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A casca da ‘árvore da febre’ já salvou papas e reis da morte por quase quatro séculos

  • Author, Evanildo da Silveira
  • Role, De Vera Cruz (RS) para a BBC News Brasil

A cerca de 3.000 metros de altitude, nas encostas orientais dos Andes — aquelas viradas para o Brasil —, entre a Bolívia e a Venezuela, passando por Peru, Equador e Colômbia, cresce uma árvore que, pode-se dizer, ajudou a mudar a civilização moderna.

Por quase quatro séculos, essa árvore batizada com o nome de uma condessa e com altura de cerca de 20 metros salvou papas e reis da morte, possibilitou a expansão de impérios e a colonização de territórios e povos pelo mundo.

Como se não bastasse, a partir dessa planta encontrada na Amazônia andina surgiu a cloroquina.

A droga usada no tratamento de malária ficou conhecida na pandemia de covid-19 por ter sido indicada e usada sem evidências científicas suficientes para tratar uma doença para a qual não havia sido criada.

A árvore, que tem mais de 40 espécies, também deu origem ao gin tônica, um dos drinques preferidos dos ingleses.

Trata-se da quina ou quina-quina, que na língua quéchua significa “casca das cascas”.

Ela também é conhecida como “árvore” ou “pau da febre”. Da casca dessa planta se faz um pó de gosto amargo, mas sem cheiro — chamado de quinina, um alcaloide que tem propriedades analgésicas e antitérmicas (ou seja, combate a febre).

Por séculos, essa substância foi o único tratamento eficaz contra a malária, uma das doenças que mais mataram humanos ao longo de milhares de anos. Ainda hoje, são registrados entre 300 milhões e 500 milhões de casos por ano no mundo, com 2 milhões a 3 milhões de mortes.

De acordo com o historiador André Felipe Cândido da Silva, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a trajetória da quina é “fabulosa e ao mesmo tempo dramática” porque reflete a história do colonialismo, do capitalismo e de áreas do conhecimento como a botânica, química e farmacologia.

Mas, lembra Silva, essa história “de modo algum se reduz” às ações da ciência europeia.

“Ela envolveu uma complexa interação entre agentes do colonialismo europeu e populações originárias da América do Sul, que utilizavam tradicionalmente cascas de árvores no tratamento de febres e de outros males”, explica Silva, doutor em história das ciências e da saúde.

Quem descobriu: um nativo, um soldado ou uma condessa?

Ninguém sabe quando nem quem descobriu as propriedades da quina de combater a febre. Há várias histórias a respeito, algumas das quais estão mais para lenda do que para fato.

Uma delas atribui a descoberta aos indígenas sul-americanos.

Esses nativos supostamente teriam notado que leões da montanha (dependendo da região onde vivem, também chamados de pumas, onças pardas ou suçuaranas) doentes mastigavam a casca de certas árvores e ficavam curados. Os pacientes humanos com febre recebiam a mesma casca e melhoravam.

Outra história diz que um soldado de uma guarnição espanhola-peruana estava sofrendo de uma crise de malária e foi deixado por seus companheiros para trás para morrer.

Com muita sede, ele se arrastou até um pequeno lago, cercado de árvores, do qual bebeu muita água e adormeceu. Ao acordar, percebeu que a febre havia passado milagrosamente.

O soldado lembrou, então, que a água tinha um gosto amargo. Ao mesmo tempo, ele notou que um grande tronco de uma das plantas, partido por um raio, havia caído no lago. Ao examiná-lo com mais cuidado, o soldado concluiu que a casca tinha a capacidade de tratar a malária.

Há um terceiro relato que, apesar de ter algumas passagens nebulosas, parece ser em parte verdadeiro.

Ele envolve a condessa de Chinchón, mulher do vice-rei espanhol do Peru que ocupou o cargo de 14 de janeiro de 1629 até 18 de dezembro de 1639.

