- Author, Zaria Gorvett
- Role, BBC Future
O ano era 1187 e um príncipe medieval inglês se deitava na sua enorme cama de madeira, junto com uma nova companhia.
Com seus volumosos cabelos avermelhados e seu porte robusto, Ricardo Coração de Leão (1157-1199) era o protótipo do macho guerreiro, famoso pela sua formidável capacidade de liderança no campo de batalha e seu comportamento de cavaleiro.
Mas, naquela época, ele fez uma amizade inesperada com um antigo inimigo: ninguém menos que Filipe 2° (1165-1223), rei da França desde 1180 até a sua morte.
Inicialmente, os dois membros da realeza europeia formaram uma aliança puramente pragmática. Mas, depois de passarem mais tempo juntos, comendo na mesma mesa e até do mesmo prato, eles se tornaram amigos próximos.
E, para consolidar o relacionamento especial entre eles e seus dois países, eles concordaram em assinar um tratado de paz – e dormiram juntos, na mesma cama.
As conotações modernas de dois homens compartilhando a mesma cama são muito diferentes. Mas, naquele tempo, era algo totalmente comum e o evento é mencionado quase como uma casualidade em uma crônica da época sobre a história da Inglaterra.
Muito antes do desejo de privacidade durante a noite ou das ideias mais recentes sobre a masculinidade humana, muitos historiadores consideram que a parceria noturna dos dois membros da realeza era um sinal de confiança e fraternidade.
Trata-se da antiga e esquecida prática do sono compartilhado.
Por milhares de anos, era absolutamente normal se deitar na cama todas as noites ao lado de amigos, colegas e parentes, incluindo toda a família estendida, ou mesmo comerciantes em trânsito.
Durante as viagens, as pessoas dormiam rotineiramente ao lado de completos estranhos. E, dependendo da sorte, esse estranho poderia trazer consigo um mau cheiro insuportável, roncar de forma ensurdecedora ou, pior que isso, preferir dormir totalmente nu.
Às vezes, o “sono social” era simplesmente uma solução pragmática para a falta de camas. Na época, elas eram móveis de alto valor.
Mas até a nobreza buscava ativamente companheiros de cama, pela inigualável intimidade das conversas noturnas no escuro, sem falar na sensação de aquecimento e segurança.
Como as pessoas passavam as noites de sono compartilhado? E como essa antiga prática foi abandonada?
Tradição antiga
Em 2011, uma equipe de arqueólogos descobriu uma camada de sedimentos pré-históricos incomumente bem preservada na caverna Sibudu, na África do Sul.
Ela continha os restos fossilizados de folhas da árvore florestal Cryptocarya woodii. Era o “lençol” de um colchão de folhagem construído na Idade da Pedra, há cerca de 77 mil anos.
A arqueóloga Lyn Wadley, líder do projeto, especulou na época que o colchão pode ter sido suficientemente grande para ser usado por todo um grupo familiar.
É difícil encontrar evidências diretas do sono compartilhado, mas se acredita que esta prática seja muito antiga. Na verdade, do ponto de vista histórico, a preferência moderna por dormir sozinho e de forma privada é profundamente estranha.
Depois de um breve intervalo na Antiguidade – quando até os membros casados das classes superiores dormiam sozinhos – a prática atravessou a Idade Média mais ou menos sem alterações.
Mas os registros dessa atividade são mais numerosos no início da Idade Moderna, aproximadamente entre 1500 e 1800. Naquela época, compartilhar a cama era extremamente comum.
“Para a maioria das pessoas, exceto pelos aristocratas, comerciantes bem sucedidos e alguns membros da aristocracia rural, era incomum não ter um companheiro de cama”, segundo o professor universitário de história Roger Ekirch, da Virgínia Tech (o Instituto Politécnico e Universidade Estadual da Virgínia, nos Estados Unidos).
Ekirch é o autor do livro At Day’s Close: A History of Nighttime (“No fechamento do dia: uma história das horas noturnas”, em tradução livre).
