageiro de última geração.
A operação para lançar a espaçonave dentro do prazo prosseguiu, mas grande parte da equipe da Hope precisou trabalhar de casa, enquanto os Emirados Árabes entravam em lockdown.
Pergunto a Al Amiri se, às vezes, ela não desejava ter mais 18 meses, apesar do prazo de lançamento iminente. “Sim”, responde ela, acrescentando que, apesar das dificuldades, eles se ajustaram “muito rapidamente” ao trabalho na pandemia.
Desde o início do processo, a equipe tomou decisões sobre quais testes poderiam ser conduzidos em condições de lockdown e quais precisavam de locomoção. Membros das equipes se apresentaram como voluntários para viajar até o Japão, mesmo sob quarentena.
“De minha parte, eu mantinha contatos frequentes com todos os setores do governo dos Emirados Árabes Unidos, já que havia proibições de viagem, falando com o embaixador japonês e com o nosso embaixador no Japão”, relembra ela.
“Mesmo no pico da pandemia, as pessoas foram muito cooperativas e ofereceram muito apoio para fazer esta missão acontecer. Em nenhum momento nós dissemos, ‘OK, nosso plano de contingência agora é atrasar o lançamento em dois anos’. Estou muito feliz por isso nunca ter surgido nas conversas”, afirma Al Amiri.
O prazo para chegar a Marte a tempo das celebrações do 50º aniversário dos Emirados Árabes Unidos trazia mais uma ressalva. Você não pode simplesmente lançar uma missão para Marte no momento que quiser.
O engenheiro espacial norte-americano Brett Landin, que trabalhou na missão dos Emirados para Marte com uma equipe nos Estados Unidos, ressalta que a janela de lançamento pode ser implacável.
“Você só pode ir para Marte a cada dois anos”, ele conta. “E, por isso, você planeja uma oportunidade de lançamento específica e, sabe, a pandemia não estava no nosso radar.”
“Nós perguntamos à equipe: ‘vocês estão dispostos a viajar e ficar em quarentena no Japão, pelo que me lembro por 13 dias, duas semanas, em que vocês basicamente irão ficar presos em um quarto?'”, ele conta. “E não foram poucos os voluntários que disseram ‘claro que sim, eu vou. Quero ver este lançamento.’ E a equipe dos Emirados agiu da mesma forma.”
“Ou seja, nós simplesmente tivemos todo o apoio. Sim, foi mais difícil, mas não podíamos deixar que aquilo nos impedisse”, conclui Landin.
Al Amiri uniu-se à equipe que supervisionava as preparações finais da Hope antes do lançamento, na base espacial isolada a cerca de 43 km ao sul da ilha de Kyushu, no sul do Japão.
O lançamento foi realizado totalmente de acordo com o planejado, em julho de 2020, e a Hope começou sua viagem de sete meses até Marte.
A entrada em órbita
Em fevereiro de 2021, a Hope se aproximava de Marte.
Na Terra, o governo dos Emirados Árabes Unidos transformou o evento em um espetáculo com distanciamento social. Multidões se reuniram fora do famoso arranha-céus Burj Khalifa, que foi iluminado de vermelho — a cor de Marte — para celebrar a ocasião.
O horário programado era 19h30, hora local dos Emirados Árabes. Viajando a 120 mil km/h com relação ao Sol, a Hope iniciou uma manobra de frenagem de 27 minutos de duração para reduzir a velocidade. Se a manobra falhasse, a espaçonave se perderia no espaço sideral.
Um membro da equipe de imprensa que trabalhava na Missão para Marte conta que a manobra precisou começar a mais de cerca de 2,3 mil quilômetros de distância do periastro pretendido — o ponto em que a órbita seria mais próxima da atração gravitacional de Marte — a cerca de 1.060 km acima do Planeta Vermelho.
A tolerância da manobra era de 300 km, para mais ou para menos — após uma viagem de quase meio bilhão de quilômetros.