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‘Quina’, na língua quéchua, significa ‘casca das cascas’

De acordo com o químico Alfredo Ricardo Marques de Oliveira, professor aposentado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), a história registra que a condessa de Chinchón foi acometida por uma forte febre, chamada terçã, causada pela malária.

“Ao ingerir uma infusão da casca de quina feita pelos nativos, a condessa ficou curada”, conta.

“Até hoje não sabemos como eles descobriram este efeito e menos ainda sobre como a doença (de origem africana) chegou ao oeste da América do Sul. Certamente, foi bem antes dos espanhóis, pois os indígenas tiveram tempo de, por observação e empirismo, descobrir a cura.”

Conforme alguns relatos, entre os quais o do médico italiano Sebastiano Bado, que viveu no século 17, a condessa se chamava Ana de Osório. Depois de curada, ela teria distribuído o pó entre os nativos acometidos da malária em Lima, no Peru, que também se curaram.

Agradecidos, eles passaram a chamar o remédio de “pó da condessa”.

Ainda de acordo com Bado, ao regressar à Espanha, Ana de Osório teria levado consigo uma grande quantidade de casca de quina-quina, introduzindo o remédio na Europa, onde a doença era endêmica na época.

Mas um diário descoberto em 1930 desmente o relato de Bado. Segundo os escritos, Ana de Osório morreu pelo menos três anos antes de o rei Filipe 4º nomear o conde como vice-rei do Peru.

O botânico sueco Carl von Linné (1707-1778), o pai da moderna taxonomia (disciplina que classifica grupos de seres vivos), nomeou o gênero a qual pertence a “árvore da febre” de Cinchón, da família das rubiáceas, a mesma do café e das gardênias.

O leitor atento deve ter percebido que no nome do gênero falta o “h” antes do “i”, como em “Chinchón”. Ele deve ter sido influenciado por Bado, que “italianizou” o nome.

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O parque nacional de Manú, no Peru, é um dos locais onde a ‘árvore da febre’ ainda pode ser encontrada

Mas, afinal, quem introduziu a cinchona na Europa?

“Padres jesuítas da missão espanhola no Peru levaram o pó de quinina para lá”, responde o químico Luiz Carlos Dias, da Unicamp.

“Ele ficou conhecido como ‘pó dos jesuítas’. A esses religiosos também deve ser creditada a disseminação desse remédio no Velho Continente, já que Roma era a capital mundial da malária em meados do século 17.”

Segundo Penny le Couteur e Jay Burreson, no livro Os Botões de Napoleão – As 17 Moléculas que Mudaram a História, o conclave de 1655, que foi convocado após a morte do Papa Inocêncio 10º e elegeu Fabio Chigi como Papa Alexandre 7º, “foi o primeiro em que não se registrou nenhuma morte por malária entre os cardeais participantes”.

De acordo com os autores, logo os jesuítas começaram a importar grandes quantidades de quina e a vendê-la por toda a Europa.

Mas não em todos os países, ressalve-se. Apesar de sua excelente reputação no Velho Continente, o “pó dos jesuítas” não era aceito na Inglaterra protestante, por exemplo, por ser considerado um “remédio católico”.

Tanto que Oliver Cromwell, líder da guerra civil que culminou na execução do rei Charles 1º (1600-1649), recusou-se a ser tratado com o “remédio papista” e morreu devido à malária em 1658.

Mas o rei Charles 2º (1630-1685), filho de Charles 1º, também foi acometido da febre terçã em 1679 e foi curado pelo “pó dos jesuítas” sem saber.

Contrabando de sementes

Ao longo dos três séculos seguintes a malária — além da indigestão, febre, perda do cabelo, do câncer e de muitos outros males— foi tratada comumente com casca dessa planta.

“Até 1820, apenas um pó feito com as cascas e raízes da quina-quina era comercializado”, explica Dias.

