Enquanto o sudoeste dos Estados Unidos enfrenta a pior seca em mais de mil anos, uma cidade construída às margens do leito seco de um rio pode ter a solução para a coleta de água no deserto.
Em frente à casa térrea de adobe de Val Little, perto do centro de Tucson, no sul do Arizona (Estados Unidos), uma placa pequena, mas orgulhosa, destaca-se no gramado: “Esta casa coleta a chuva”.
A cada dois meses, Little, com 68 anos de idade, sobe uma pequena escada para limpar as folhas das calhas da sua casa.
“Elas sempre entopem o pequeno orifício por onde a água passa”, explica ela, referindo-se à abertura entre as calhas e o cano de descida.
O cano de descida conduz a água da chuva que cai sobre o telhado até uma cisterna plástica de 4,9 mil litros no seu quintal. Ela tem duas dessas cisternas e, no final de setembro, ambas estavam quase cheias, alimentadas pelas chuvas abundantes de verão.
“Nunca vi meus tanques com menos da metade da capacidade”, afirma Little, que borrifa sobre sua horta a água coletada da chuva, que também é usada para cozinhar, beber e irrigar suas árvores de sombra e frutíferas fora da estação das chuvas.
Little não é a única. Ao longo dos últimos 15 anos, milhares de moradores da região de Tucson – uma cidade desértica, árida na maior parte do tempo, onde cerca de 30 cm de chuva caem em média por ano – começaram a coletar água da chuva para atender parte das suas necessidades domésticas. Eles adotaram os esforços da cidade para promover a prática, como parte de um conjunto de iniciativas de conservação de água.
Enquanto cada vez mais cidades e municípios no oeste dos Estados Unidos e em outras partes do mundo enfrentam rápida redução das fontes de água doce, especialistas afirmam que a coleta da água da chuva em Tucson pode trazer lições valiosas sobre como uma cidade pode equilibrar seu fornecimento de água e aumentar sua resistência.
“Tucson é realmente um exemplo bem sucedido de como a coleta de água da chuva pode ser usada para reforçar as fontes de água existentes e aliviar a pressão sobre o sistema sem construir nova infraestrutura”, afirma Paula Randolph, diretora associada do Lincoln Institute of Land Policy’s Babbitt Center for Land and Water Policy. “Há muito o que aprender aqui.”
As fontes estão secando
Da mesma forma que em muitas outras cidades do oeste dos Estados Unidos, o fornecimento municipal de água de Tucson vem de duas fontes.
A primeira é a água de superfície bombeada do rio Colorado por meio do Projeto do Arizona Central (CAP, na sigla em inglês), que é um canal de 540 km e um sistema de tubulações gigantesco que transporta água para o centro e o sul do Arizona.
A segunda é a água do lençol freático, bombeada do aquífero subterrâneo local. Mas a água do CAP é, de longe, a maior fonte de abastecimento e representa 82% do fornecimento de água da cidade.
O rio Colorado é uma artéria vital que abastece 40 milhões de pessoas e 1,6 milhão de hectares de terras agrícolas em sete Estados do sudoeste americano, mais dois Estados do norte do México. Mas seus recursos vêm sofrendo pressão cada vez maior.
Décadas de bombeamento excessivo e a pior seca dos últimos 1,2 mil anos provocaram severo esgotamento do rio e dos reservatórios abastecidos por ele. No ano passado, pela primeira vez na história, o governo dos Estados Unidos declarou escassez das águas do rio, o que causou restrições generalizadas em toda a região.
Espera-se que a situação fique ainda pior. Em um estudo de 2021, cientistas do Serviço Geológico dos Estados Unidos concluíram que o rio pode perder cerca de um terço do seu fluxo nos próximos 30 anos. A previsão é que as mudanças climáticas reduzam as geleiras nas suas nascentes e tragam temperaturas mais altas, que reduzirão ainda mais o fluxo de água.
