- Giulia Granchi
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Um morador de rua que chega a uma unidade básica de saúde pública pode ter dificuldade de conseguir atendimento por falta de documentação ou até por questões referentes às condições relacionadas à falta de moradia.
“Às vezes o exame de sangue só é feito às 7 da manhã naquela unidade, e essa pessoa não consegue chegar. Ou, se espera ali, pode ser retirado por agentes da prefeitura por não poder ficar em determinada calçada ou banco. Também há a questão de vestimenta, alguns são impedidos de entrar sem camisa, por exemplo, e até a crença da própria pessoa em achar que ela não pode entrar ali”, diz Daniel de Souza, articulador nacional dos consultórios na rua, e parte do programa desde seu início, em 2012.
Foi com a intenção de fazer uma ponte entre agentes de saúde, assistentes sociais e outros serviços públicos que surgiu o Consultório na Rua, uma estratégia criada pela Política Nacional de Atenção Primária para ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde.
O serviço é composto por equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde de acordo com as necessidades dessa população.
Em cinco anos, no período entre 2015 e 2020, estima-se que a população de brasileiros em situação de rua mais do que dobrou, passando de cerca de 102 mil para 222 mil, segundo estimativa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Apesar disso, dados de um estudo feito pelo Ieps e pelo Instituto Cactus, ao qual a BBC News Brasil teve acesso exclusivo, indicam que houve uma queda no investimento destinado aos consultórios na rua.
Em 2019, o investimento foi de R$ 580.470. Pouco depois, em 2021, o investimento do Ministério da Saúde na área caiu para R$ 490.436, uma redução de cerca de R$ 90 mil.
A BBC News Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre o investimento reduzido, mas não recebeu resposta até a publicação desta matéria.
“O programa é extremante importante e necessário para o atendimento da população de rua, e esse desmonte de investimentos, que também vemos no SUS (Sistema Único de Saúde) e na Farmácia Popular, tende a deixar esse grupo em uma situação de vulnerabilidade ainda maior”, analisa Nilza Rogeria Nunes, professora da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e pesquisadora na área de políticas sociais.
Na avaliação de Dayana Rosa, pesquisadora do Ieps, o número do contingente deve ser maior do que o notificado.
“Sabemos que não há metodologias capazes de estimar com precisão quantas são as pessoas sem moradia. O dinheiro disponível para essa política pública não acompanha a necessidade de quem está na rua.”
Nilza Nunes acrescenta, ainda, que os censos deixam de fora pessoas em situação de pobreza como catadores de recicláveis que passam a semana dormindo nas ruas, mas periodicamente voltam às suas casas longe das cidades onde ficam na maior parte do tempo.
As políticas públicas focadas na população de rua ainda são recentes. Os avanços mais significativos começaram em 2009, com a instituição da Política Nacional para a População em Situação de Rua e do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento.
No âmbito da saúde, o Plano Operativo de Saúde para a população em situação de rua, implementado no mesmo ano, e a criação do Programa Consultório na Rua, de 2012, são considerados os avanços mais relevantes.
Como funciona o Consultório na Rua
Há cerca de 180 consultórios de rua no Brasil. O trabalho das equipes é percorrer as cidades, sobretudo os locais conhecidos por maiores aglomerações de pessoas desabrigadas, e oferecer atendimento.
O projeto faz parte do atendimento do SUS, financiado pelo Ministério da Saúde. Em alguns municípios, os consultórios têm parceria com instituições sem fins lucrativos, como é o caso de São Paulo, que fez parceira com o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto.
Há três tipos de composições diferentes para as equipes, que podem ser formada com quatro a sete profissionais a depender do censo da população de rua naquela determinada cidade ou região.
Entre os agentes, podem estar enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, agentes sociais, técnicos ou auxiliares de enfermagem, médicos, técnicos em saúde bucal, cirurgiões dentistas, profissionais de educação física e profissionais com formação em arte e educação.
“O trabalho é ir até essas pessoas e perguntar se estão precisando de alguma coisa, se têm queixas relacionadas à saúde. Se o paciente responde que tem tossido, por exemplo, perguntamos há quanto tempo, se tem experimentado outros sintomas… Vamos ouvindo e tentamos solucionar o problema. Também fazemos curativos, aplicamos vacinas, fazemos atendimentos psicológicos…”, diz o articulador nacional dos consultórios de rua, Daniel de Souza.
“Para chegar até essas pessoas, toda equipe tem, ou pelo menos deveria ter, um carro ou uma van com os insumos necessários, já que o atendimento é in loco. Algumas equipes têm um ‘quartel general’ em alguma unidade de saúde, mas ao abordar um paciente que precisa de um atendimento mais complexo, podemos levá-lo para qualquer unidade”, completa.
Em vídeo veiculado pela Fiocruz no YouTube, uma idosa no Rio de Janeiro aparece recebendo atendimento odontológico.
“Eles que me acharam, eu tive essa surpresa. Eu ficava sentada lá, amuada. Eles perguntaram se eu queria ajuda, disseram que iam cuidar de mim. Eu não tinha água para escovar os dentes, não tinha recursos.”
Busca pelo cuidado integral
O articulador Daniel de Souza reforça que, para atender a uma população tão ampla, com características diferentes, é necessário pensar de uma forma ampla e que abrace a questão da cidadania além das necessidades urgentes da saúde.
“Temos parcerias com a Secretaria de Desenvolvimento Social e com a Defensoria Pública. Essa galera às vezes tem desejo de sair da rua, mas não querem ir para qualquer abrigo, não tem documentos, tem baixa escolaridade e pouca ou nenhuma experiência profissional. Com a parceria podemos oferecer soluções mais completas para essas pessoas”, aponta.
Em alguns municípios, como é o caso de São Paulo, moradores de rua que tenham o ensino fundamental completo (ou consigam completar com a ajuda do próprio programa), podem ser empregados na própria equipe do consultório da rua.
É o caso, por exemplo, de Samira Alves Matos, transexual que viveu um período difícil nas ruas e teve a oportunidade de entrar na equipe como agente de saúde. Com a ajuda de uma ONG focada na população LGBTQIA , se formou na faculdade e hoje é assistente social.
“Hoje tenho a oportunidade de atender pessoas para quem conto minha história, e posso inspirá-las que é possível conseguir condições melhores”, diz Samira.
As dificuldades do atendimento
Um dos empecilhos do atendimento à população de rua, especialmente para tratamentos mais longos, como para tuberculose (de duração de cerca de seis meses), ou até para doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e para pessoas que convivem com o vírus HIV, é o fato de que muitos são itinerantes, e portanto, é difícil para os agentes de saúde encontrá-los.
“Mesmo que consigam os remédios, podem pegar chuva, serem roubados, e não conseguir no mês seguinte se perderem os documentos, por exemplo”, exemplifica a pesquisadora Nilza Nunes.
Em relação à falta de investimento, Daniel afirma que São Paulo e Rio de Janeiro sentiram menos impactos sobretudo por conta de um dinheiro destinado especificamente durante o período da pandemia da covid-19. “Mas equipes em outras cidades perderam trabalhadores e insumos”, diz.
“Já existem políticas nacionais voltadas à população de rua desde 2009. A gente precisa mostrar que há pessoas comprometidas com essa luta, e o que falta realmente é investimento. Teríamos condições de atuar de forma muito mais humanizada e ampla se isso virasse uma pauta política, mas há falta de interesse politico, e isso inclusive reverbera no olhar que a sociedade tem: quem desconhece, criminaliza”, conclui Nilza.
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