“Nesse ano, os químicos franceses Pelletier [Pierre-Joseph Pelletier, 1788-1842] e Caventou [Joseph Bienaimé Caventou, 1795-1877] isolaram este pó, um alcaloide com extrema atividade contra a doença, ao qual deram o nome de quinina”.

“O isolamento permitiu a preparação de pílulas do remédio, mas o sabor desagradável e alguns efeitos colaterais como alterações visuais, zumbidos no ouvido, distúrbios gastrintestinais e icterícia dificultaram seu uso.”

Apesar disso, a substância continuou a ser usada para tratar a malária por mais de um século.

Era preciso um suprimento grande e constante, porque países colonizadores como Inglaterra, França e Holanda queriam ampliar seus impérios nos continentes africano e asiático, onde a doença ocorria de forma endêmica.

“Isso os levou à tentativa de obter sementes e mudas da quina, praticamente o único recurso terapêutico eficaz então conhecido no tratamento desse mal, mas que dependia do fornecimento provindo da América do Sul”, explica Silva.

A ideia era plantá-las em suas colônias, para não depender do suprimento sul-americano.

Até porque, a exploração era tanta — estima-se que, no final do século 18, 25 mil quinas eram cortadas a cada ano — que as cinchonas corriam o risco de serem extintas em sua região de origem.

Além disso, como a receita gerada pela venda da casca da planta era grande, os governos da Bolívia, Colômbia, Equador e Peru queriam manter o monopólio de produção e comercialização. Por isso, tais governos proibiram a exportação de árvores vivas e de suas sementes.

Mas eles não contaram com o contrabando — ou não conseguiram evitá-lo.

Couteur e Burreson relatam que, em 1853, o holandês Justus Hasskarl (1811-1894) conseguiu levar para ilha de Java (Indonésia), então colônia holandesa, um saco de sementes da espécie Cinchona calisaya.

“Elas foram cultivadas com sucesso, mas, lamentavelmente para Hasskarl e os holandeses, essa espécie tinha um conteúdo de quinina relativamente baixo”, escrevem os autores de Os Botões de Napoleão.

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Ao longo de três séculos, a malária foi tratada comumente com a casca da planta

De acordo com eles, os britânicos tiveram uma experiência parecida com sementes contrabandeadas de Cinchona pubescens, que plantaram na Índia e no Ceilão [hoje Sri Lanka]. As árvores cresceram, mas a casca continha menos que os 3% do alcaloide necessários para uma produção minimamente lucrativa.

Uma curiosidade: o hábito inglês de tomar quinina como precaução contra a malária acabou desenvolvendo o drinque “gin tônica” – o gin era considerado necessário para tornar palatável a amarga quinina.

Nesse cenário surge um contrabandista australiano, que passara muitos anos negociando quina. Em 1861, Charles Ledger conseguiu convencer um indígena peruano (que depois foi torturado e morto por seu povo) a vender sementes de uma espécie da árvore que supostamente tinha um conteúdo muito elevado de quinina.

Segundo Couteur e Burreson, o governo britânico não quis comprar as sementes de Ledger, talvez porque experiências anteriores com o cultivo de cinchona os levaram a avaliar que o caminho não era economicamente viável.

O governo holandês, no entanto, comprou cerca de 450 gramas delas, por cerca de 20 dólares. Elas foram plantadas em Java e cuidadosamente cultivadas. À medida que as árvores cresciam e sua casca rica em quinina era retirada, a exportação nativa da América do Sul declinava.

“Essa compra de 20 dólares foi considerada o melhor investimento da história, pois se verificou que os níveis do alcaloide na planta chegavam a nada menos que 13%”, contam Couteur e Burreson.

Devido ao feito de Ledger, a espécie foi batizada com seu nome, Cinchona ledgeriana.

Em 1930, mais de 95% do quinina do mundo vinha de plantações dos holandeses em Java.

