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“Deveria ter sido uma rápida viagem ao Irã. Eu ficaria no país por duas semanas e meia e voltaria para casa para continuar com a minha vida”, recorda Kylie Moore-Gilbert.
A acadêmica australiana-britânica, especializada em ciências políticas do Oriente Médio, havia sido convidada para uma conferência na cidade iraniana de Qom, a cerca de 150 km da capital do país, Teerã.
Moore-Gilbert se especializou nos Estados árabes do Golfo Pérsico e falava árabe e hebraico. Ela vinha estudando o Irã, mas não falava farsi, o idioma do país.
Tudo ia bem até um pouco antes de voltar. Ela havia feito amizade com o recepcionista do hotel, que a procurou e contou que “alguns homens muito maus” haviam vindo buscá-la.
“É claro que fiquei preocupada”, ela conta, “mas meu voo sairia no dia seguinte, achei que ficaria bem”.
Mas, no controle de passaportes no aeroporto, alguns homens vestidos de preto se aproximaram dela. Moore-Gilbert não sabia que eles eram da Guarda Revolucionária Iraniana.
Depois de mantê-la em uma sala de interrogatório por cerca de oito horas, eles a levaram para um apartamento. Ali, eles a interrogaram durante horas enquanto a filmavam.
Moore-Gilbert foi acusada de espionagem, o que ela sempre negou e nunca foi provado.
No dia seguinte, “eles me levaram para um hotel com uma equipe de vigilância e fiquei detida por uma semana. Eles me interrogavam diariamente”.
Em circunstâncias como aquela, o pior sempre vem à mente. Mas Moore-Gilbert conta que “naquele momento, eles ainda não haviam decidido o que fazer comigo, de forma que me tratavam comparativamente melhor do que quando me colocaram na prisão”.
“Havia dois grupos distintos”, relembra ela. “Um deles queria me recrutar para coletar informações no exterior. Eles mencionaram isso desde a primeira noite da minha prisão e durante quase todo o tempo que passei no Irã.”
“Depois daquela semana, eles me levaram para a prisão. Eles me colocaram na solitária e começaram a se comportar de forma muito mais surpreendente.”
Isolamento e incerteza
A prisão tem uma ala apelidada de “Universidade Evin”, devido ao grande número de intelectuais que recebe. Ela foi criticada por grupos ocidentais de defesa dos direitos humanos e incluída na lista negra do governo americano em 2018, por “graves abusos dos direitos humanos”.
A acadêmica “sequer sabia que estava em uma prisão”. “Mas, verificando a mudança de tratamento, entendi que estava em sérios problemas.”
Moore-Gilbert foi mantida na solitária.
“O isolamento é uma tortura psicológica”, ela conta. “Foi idealizado para destruir você para o interrogatório.”
“Havia muitas privações físicas, sensoriais. Eu estava frequentemente mascarada, sem poder ver. Quando me tiravam da cela, eles me levavam por um labirinto de corredores até o bloco de interrogatórios, com os olhos vendados.”
“Ali, eu ouvia muitos homens falando comigo agressivamente em farsi. Eu não entendia, mas receava que eles pudessem me agredir sexualmente. Mas, naquela fase, eles não me causaram danos físicos, embora tenham posteriormente me batido.”
Ela calcula que aquela fase tenha se estendido por quatro meses.
“Você fica em uma cela de 2 x 2 metros, sem luz natural e não tem como saber as horas”, relembra Moore-Gilbert.
“Você não sabe se será interrogada naquele dia ou não. E, se for, quando e por quanto tempo. Nada é previsível e esta incerteza alimenta sua agitação mental.”
Kylie Moore-Gilbert passou grande parte da sua condenação em regime de isolamento.
“O período mais longo foi de sete meses. Em certo sentido, é pior do que a tortura física, ela devora você por dentro.”
“Mas o primeiro mês foi o pior: a solidão extrema.”
‘Não estava sozinha!’
Para sobreviver àquele pesadelo, Moore-Gilbert compreendeu que não tinha outra opção a não ser controlar a mente.
“Você precisa viver sua vida segundo a segundo, minuto a minuto, concentrada no presente”, ela conta.
