- Author, Evanildo da Silveira
- Role, De Vera Cruz (RS) para a BBC News Brasil
Uma árvore com até 30 metros de altura e 60 centímetros de diâmetro, que vive escondida e espalhada pela Floresta Amazônica.
Ficam distantes alguns quilômetros umas das outras, mas sustentaram por mais de 40 anos, no final do século 19 e início do 20, a riqueza de cidades como Manaus e Belém.
Trata-se da Hevea brasiliensis, planta nativa da Amazônia, da família das euforbiáceas, mais conhecida como seringueira, da qual se extrai o látex — uma seiva leitosa — com o qual se faz a borracha.
Esse produto foi responsável pela chamada “Belle Époque cabocla”, quando as duas capitais do norte do Brasil tinham características que não deviam nada às das principais cidades europeias na época: ruas largas, arborizadas e calçadas, sistemas de abastecimento d’água, luz elétrica, telefone, teatros, palácios, jornais impressos, exposições e espetáculos de música lírica e outros requintes que só as cidades modernas de então disponibilizavam.
Toda essa riqueza era fruto do que ficou registrado na historiografia nacional como Ciclo da Borracha, período que se estendeu da década de 1860 até 1912, no qual o Brasil era seu maior produtor e exportador, suprindo 90% das necessidades do mercado mundial.
“A exploração da borracha estava diretamente atrelada ao grande acontecimento mundial, que foi o surgimento da Revolução Industrial na Europa, mais especificamente na Inglaterra”, explica o pesquisador José Silva Carmelo da Silva, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas.
Isso ocorreu em 1760, mas a revolução se aprofundou ao longo dos séculos seguintes. Esse grande evento tornou possível o desenvolvimento de vários setores industriais, que se propagaram e se intensificaram ao longo do tempo, entre eles a indústria automobilística, grande consumidora de borracha.
“Sem ele não se teria o boom da borracha numa escala industrial”, diz Silva.
Por causa de suas características, entre as quais estão elasticidade, plasticidade e resistência ao desgaste, além de ser isolante elétrico e impermeável a líquidos e gases, a borracha natural é a única matéria-prima que pode ser usada para fabricar mais de 40 mil produtos.
Desenvolvimento do mercado
Mas para se chegar a esse ponto, primeiro foi necessário driblar algumas deficiências.
Ao tentar usá-la para fabricar os primeiros produtos, como peças de vestuário ou calçados, se percebeu que suas características mudavam conforme a temperatura.
No calor, ela ficava mole e pegajosa, e no frio, dura e inflexível, quebradiça ou se esfarelava.
Por isso, sua primeira aplicação prática foi como um humilde apagador de escrita a lápis, inventado em 1752 pelo físico e químico português João Jacinto de Magalhães (1722-1790), descendente do célebre navegador Fernão de Magalhães (1480-1521).
Mas tudo mudou em 1839, quando o engenheiro e cientista americano Charles Goodyear (1800-1860) descobriu por acaso o processo de vulcanização e depois o aperfeiçoou, o que acabou com os problemas existentes.
Várias novas tecnologias, produtos e aplicações começaram a surgir a partir de então, como o pneu de automóvel, inventado e patenteado em 1845 pelos irmãos Édouard (1859-1940) e André Jules Michelin (1853-1931), que em 1888 fundaram a Manufatura Francesa de Pneus Michelin, que existe até hoje.
Em 1847, o inglês Robert William Thomson (1822-1873) criou a câmara de ar para colocar dentro do pneu, que passou a ser então um pneumático, com maior flexibilidade e conforto e um menor nível de ruído. Mais tarde, em 1888, John Boyd Dunlop (1840-1921) inventou o pneumático para bicicletas.
Boom econômico
Foi depois dessas invenções e do consequente aumento da procura por borracha que o Brasil passou a fazer parte dessa história e Manaus e Belém começaram a se transformar em duas das mais importantes cidades da América Latina.
“Antes do início do Ciclo da Borracha, a Amazônia era mera fornecedora de especiarias com a exploração das chamadas drogas do sertão: canela, cravo, anil, cacau, raízes, sementes oleaginosas, salsaparrilha e outros (produtos naturais da floresta) de grande procura no mercado europeu”, diz Silva.