Uma das razões é que a ampla maioria das casas tinha muito poucas camas para que as pessoas pudessem dormir com privacidade, segundo a professora de história do início do período moderno Sasha Handley, da Universidade de Manchester, no Reino Unido, autora do livro Sleep in Early Modern England (“O sono no início da Inglaterra moderna”, em tradução livre).
“Mesmo entre a classe média e alta quando eles estão viajando, o que é grande parte do tempo, eles são obviamente forçados a frequentar hospedarias, pousadas e tabernas, onde compartilhar a cama é uma prática bastante comum”, explica Handley.
Por volta de 1590, uma pequena cidade no condado de Hertfordshire, na Inglaterra, ganhou fama com a Grande Cama de Ware, comprada pelo hotel local White Hart Inn.
Com 2,7 metros de altura, 3,3 m de largura e 3,4 m de profundidade, este móvel de carvalho formidável inclui elaborados entalhes de leões e sátiros, cobertos com cortinas vermelhas e amarelas quase teatrais. Ele teria sido oferecido para os viajantes compartilharem a noite.
Reza a lenda que uma aposta levou 26 açougueiros e suas esposas – totalizando 52 pessoas – a dormirem juntos na Grande Cama de Ware, em 1689.
Naquela época, compartilhar a cama não tinha a mesma conotação sexual de hoje em dia.
As ilustrações da era medieval frequentemente mostravam os três Reis Magos da Bíblia cristã dormindo juntos – às vezes nus ou até de conchinha. E os especialistas defendem que seria absurdo indicar de que eles estivessem praticando atos carnais.
O sono comunitário era algo muito desejado, que chegava a transcender as habituais barreiras das classes sociais.
Existem diversos relatos históricos de pessoas que se recolhiam todas as noites com seus inferiores ou superiores – mestres e seus aprendizes, auxiliares domésticos e seus empregadores, membros da realeza e seus súditos.
Em 1784, um pastor da igreja escreveu no seu diário que um visitante havia pedido especificamente para dormir ao lado do seu servo.
As disputas noturnas por cobertores e horas de ruídos estranhos do corpo aparentemente ofereciam um certo grau de igualdade que não existia fora do quarto de dormir.
Melhor noite de sono
Um dos registros mais detalhados de sono comunitário pode ser encontrado nos diários de Samuel Pepys (1633-1703). Eles fornecem uma visão de como era a vida na Inglaterra no século 17.
Pepys encadernou as páginas do seu diário com capa dura para a posteridade. Suas páginas podem ser encontradas até hoje nas prateleiras de carvalho da sua biblioteca em Cambridge, no Reino Unido.
Pepys escreveu seus diários por nove anos, a partir de 1660. Ele escrevia quase todos os dias.
Além das minúcias da vida diária e das frequentes descrições obscenas de seus atos com mulheres, os registros diários mostram a frequência com que ele dormia na mesma cama com amigos, colegas e completos estranhos.
Os diários de Samuel Pepys revelam as muitas nuances do compartilhamento de camas, seus sucessos e fracassos.
Pepys conta que, certa vez, na cidade inglesa de Portsmouth, ele dormiu ao lado de um médico com quem trabalhava na Sociedade Real de Londres.
Além de se deitarem juntos “muito bem e com alegria” (presumivelmente conversando até tarde da noite), dormir com o médico teve outra vantagem: ele era particularmente atraente para as pulgas, que acabaram deixando Pepys em paz.
Especula-se também que as pragas não gostavam do sangue de Pepys, o que pode ter ajudado a evitar que o cronista fosse infectado pela peste.
Ekirch explica que companheiros de cama adequados, envoltos em diversas camadas de cobertores e com seus gorros de dormir na cabeça, poderiam trocar histórias madrugada adentro – talvez até acordando para analisar seus sonhos entre o primeiro e o segundo turno de sono, conforme a prática da época.
As horas passadas conversando no escuro da noite ajudavam a fortalecer os laços sociais e ofereciam um espaço privado para trocar segredos.
Handley menciona o exemplo da jovem Sarah Hirst. Filha de alfaiate, ela tinha diversos parceiros favoritos para dormir e desenvolveu grande afeição por eles.
Quando um dos seus parceiros de cama regulares morreu, Hirst escreveu um poema expressando seu pesar.