Uma seca no verão de 1974 fez com que Tucson tivesse uma amostra sombria do que pode ser a escassez de água.
Certa tarde, durante o pico da demanda, a cidade – que, até então, dependia totalmente do lençol freático – ficou com tão pouca água que o serviço de abastecimento não conseguiu garantir o atendimento doméstico, nem oferecer proteção adequada contra incêndios, para todos os clientes nas partes mais altas da cidade.
Impelida a agir, a cidade comprometeu-se com a conservação, dando início a um programa que, entre outras medidas, levou à criação de leis exigindo que as novas construções incluíssem soluções paisagísticas que necessitassem de pouca ou nenhuma irrigação (conhecidas como xeropaisagismo) e de um sistema escalonado de cobrança de água, com preços mais altos para usuários maiores. Ambas as medidas seguem em vigor até hoje.
Little lembra-se daquele verão e a da ética de conservação que se seguiu.
“Aquela crise trouxe toda uma nova consciência sobre a água na comunidade”, afirma ela. “Depois daquilo, a maioria das pessoas mudou seus comportamentos e nunca retomou seus velhos hábitos.”
Além de limitar a demanda, permaneceu o desafio de ampliar o fornecimento de outras fontes. Uma intervenção fundamental – a coleta da água da chuva – levaria cerca de três décadas para instalar-se na região de Tucson. Grande parte dessa mudança deve-se a uma pessoa: o entusiasta da permacultura Brad Lancaster.
Lancaster começou a cultivar seu quintal em meados de 1990. Ele ficou frustrado com o que chama de “políticas de desperdício no gerenciamento de água da cidade” e viajou para o sul da África em busca de soluções alternativas.
Ali, ele teve a oportunidade de conhecer o agricultor Zephaniah Phiri Maseko, que havia transformado o terreno estéril da família no Zimbábue em um verdadeiro oásis, apenas coletando a água da chuva com um sistema de bacias, valas e represas de pedra.
“Eu não conseguia acreditar no que ele fez com tão poucos recursos”, relembra Lancaster. “Phiri me mostrou o que apenas uma pessoa pode fazer.”
De volta para casa, Lancaster decidiu colocar as lições de Phiri em prática. Usando sua propriedade como local piloto, ele cavou canteiros de solo na beira da estrada, plantou arbustos e árvores nativas e aterrou o local em volta das plantas para drenar a água da chuva.
À medida que as árvores cresciam, ele foi além e fez pequenos cortes no meio-fio para dirigir a água da chuva para o seu jardim na calçada.
Lancaster sabia que essa prática era ilegal – o governo municipal havia proibido cortes no meio-fio devido a preocupações com os direitos à água dos demais usuários – mas seus primeiros cortes funcionaram tão bem que ele começou a fazer mais.
A reação das plantas despertou o interesse da maioria dos vizinhos, até que Lancaster decidiu pedir à prefeitura que legalizasse a prática.
Inicialmente, as autoridades locais relutaram a aceitar a ideia. “Eles achavam que as ruas foram projetadas para drenar água e nada os convencia do contrário”, relembra Lancaster.
Mas, em 2007, depois de três anos de convencimento – e “enormes trabalhos burocráticos”, como ele descreve – a cidade acabou legalizando o processo, dando início a uma mudança de paradigma mais ampla que transformou radicalmente a forma como Tucson lida com a água da chuva.
“A filosofia aqui, há décadas, era tratar a água da chuva como resíduo”, afirma Rodney Glassman, ex-vereador de Tucson que ajudou a comandar os esforços para legalizar os cortes no meio-fio das ruas. “O exemplo de Lancaster nos fez perceber que a água da chuva é, na verdade, algo que podemos usar e que pode trazer benefícios.”
Regando Tucson
Após a campanha de Lancaster, Tucson criou diversas medidas para aproveitar totalmente a água da chuva para o abastecimento.