O Brasil atingiu o ápice da sua produção de borracha em 1912. Segundo o historiador Daniel da Silva Klein, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a borracha chegou a figurar como o segundo produto mais importante da agricultura brasileira, respondendo por pouco mais de 23% do total das vendas externas.
“Obviamente que esse posto figurava muito abaixo do café, responsável por 64% do valor das vendas externas do país”, conta. Em toneladas, no entanto, o volume produzido de borracha era 3,5 vezes maior que o de café: 42 mil ante 12 mil.
Para o engenheiro de pesca Thiago Marinho Pereira, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOP), hoje é impossível visitar Manaus e Belém, as duas maiores metrópoles da Amazônia, sem deixar de perceber construções e resquícios de uma arquitetura neoclássica, de um período conhecido mundialmente como Belle Époque.
“Apesar de ser considerada uma época estritamente europeia, coincidiu com o apogeu econômico, de ambas as cidades, provocado pela hegemonia mundial na produção da borracha, catapultada pelo descobrimento dos processos de vulcanização e pela produção de pneumáticos com câmara de ar”, explica.
De acordo com ele, é nesse contexto que Manaus e Belém, até então cidades irrelevantes no cenário geopolítico e econômico mundiais, são jogadas em um processo abrupto e fugaz de desenvolvimento econômico.
“Abrupto, pois foi algo que deu à região amazônica, pela primeira e única vez na história, a hegemonia sobre algo de relevância mundial e de forma muito rápida”, diz.
“Em um curto espaço de tempo de 20 anos (1890-1910), a renda per capita subiu 800% e a população aumentou em 400%.”
Segundo Klein, em número absolutos, a população de Manaus passou de pouco mais de 29 mil pessoas em 1872 para mais de 75 mil em 1920.
“Belém, por sua vez, nesse mesmo período, saltou de quase 62 mil para cerca de 236 mil habitantes”, conta.
“Lembrando que essas cidades ficavam fora do eixo Rio-São Paulo e tiveram altas taxas de crescimento populacional.”
Praticamente todo esse aumento populacional se deve à chegada de nordestinos, principalmente do Ceará, para trabalhar nos seringais.
O pesquisador Reinaldo Corrêa Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), diz que durante o Ciclo da Borracha criou-se uma nova configuração regional, que incluiu novos circuitos de mercadorias, novos hábitos de consumo com bens importados, assim como uma desarticulação das produções locais, devido à chegada dos produtos estrangeiros de consumo das classes alta e média, entre os quais se destacam alimentos, roupas e transporte, por exemplo.
Grupos ligados ao circuito da borracha também tiraram proveito da situação de fluidez de mercadorias e algumas famílias se destacaram nesse contexto.
“Houve uma melhora, uma modernização nos sistemas de comunicação diretos com Londres com cabo submarino e com a então capital do Brasil [Rio de Janeiro]”, explica Costa.
‘Paris dos Trópicos’
Além disso, de acordo com Reinaldo Corrêa Costa, ocorreu um processo de urbanização em cidades como Belém, com a criação de bairros planejados, melhoria na infraestrutura de portos e chegadas de jornais da França e da Inglaterra, que facilitavam a atualização com as informações do mundo.
“Assim como houve um fator de fortalecimento da proximidade geográfica com os centros internacionais e um distanciamento das realidades de exploração dos seringueiros, do processo só de endividamento que viviam e não tinham como denunciar ou recorrer”, acrescenta.
“Ao mesmo tempo em que as cidades se aproximaram dos centros internacionais, os seringueiros que viviam um processo de exploração e endividamente ficaram isolados, sem ter como denunciar ou recorrer”, acrescenta.
Nessa época, de acordo com o geógrafo Fadel David Antônio Tuma Filho (1948-2014), autor do artigo Riqueza e miséria do ciclo da borracha na Amazônia brasileira: um olhar geográfico através de Euclides da Cunha, de 2011, o cosmopolitismo de Belém e Manaus podia ser medido pelos elogios feitos por ilustres personagens que estiveram na região de passagem.
De acordo com ele, a intensa ligação com a Europa trouxera os hábitos de “finesse”, o gosto apurado, a predileção pela moda e pelos autores franceses.