Mesmo tendo muitas camas à sua disposição, acredita-se que a rainha Elizabeth 1ª (1533-1603) nunca tenha dormido sozinha durante o seu longo reinado de 44 anos.
Todas as noites, ela se recolhia ao quarto com uma de suas criadas de confiança. Com elas, a rainha dividia seu fardo e detalhava a atividade do dia na corte. Essas mulheres também ofereciam proteção à soberana.
No livro The Queen’s Bed: An Intimate History of Elizabeth’s Court (“A cama da rainha: uma história íntima da corte de Elizabeth”, em tradução livre), a historiadora Anna Whitelock explica que são conhecidas intrusões masculinas no quarto real – como ocorreu na juventude da rainha, quando o homem que se casou com sua madrasta irrompia no quarto para dar tapas nas suas nádegas.
Esses incidentes podiam ser particularmente prejudiciais, já que Elizabeth 1ª precisava proteger sua virgindade.
Questão de etiqueta
Em uma era em que compartilhar a cama era algo completamente rotineiro e, muitas vezes, inevitável, era útil seguir uma etiqueta apropriada para garantir que todos tivessem uma noite de sono confortável, evitando a ocorrência de brigas durante a noite.
Esperava-se, por exemplo, que os companheiros de cama evitassem falar excessivamente, respeitassem o espaço pessoal dos demais e procurassem não ficar inquietos. Mas nem sempre tudo saía conforme o planejado.
Na noite de 9 de setembro de 1776, dois pais fundadores dos Estados Unidos – Benjamin Franklin (1706-1790) e John Adams (1735-1826) – travaram um acalorado debate enquanto compartilhavam um quarto e a mesma cama em uma pousada na província de Nova Brunswick, no Canadá.
A discussão começou quando Adams se levantou para fechar a janela.
“‘Oh!’, disse Franklin, ‘não feche a janela. Vamos ficar sufocados.’ Eu respondi [que] tinha medo do ar da noite”, registrou Adams no seu diário.
Franklin começou então um longo e inflamado discurso sobre sua nova teoria dos resfriados, que ele acreditava (corretamente) que não fossem contraídos com o ar fresco, mas pela reciclagem do ar velho em um quarto abafado.
Adams ficou “tão entretido” pela palestra inesperada que rapidamente caiu no sono.
As dificuldades de lidar com as pessoas que desrespeitavam as regras de compartilhamento da cama eram tão grandes que um livro de frases de viagem em francês do início da era moderna fornecia aos viajantes ingleses opções de palavras para recriminar seu companheiro de cama.
Ekirch descobriu esse livro durante suas pesquisas. Entre as traduções sugeridas, estavam: “você só sabe chutar”, “você puxa todas as roupas de cama” e “você é um mau companheiro de cama”.
“Encontrei muitas anedotas engraçadas entre as pessoas que avaliavam a qualidade dos seus companheiros de cama pela sua capacidade de contar boas histórias ou por não roncarem”, conta Handley.
Ela menciona um exemplo de um professor insatisfeito que comparou seu companheiro de cama (um reitor) com um porco, depois que ele foi para a cama embriagado e fez um “barulho hediondo”.
Pepys também teve algumas desavenças com seus companheiros de cama. Ele chegou a expulsar um deles da cama depois que eles “deixaram de se dar bem”, o que o fez reclamar de ter precisado ficar deitado sozinho toda a noite.
Mas havia também algumas convenções para tentar evitar consequências mais sérias.
Na maior parte das circunstâncias, era incomum que homens e mulheres solteiras compartilhassem a cama com alguém de fora da própria família. E, quando isso acontecia, as pessoas tentavam minimizar os riscos.
Ekirch encontrou o relato de um observador sobre o rigoroso acordo sobre posições para dormir em uma residência irlandesa no início do século 19.
A filha mais velha sempre dormia junto à parede, mais distante da porta, seguida pelas suas irmãs em ordem decrescente de idade. Em seguida, vinham a mãe, o pai e os filhos, também em ordem de idade.
Por fim, vinham os estranhos, “seja o comerciante em trânsito, o alfaiate ou o pedinte”. Eles dormiam no final, onde ficavam mais longe das mulheres da família.