Em 2008, a cidade criou o primeiro decreto do país exigindo que novos imóveis comerciais irrigassem metade dos seus jardins usando água de chuva. E, em 2013, ela adotou uma Política de Ruas Verdes, exigindo que todos os projetos viários com financiamento público coletassem os primeiros 1,3 cm de chuva durante uma tempestade.
Com uma iniciativa mais recente, a Infraestrutura Verde de Água da Chuva de 2020, Tucson começou a cobrar um pequeno valor nas contas de água dos moradores para levantar cerca de US$ 3 milhões (cerca de R$ 16 milhões) por ano para sustentar projetos públicos de coleta de água da chuva, como a iniciativa de um milhão de árvores da cidade.
Candice Rupprecht, gerente de conservação de água da Tucson Water, a empresa de abastecimento de água da cidade, afirma que, tomadas em conjunto, essas medidas significam que “sempre que construirmos uma rua, um estacionamento ou destruirmos e substituirmos infraestrutura pública e privada, fazemos isso de forma que trabalhe com a natureza para gerenciar a água da chuva o mais perto possível da fonte”.
Este tipo de abordagem, segundo ela, traz benefícios que vão além da conservação da água, incluindo a redução da erosão do solo, dos riscos de enchentes nas ruas e a criação de áreas verdes que resfriam a superfície do solo e ajudam a reduzir o efeito de ilha de calor urbano, cujas consequências são mais fortes nos bairros de baixa renda e de população majoritariamente de origem latina.
Em 2012, a Tucson Water começou um ambicioso programa de incentivos que oferece descontos de até US$ 2 mil (cerca de R$ 10,6 mil) aos proprietários de casas pela compra de equipamento de coleta de água da chuva, como tanques, ou a adoção de projetos paisagísticos que coletem a água da chuva para uso interno e externo. Mais de 2,6 mil residências já adotaram o programa, segundo a empresa.
Nos primeiros anos, apesar do sucesso da adesão ao programa, a Tucson Water percebeu que as residências participantes não estavam conservando água em maior quantidade do que um grupo controle de proprietários que não recebiam descontos.
Na verdade, alguns moradores com direito ao desconto até aumentaram seu consumo geral de água, por terem acrescentado novo paisagismo que exigia rega tradicional para se estabelecer.
Mas, à medida que os moradores e as autoridades municipais aprendiam com suas experiências e a vegetação criava raízes, o quadro mudou.
Segundo o Relatório de Conservação de Água de Tucson de 2021, o programa de descontos economizou 158 milhões de litros de água potável, somente no último ano.
Até o momento, a iniciativa resultou na conservação de mais de 15 bilhões de litros de água – o equivalente à quantidade de água que flui na foz do rio Hudson, em Nova York, por cerca de sete horas – ou quase três horas de vazão média das Cataratas do Iguaçu.
Com cerca de um milhão de moradores na área metropolitana de Tucson, Rupprecht sabe que esses números são uma gota no oceano. Mas ela afirma que eles indicam as possibilidades que podem surgir com o aumento ainda maior da adoção dessa prática e da educação.
Brad Lancaster hoje tem uma empresa de consultoria em permacultura que assessora Tucson e mantém contatos em todo o mundo. E ele concorda. Em um ano típico, cai muito mais chuva em Tucson do que o consumo doméstico de água da rede pública de todos os seus moradores.
“É maluquice gastar ainda tanto dinheiro para trazer água de qualidade inferior a 480 km de distância quando temos essa enorme quantidade de água chegando de graça do céu e que podemos usar como fonte principal”, afirma ele.
Já Paula Randolph não acredita que a coleta de água da chuva possa fornecer água na mesma escala de um sistema de reservatórios. Ela também afirma que essa opção não é adequada para todas as cidades que sofrem com a falta d’água.
Mas, à medida que o clima fica mais quente e a demanda cresce, ela acredita que coletar a água da chuva será uma prática mais frequente, como parte da solução para manter o abastecimento de água no futuro.
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