Ela precisou colocar de lado todos os lamentos e conjecturas sobre o que a teria levado até ali, bem como toda a ansiedade sobre o que eles poderiam fazer com ela no futuro.
Ela passava o tempo fazendo “exercícios, jogos e truques mentais para me manter saudável, contando ou memorizando coisas, imaginando padrões nos azulejos da parede”.
Moore-Gilbert também se imaginava caminhando por lugares conhecidos, mas evitando recordações emotivas, para não se entristecer.
“A raiva provavelmente foi a emoção mais difícil de controlar, porque ela se renovava constantemente”, relembra ela. “Cada interação com os guardas ou com meus interrogadores a provocava.”
Em meio àquela solidão, surgiu o impensável: um canal ilícito de comunicação com algumas detentas nas outras celas de isolamento. Duas delas ouviram Moore-Gilbert falando com os guardas no corredor.
“Eles ouviram esta mulher estrangeira em apuros”, relembra ela. “Elas falavam inglês, queriam me oferecer apoio e se arriscaram.”
Moore-Gilbert conta que havia um varanda aonde eles a levavam, uma a uma, para passar meia hora pela manhã e meia hora à tarde. Tudo era controlado com muito rigor por dois guardas, mas era possível ouvir suas vozes, o que lhes permitia tentar adivinhar quando estavam menos expostas às câmeras.
“Elas observaram tudo isso e organizaram algumas folhas para chamar minha atenção para um vaso, onde haviam deixado um saco plástico com nozes e frutas secas”, relembra ela.
“Quando vi aquilo, foi extraordinário. Sabendo que estava sendo monitorada, eu agarrei o saco e o escondi. E, ao voltar à minha cela, de costas para a câmera, abri o pequeno saco.”
“Fui um verdadeiro prazer. Elas haviam me presenteado com algo que também era muito precioso para elas.”
“Havia também uma bola feita com um pedaço de papel higiênico, dizendo: ‘Querida Kylie, somos suas amigas. Você não está sozinha’.”
“Elas haviam escrito com o canto de um pedaço de chocolate que haviam conseguido de alguma forma”, ela conta. “Elas tinham uma caneta escondida, mas receavam que a mensagem fosse interceptada ou que eu não fosse digna de confiança.”
“Senti uma emoção incrível. Sempre que podia, voltava a ler a mensagem. Elas sabiam meu nome, eram minhas amigas, eu não estava sozinha!”
Recados e vozes
Aquele foi o primeiro de diversos recados, já que Moore-Gilbert conseguiu roubar uma caneta e responder para elas. E também começou a se comunicar com mulheres de outras celas.
“Havia diversas redes de mensagens, de forma que muitos recados ficavam por ali, escondidos em muitos lugares diferentes”, relembra ela.
“Depois de cerca de seis meses, inventei um método muito seguro: as calças viajantes.”
“O uniforme da prisão incluía umas calças folgadas de calicô rosa brilhante, que podíamos lavar manualmente em uma lavanderia comum.”
“Uma das prisioneiras saiu e deixou suas calças ali, de forma que as peguei e abri a costura de uma das pernas, para poder colocar uma mensagem. Se molhássemos as calças, com exceção daquela pequena região da perna, parecia que ela teria sido lavada e pendurada para secar.”
“E, quando todas entenderam que aquelas eram as calças viajantes que serviam para passar recados, começamos a usá-las”, descreve ela. “Alguém depositava um recado, a cela seguinte recolhia as calças como se fossem suas… assim, a cada dois ou três dias, recebíamos cartas novas.”
Mas havia outra forma de comunicação anterior, que permitiu a Moore-Gilbert ouvir as vozes de amigas que nunca havia encontrado antes.
“Havia uma rede de grades de ventilação de ar na unidade onde fiquei em isolamento”, descreve Moore-Gilbert. “Era perigoso falar por aqueles respiradouros porque os guardas, se estivessem em uma determinada parte do edifício, iriam nos ouvir.”
“Mas, às vezes, conseguíamos ouvir uma televisão, de forma que deduzíamos qual turno de guarda era mais seguro para falarmos.”