“As casas comerciais ostentavam nomes sugestivos como ‘Bon Marché’, ‘Au Palais Royal’, ‘Bazar Paris’, ‘La Corbeille'”, escreveu.
“No primeiro decênio do século 20, era comum companhias de óperas italianas se apresentarem em Belém e Manaus. Espetáculos no estilo vaudeville eram apresentados por companhias de danças espanholas, italianas e portuguesas, numa reedição do ‘Moulin Rouge’ nos trópicos.”
Ainda de acordo com Tuma Filho, a vida literária e intelectual da região podia ser medida pelo número de jornais que se editavam em Manaus (seis) e Belém (também seis) nesta época, após 1900.
“Grande era o número de escritores, jornalistas e poetas que agitavam a vida boêmia e literária nestas duas capitais”, disse.
“Comum era a frequência com que as pessoas viajavam para a Europa, fossem elas abastados donos de seringais ou jovens intelectuais, filhos da burguesia, que se dirigiam principalmente à França.”
Centenas de paraenses e amazonenses, acrescentou, atravessavam o Atlântico, uns para estudar, outros em busca de saúde nas estações termais, outros pelo prazer de viajar, de enriquecer a alma de sensações e conhecimentos.
“A Europa representava, naquele tempo, o que hoje significa o Rio de Janeiro para as populações regionais”, registrou.
“Aliás, quase ninguém conhecia a [então] capital do país, de onde só se irradiava uma influência nitidamente oficial, do interesse de governo a governo.”
A opulência e riqueza proporcionada pelo Ciclo da Borracha foram experimentadas primeiro na capital do Pará, cidade mais desenvolvida e mais próxima da Europa.
“Belém levava vantagem de sua infraestrutura e posição, visto que tinha cabo submarino direto com Londres e a maioria dos grandes navios que atravessavam o Atlântico para buscar a borracha paravam na cidade e dali voltavam”, explica Costa.
“Além disso, muitas das elites administrativas das empresas que viajavam ficavam em Belém, não iam para o interior da região amazônica.”
No fim do século 19, a capital paraense experimentou um grande crescimento econômico, principalmente por meio de seus “aviadores”, comerciantes que recebiam produtos importados e os vendiam para as mais longínquas regiões produtoras de látex.
Os navios que vinham buscar borracha ou trazer produtos de consumo chegavam à cidade carregados de queijos franceses, vinhos portugueses, vestidos italianos e até empregados europeus, como costureiras belgas, por exemplo.
Como se não bastasse, a elite enriquecida com a borracha esbanjava dinheiro com hábitos exóticos e caros, como mandar engomar roupas em lavanderias de Lisboa e importar patins, para usar durante férias em países frios. “Suas feiras detinham os mais variados produtos e sua associação comercial comandava grande parte dos seringais amazonenses e acreanos”, conta Pereira. “Era impossível dissociar a importância da produção de borracha das outras regiões da Amazônia para a economia belenense e paraense.”
Segundo Pereira, usando os recursos disponíveis e pelos mesmos motivos que Manaus tinha em relação a se autoafirmar como grande metrópole moderna, Belém priorizou a construção de sua casa de ópera, o Theatro da Paz, inaugurado em 1878 e então a maior do Brasil.
O dinheiro abundante advindo do comércio da borracha patrocinava a contratação de famosas companhias líricas brasileiras e estrangeiras para se apresentar no monumental teatro. A casa também recebia visitas ilustres, como a do compositor Carlos Gomes, autor de O Guarani, que, em 1882, apresentou a ópera Salvador Rosa em Belém.
Mais tarde, foi a vez de Manaus alcançar estágio semelhante de desenvolvimento e prosperidade. Entre os resquícios da Belle Époque na Amazônia aludidos por Pereira, está o Teatro Amazonas. Construído no largo de São Sebastião, no centro de Manaus, a casa foi inaugurada em dezembro de 1896, Inspirado na Ópera Garnier de Paris, decorado com porcelana italiana e em alto estilo.
Foi um marco de período, que ainda está de pé – embora sem a pompa e o esplendor da época em que foi construído.
“Manaus foi a primeira cidade brasileira a ser urbanizada e a primeira capital a receber energia elétrica”, diz Pereira.