Depois de tudo isso, a espaçonave só poderia se comunicar por alguns minutos até seguir para o lado oculto de Marte, onde ficaria sem comunicação por 15 minutos. Nesse período, ela seria a “espaçonave de Schrödinger” — o empreendimento oscilaria entre o sucesso e o fracasso, até que o controle da missão pudesse confirmar que a Hope havia entrado na órbita com sucesso.
Enquanto a multidão em Dubai aguardava a confirmação da entrada em órbita, Al Amiri estava no palco falando para a imprensa, em frente a uma tela mostrando testas franzidas e a agitação da atividade no controle da missão no centro espacial.
O processo normal, que havia sido praticado e ensaiado com antecedência, previa que o diretor do projeto — Sharaf, na sala de controle do MBRSC — fizesse diversas verificações com várias equipes. Elas incluíam a sua equipe em Dubai, uma equipe de back-up, seus parceiros do Lasp nos Estados Unidos e as equipes de engenharia, energia e navegação.
Mas, nas imagens ao vivo, Al Amiri notou que Sharaf estava fazendo verificações adicionais.
“Ele verificava com dois indivíduos diferentes, a pessoa que tinha os dados de propulsão e a que tinha o subsistema de energia. Não era normal que ele fosse verificar aquilo”, ela conta. “Eu estava ao vivo no palco. O que está errado? Para mim, na minha cabeça, eu pensei ‘o que diabos está acontecendo aqui? O que aconteceu? Isso não estava no roteiro!'”
O que se seguiu foi um silêncio preocupante.
“Eu pensei, ‘ele está só conferindo os resultados. É normal acontecer de verificar a telemetria que está chegando da espaçonave para garantir que esteja tudo certo'”, conta Al Amiri. Mas, internamente, foi um momento assustador para ela.
“Simplesmente vendo aquelas duas etapas inesperadas que ele seguiu antes da chegada”, relembra a ministra. “E, em seguida, o suspiro profundo que ele deu antes de fazer o anúncio. Eu o repreendi tantas vezes por aquilo. Ele disse ‘não foi intencional, eu não pretendia criar suspense’.”
“Mas, depois que ele fez aquilo e sabendo que não estava planejado, ficar de pé ali com um suspiro profundo… por que você suspira profundamente quando está fazendo um anúncio?”, prossegue Al Amiri.
O assistente da ministra tinha um envelope com um discurso pronto para ser lido se a missão fosse um fracasso. Ele permanecia por perto à medida que aumentava a espera pela confirmação.
O sinal emitido pela espaçonave confirmando que havia completado sua órbita levou 11 minutos para cobrir os 190 milhões de quilômetros que separam Marte da Terra. Mas foi um sucesso — a nave Hope estava em órbita de Marte.
O discurso do fracasso nunca foi lido. Al Amiri jogaria mais tarde o envelope fechado no lixo.
As primeiras imagens
O sucesso da missão foi noticiado em todo o mundo. Mas, para Al Amiri, o melhor ainda estava por vir. “Eu diria que o momento de maior orgulho foi quando vi a primeira imagem não processada de Marte”, ela conta.
“Aquela imagem não processada estava além das expectativas, mesmo com as dificuldades que tivemos com a câmera de bordo”, relembra a ministra. “Foi incrível. Posso passar muito tempo descrevendo aquela imagem.”
“Acho que corri para alguém e disse, ‘olhe que bonito’. E parecia um pouco esverdeado. Eles perguntavam ‘o que é isso?’ e eu dizia, ‘não, você não entendeu. Você não consegue imagens não processadas como esta'”, ela conta.
Também estavam em jogo o orgulho nacional e um bom e promissor pontapé inicial de um novo setor na economia do país, afirma Sharaf.
“É questão de criar um setor e um ecossistema de tecnologia e ciência avançada nos Emirados Árabes Unidos”, segundo ele. “É questão de ter um ministério de ciências avançadas, de ter essa indústria básica”. Sharaf acrescenta que o impulso veio do nível mais alto do governo dos Emirados – do xeque Hamdan, príncipe herdeiro de Dubai.