“Nós nos comunicávamos batendo na parede e, quando as outras respondiam, eu ficava sobre o vaso sanitário para conversar por cinco minutos.”
Naqueles curtos momentos, Moore-Gilbert conseguiu começar a entender coisas que ela não sabia.
“Ouvir vozes amistosas em inglês era maravilhoso”, relembra ela. “E elas podiam me dizer muito mais verbalmente do que em um pequeno pedaço de papel higiênico.”
“Pude receber muitas informações sobre o que me aconteceria e sobre coisas como a diplomacia dos reféns, o fato de que o Irã toma para si os estrangeiros e os utiliza como moeda de troca para obter algum tipo de concessão do seu país de origem.”
“Elas me diziam: ‘Não faça confissões falsas. Seja como for, no final, eles irão trocar você por algo, de forma que não se preocupe.”
“Eles podem dar a você qualquer sentença, mas não irão cumprir. Vão tentar se aproveitar de você para conseguir algo da Austrália ou do Reino Unido. Um desses países irá dar algo para o Irã em troca de você’.”
“Aquelas mulheres me deram esperança”, conta Moore-Gilbert.
Elas tinham razão
Com isso, Kylie Moore-Gilbert passou mais de dois anos rejeitando, em centenas de horas de interrogatórios, as diversas acusações que eram sucessivamente apresentadas: de ser agente de órgãos de inteligência como o Mossad israelense, do MI6 britânico ou espiã da Austrália.
Ela não fez nenhuma confissão e se negou a aceitar repetidas propostas de espionar para o Irã.
Mesmo assim, ela foi julgada por Abolqasem Salavati, conhecido como o “juiz da forca”, pelo número de sentenças de morte que ele impunha. E, inevitavelmente, foi declarada culpada e condenada a 10 anos de prisão.
A esperança oferecida pelas suas amigas ressurgiu quando ela compreendeu que, de fato, era uma refém esperando para ser trocada. Mas, um ano depois da sua detenção, quase ninguém sabia sobre a difícil situação de Kylie Moore-Gilbert.
O governo australiano disse à sua família que não levasse a situação a público. Eles insistiam que a estratégia mais eficaz seria a “diplomacia silenciosa”.
Mas algumas detentas que saíram do confinamento deixaram vazar a notícia de que havia uma australiana em Evin. Com isso, a informação deixou de ser segredo.
Posteriormente, cartas que a própria Moore-Gilbert conseguiu enviar secretamente chegaram às mãos da imprensa britânica, até que começou uma campanha pública para sua libertação.
A movimentação fez com que suas condições na prisão melhorassem, até que finalmente aconteceu aquilo que suas amigas haviam antecipado. Sua liberdade foi obtida com uma complicada troca de prisioneiros, que teve a participação de quatro países.
Três iranianos, condenados por uma tentativa de atentado a bomba contra a Embaixada de Israel em Bangkok, na Tailândia, foram libertados de uma prisão local.
A notícia da troca de prisioneiros foi publicada pela primeira vez no site do Clube de Jovens Jornalistas, afiliado à TV estatal do Irã.
Segundo o site, “um empresário e dois cidadãos iranianos que estavam detidos no exterior por acusações infundadas foram trocados por uma espiã com dupla nacionalidade chamada Kylie Moore-Gilbert, que trabalhava para o regime sionista”.
Moore-Gilbert foi libertada em novembro de 2020, durante a pandemia de covid-19. Por isso, assim que aterrissou na Austrália, foi levada para um hotel, para passar a quarentena. E, curiosamente, as semanas de solidão em solo australiano acabaram sendo uma bênção para ela.
“Eu havia ficado em isolamento por sete semanas muito difíceis e dolorosas antes da minha libertação”, relembra ela. “Por isso, aquilo me permitiu voltar lentamente à realidade, interagindo pouco a pouco com as pessoas.”
“Embora estivesse afastada da maior parte da humanidade, eu tinha acesso à internet e ao telefone, de forma que ligava para as pessoas quando tinha vontade de falar.”
“Se tivessem me lançado imediatamente de volta ao mundo, teria sido muito difícil. Realmente, aquilo foi positivo.”
Fonte: BBC
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