Havia também casos em que os trabalhadores domésticos, homens e mulheres, dormiam juntos devido à falta de camas.
“Era uma crença comum e fonte de piadas – pelo menos para quem não tivesse servos envolvidos – que isso, às vezes, resultava em gravidez”, afirma Ekirch.
Ao compartilhar a cama com estranhos, havia o risco sempre presente de assassinato ou violência sexual.
No primeiro capítulo do romance Moby Dick, de 1851, o personagem principal fica alarmado ao descobrir que havia apenas uma cama disponível em uma pousada. Por isso, ele era obrigado a dormir com um misterioso (e talvez perigoso) caçador de baleias que estava na cidade para vender cabeças encolhidas.
E o sono comunitário também envolvia outras questões menos atraentes. Ao lado de todo o romance das conversas confidenciais no escuro e da afeição mútua desenvolvida entre os companheiros de cama ao longo de anos compartilhando seu calor físico, muitas camas compartilhadas eram fonte de pragas e doenças.
Afinal, com tantas pessoas amontoadas sobre o mesmo colchão (que, muitas vezes, oferecia o esconderijo ideal para os insetos), era frequente a infestação de pulgas, piolhos e percevejos.
Às vezes, as pessoas também se perturbavam com os odores repugnantes e insuportáveis das roupas de cama sem trocar, dos penicos usados e dos próprios companheiros de cama que descuidavam da higiene.
Em suas pesquisas, Ekirch encontrou um incidente em que duas mulheres se acusavam mutuamente de serem responsáveis por um odor desagradável, até que elas perceberam que havia um toalete perto da sua cabeceira.
Declínio gradual
Em meados do século 19, o compartilhamento de camas começou a sair de moda, até entre os casais.
Tudo começou com um influente médico americano chamado William Whitty Hall (1810-1876). Ele tinha fortes opiniões sobre muitos assuntos e passou a defender apaixonadamente a ideia de que o sono comunitário não era apenas pouco inteligente – era algo “não natural e degenerativo”.
No seu livro Sleep (“Sono”), publicado em 1861, Hall invocou um argumento similar ao de Franklin durante sua discussão sobre as janelas da hospedaria: que o ar em um quarto ocupado por mais de uma pessoa pode ficar rapidamente poluído.
Ele também defendeu que compartilhar a cama “é degradante, pois diminui a consideração e o respeito mútuo que devem prevalecer na vida social”.
Por isso, para ele, dormir na mesma cama que um companheiro não era apenas falta de higiene e pouco saudável – era imoral. Hall chegou a sugerir que o sono comunitário trazia as pessoas para mais perto dos animais “mais infames” da natureza.
Para ele, os casais mais idosos que sobreviveram aos grandes perigos do compartilhamento da cama, após décadas de casamento, simplesmente tiveram sorte.
A historiadora Hilary Hinds explica no seu livro A Cultural History of Twin Beds (“História cultural das camas gêmeas”, em tradução livre) que isso marcou o início do sono individualista.
As famílias começaram a abandonar a antiga prática de sono comunitário – e, por quase um século, muitos casais também dormiram separados, em camas gêmeas.
Esta prática se manteve até os anos 1950, quando as pessoas começaram a considerar as camas separadas como um sinal de dificuldades no casamento. Mas o sono social nunca voltou a ter sua antiga popularidade em outros contextos.
Estaríamos nós perdendo uma oportunidade?
Será que os políticos modernos deveriam trocar o aperto de mãos da fotografia por uma simbólica noite de sono, como fizeram Ricardo Coração de Leão e Filipe 2°? Ou os turistas deveriam aproveitar o sono compartilhado com completos estranhos, como faziam os viajantes históricos?
“Acho que as pessoas costumam dormir muito melhor sozinhas por todo tipo de motivos”, opina Handley. “Depois que ultrapassam aquela espécie de conforto psicológico que as camas compartilhadas podem oferecer, a maioria das pessoas tem benefícios com o ambiente de sono que elas podem modelar de acordo com suas próprias necessidades pessoais.”
Fonte: BBC
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