“Ele mencionou isso para mim diversas vezes”, conta Sharaf. “Ele disse, ‘eu quero que essa missão prepare líderes que possamos colocar em diversos setores’. É questão de ter esta mentalidade, de assumir riscos controlados, ou de uma abordagem mais inteligente para as questões quando o assunto é assumir riscos.”
E Sharaf é um dos principais exemplos — meses depois da minha visita, ele foi nomeado ministro assistente do governo.
As descobertas científicas
A missão da Hope é um momento de orgulho para uma nação jovem, mas o orgulho nacional tem pouca importância na comunidade científica global. O que irá estabelecer o legado da missão nas próximas décadas é a ciência.
Marte tem pouco mais de 10% da massa da Terra e sua distância do Sol é 50% maior, mas as atmosferas dos dois planetas apresentam algumas similaridades básicas.
Como a Terra, Marte tem calotas polares de gelo. Existem variações sazonais do clima e algumas delas — como violentas tempestades de poeira — são visíveis para os nossos instrumentos na Terra.
A presença de gelo, formado pelo hidrogênio e pelo oxigênio presentes na fina atmosfera de Marte, demonstra que o planeta já teve as condições corretas para sustentar vida microbiana. Não é uma prova de que Marte já tenha tido vida, mas certamente é um sinal suficientemente claro desta possibilidade.
Graças a meio século de observações, também sabemos que alguns dos padrões climáticos de Marte imitam os encontrados na Terra, como os ventos catabáticos. Eles se formam em volta dos polos e fluem através do gelo. Quando atingem canais e depressões, o suave fluxo de ar fica mais caótico, levantando enormes nuvens de gelo e poeira.
A missão da Hope pode descobrir mais sobre as similaridades e diferenças do clima entre os dois planetas.
Al Amiri não ocupa mais o cargo de chefe de ciências do projeto. No seu lugar, está hoje Hessa Al Matroushi, especialista em computadores que entrou no programa em 2015, inicialmente para trabalhar no espectrômetro ultravioleta da missão.
Al Matroushi conversou comigo pelo Zoom em novembro de 2022, dias antes do lançamento programado da missão da sonda lunar dos Emirados Árabes. A busca por indicações sobre as mudanças climáticas de Marte é uma de suas principais prioridades.
“Queríamos que a ciência fosse original, relevante e algo que fosse necessário e desejado”, afirma Al Matroushi.
“Havia lacunas específicas que foram ressaltadas pela comunidade que estudava a atmosfera de Marte. Se, por exemplo, tivermos sondas e elas medirem dados dia e noite, perdemos a cobertura global, pois estamos estudando apenas um local”, explica ela. “E, quando temos satélites em órbita conseguindo cobertura global, estamos perdendo as variações entre o dia e a noite, pois eles estão retirando amostras da atmosfera ou fazendo observações em horários específicos.”
Reunir essas formas de monitoramento de Marte, sem dúvida, é um desafio, mas é o que Al Matroushi planeja fazer. “É muito diferente. Marte, enquanto planeta, pode surpreender”, ela conta.
Para conseguir o quadro mais completo possível, a Hope precisa pesquisar as camadas da atmosfera de Marte, observando as mudanças da composição química das camadas mais altas até a superfície.
“Queremos entender a ligação entre elas, como elas se processam, como são as mudanças climáticas e os impactos da fuga de hidrogênio e oxigênio nas altitudes maiores”, afirma Al Matroushi. “Sabíamos, ao projetar esta missão, que obteríamos conhecimentos que não tínhamos visto antes, pois essas observações não eram possíveis.”
Antes da Hope, nosso conhecimento dos detalhes da fina atmosfera de Marte era irregular, na melhor das hipóteses.