“No auge do Ciclo da Borracha, contava com iluminação pública, água encanada, telefone e telégrafo, além de uma linha de bonde. Mas é impossível não dizer que o maior símbolo desse período é o Teatro Amazonas. Com seus 700 lugares, foi concebido de forma luxuosa para poder atrair os melhores artistas e rivalizar com as principais casas de ópera de Paris.”
Nessa época, Manaus tinha várias alcunhas: “Capital da Borracha”, “País das Seringueiras” e “Paris dos Trópicos”.
“Várias são as histórias que se contam da cidade”, revela Pereira.
“Relatos que permeiam o imaginário dão conta de que, ao cair da tarde, era possível ver os comerciantes locais em frente ao suntuoso Teatro Amazonas, fumando charutos feitos com notas de dólares e vestidos à moda parisiense.”
Decadência da borracha
Mas há 110 anos, a partir de 1913, todo esse cenário começou a desmoronar.
Nesse ano, a produção já havia caído para cerca de 36 mil toneladas. Embora desde então o volume produzido de borracha tenha crescido 6,5 vezes até 2021, quando atingiu 235 mil toneladas, último dado disponível, o consumo cresceu mais, chegando a 417 mil toneladas, com o país tendo que importar cerca de 182 mil toneladas.
O que significa que o Brasil passou de maior produtor e exportador de borracha natural no início do século 20 para importador atualmente.
A região dos seringais também mudou. O maior produtor não é mais o Amazonas nem o Pará, mas o estado de São Paulo, que responde hoje por 60% do total do país.
A história desse declínio e do fim da riqueza gerada pela borracha na Amazônia começou bem antes de 1913, no entanto. Mais precisamente em 1876, quando o inglês Henry Wickham (1846-1928), um “aventureiro” para alguns ou um agente a serviço da rainha Vitória para outros, contrabandeou 70 mil sementes de seringueira para o Royal Botanic Gardens de Kew, uma famosa instituição de pesquisas em botânica do Reino Unido.
De acordo com o arqueólogo Vinicius Eduardo Honorato de Oliveira, da UFOP, por causa da grande demanda pelo látex da seringueira, outros países, particularmente a Inglaterra, começaram a tentar ambientar a espécie em outros locais. “O objetivo era produzir borracha em fazendas com as árvores próximas umas das outras”, explica.
Na Inglaterra, apenas 2.600 das sementes levadas por Wickham germinaram, mas foi o suficiente. Elas geraram mudas, que foram transplantadas para as colônias britânicas no Sudoeste Asiático (Tailândia, Malásia, Ceilão, hoje Sri Lanca), onde se adaptaram com sucesso.
As vantagens do seringalistas asiáticos em relação aos brasileiros eram enormes. Como nota Pereira, no Brasil o processo de coleta, processamento e envio da borracha natural para os mercados consumidores era primitivo. “Era algo realizado em locais acessíveis somente por via fluvial, com meses de viagem entre o local de extração do látex e o destino final”, explica.
Quanto mais distante e afastado era o seringal, mais produtivo ele era, mas isso aumentava os custos operacionais. Além disso, outros problemas contribuíram para o declínio dos seringais amazônicos, como o período de extração do látex, que ficava restrito aos seis meses do ano em que os seringais não estavam inundados (período de vazante do rio Amazonas).
Pereira cita ainda o rendimento médio da seringueira silvestre, que era de 2,5 a 6 kg de látex em comparação com as árvores plantadas, sistematicamente, em solo asiático, que apresentavam mais de 20 kg de rendimento individual.
“Essa sistematização do plantio fazia com o que o trabalhador asiático pudesse cortar, no mesmo tempo, duas vezes mais árvores do que o seringueiro amazônico”, diz.
“A soma desses e de outros fatores tornou o mercado mundial inacessível para a borracha natural amazônica.”
Para Oliveira, não foi surpresa, portanto, que com o avanço da produção “racional” na Ásia (particularmente na Malásia), o preço da borracha tenha caído demais (já no começo do século 20)..
“Muitos seringalistas quebraram e abandonaram os seringueiros e os seringais”, diz.
“Nesse momento os seringueiros começaram a desenvolver o modo de vida que se vê hoje em muitos lugares.”
Era o fim do Ciclo da Borracha e do apogeu de Manaus e Belém.
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