Al Matroushi explica que as sondas anteriores haviam descoberto que parte da sua atmosfera de hidrogênio e oxigênio, similar à da Terra, estava desaparecendo no espaço devido ao fraco campo magnético do planeta.
“Estamos prestando atenção nesses dois, porque são os componentes básicos da água”, afirma Al Matroushi. “Por isso, quando o assunto é a vida… realmente é importante compreender isso.”
“Os modelos realmente ajudam muito, além de tentar simular o que está acontecendo e tentar entender a situação”, prossegue ela. “Mas esses modelos são construídos com base em observações. E são baseados, você sabe, na física que compreendemos. Por isso, se não tivermos observações completas, é claro que também haverá limitações nos modelos que estamos usando.”
“As missões que foram para Marte tinham seus próprios objetivos. E sempre há novas questões aguardando respostas. Por isso, agora mesmo, enquanto estamos estudando, ainda temos perguntas. E é aqui que vejo que nenhuma missão funciona sozinha. É aqui que se reúne a comunidade colaborativa, entre os cientistas e [outras] missões”, segundo Al Matroushi.
Obter mais conhecimento sobre o clima de Marte pode ajudar a estudar os padrões climáticos de longo prazo aqui na Terra, incluindo o que podem significar, a longo prazo, as mudanças climáticas.
“Marte passou por uma transformação importante bilhões de anos atrás”, afirma Al Matroushi. “E é importante compreender esses processos de como Marte do passado tornou-se Marte do presente. Porque queremos entender o que aconteceu com o nosso planeta, porque existem similaridades entre nós.”
“Eu não diria que somos exatamente iguais espectrômetro ultravioleta — nós temos, por exemplo, um grande campo magnético que nos protege do Sol, que Marte não tem. Marte não tem a proteção que nós temos. De forma que isso pode contribuir com os motivos por que acontecem essas drásticas mudanças”, explica ela.
A missão principal da Hope em Marte deve durar um ano marciano, que equivale a dois anos terrestres. Mas a equipe de ciências de Al Matroushi já está olhando para além desse prazo.
“Durante este ano em que fizemos nossas observações, o Sol não estava em alta atividade — não estávamos no pico do ciclo solar”, explica ela. E isso pode mudar se a missão for estendida, gerando observações muito diferentes.
“No momento, estamos observando um grande aumento da atividade solar. Que impacto isso traz para a atmosfera [de Marte]?”, questiona Al Matroushi. Entender isso pode fornecer aos Emirados Árabes uma visão mais profunda do passado.
“Porque tentar entender quais os impactos dessas atividades sobre a atmosfera marciana, em termos de escape, em termos de clima, em termos das tempestades de poeira e assim por diante, pode nos fornecer alguma orientação sobre o que aconteceu ou contribuiu para as mudanças que vimos no passado”, explica Al Matroushi. “E podemos elaborar algumas indicações que também podem nos ajudar na Terra.”
O clima não foi a única descoberta. Em agosto de 2022, a Hope enviou as primeiras imagens detalhadas de uma “aurora irregular” na atmosfera superior de Marte.
Ela sugere um ponto de encontro caótico entre a atmosfera do planeta e os ventos solares. Até então, os cientistas esperavam que as auroras marcianas fossem relativamente uniformes.
A missão da Hope se estenderá até o mês de fevereiro, se tudo sair conforme o planejado. Al Matroushi já está ansiosa pelo que a missão poderá descobrir até lá.
“Nenhum ano será igual em Marte”, segundo ela. Este ano, por exemplo, foi tranquilo para as tempestades de poeira. Algumas tempestades regionais podem ter sido fortes, mas não houve uma verdadeira tempestade global.
“Só posso imaginar se poderíamos observar essas tempestades que englobam todo o planeta.” O entusiasmo na voz de Al Matroushi fica claro, até mesmo pelo Zoom.
“É realmente fascinante. Existe muita ciência para desvendar.”
Você precisa fazer login para comentar.