“Diferentemente dos espanhóis, ingleses e holandeses lograram, depois de muitos estudos, desenvolver variedades de cinchona com maior teor do alcaloide e otimizar os métodos de extração e isolamento, ampliando consideravelmente a capacidade de produção do quinino, utilizado no formato de sais em comprimidos”, explica Silva.

De acordo com ele, a comercialização do quinino (sulfato de quinina), dominada pelos holandeses desde o século 19, levou à formação do que se pode chamar de o primeiro cartel farmacêutico global, em 1913.

Fonte para a indústria farmacêutica

A situação iria mudar drasticamente com a Segunda Guerra Mundial. De acordo com os autores de Os Botões de Napoleão, o monopólio do cultivo da quinina quase rompeu o equilíbrio entre as partes na guerra.

Em 1940, a Alemanha invadiu a Bélgica e a Holanda e confiscou todo o estoque europeu do remédio armazenado em Amsterdã.

Em seguida, em 1942, a conquista de Java pelos japoneses colocou ainda mais em risco o fornecimento desse antimalárico essencial.

Botânicos norte-americanos foram então enviados aos Andes para obter cascas da árvore, que ainda cresciam espontaneamente na área, mas nunca encontraram nenhum espécime da Cinchona ledgeriana que valera aos holandeses um sucesso tão espetacular.

A dependência desse mercado cartelizado, o impacto da malária em conflitos bélicos (sobretudo nas duas guerras mundiais) e a observação de casos de resistência à quinina levaram à busca de formas alternativas de tratamento.

Silva, da Fiocruz, explica que os laboratórios passaram a usar apenas partes da quinina, que servem como “modelos” para a fabricação de novos compostos, totalmente sintéticos.

“De certa forma, é como se os pesquisadores ‘montassem’ e ‘desmontassem’ partes das moléculas e testassem o seu potencial terapêutico e toxicidade”, explica o pesquisador da Fiocruz.

Desse tipo de pesquisa vão surgir, a partir dos anos 1920, milhares de fórmulas, como da plasmoquina (1925), da atebrina (1930), da ressochina (1934) e da sontoquina (1939), que se tornaram efetivamente medicamentos comercializados.

De acordo com o físico Peter Schulz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a busca pela quinina sintética foi uma aventura científica com muitos passos e contribuições de diversos cientistas ao longo de mais de um século a partir do isolamento em laboratório.

“Primeiro foi descoberta a fórmula química, depois a estrutura da molécula”, explica. “Com isso, foi possível aos químicos alemães Paul Rabe (1869-1952) e Karl Kindler (1891-1967) propor, em 1918, sua síntese por meio de um processo de 17 etapas.”

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Países europeus correram para garantir a produção de quinina

Mesmo com a síntese da quinina em 1918, continuou sendo mais barato e eficiente extraí-las das árvores. Em 1934, tudo mudou, no entanto. Foi quando o pesquisador alemão Hans Andersag, a serviço da Bayer, desenvolveu a resochina.

“Dela, ele sintetizou um derivado com toxicidade ainda menor e ação terapêutica igualmente eficaz, a sontoquina”, conta Silva.

“No contexto da Segunda Guerra Mundial, a sontoquina chegou às mãos dos norte-americanos, em um momento que a malária comprometia o movimento das tropas aliadas em diversas áreas de combate. Os japoneses haviam ocupado as zonas do sudeste asiático que cultivavam a quina, impedindo o acesso ao quinino.”

Diante disso, os americanos fizeram alguns ajustes pontuais na sontoquina, comprovaram que ela era eficiente no tratamento da malária humana e a rebatizaram de cloroquina.

“Uma ligeira modificação na cloroquina resultou na hidroxicloroquina, amplamente empregada contra a doença no pós-Segunda Guerra”, explica o pesquisador da Fiocruz.

“Mais tarde, apresentaram capacidade de tratamento de outros males, como artrite reumatoide e lúpus, por exemplo.”

Essa capacidade não foi comprovada, por sua vez, para a covid-19, como recomendou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Segundo Dias, da Unicamp, nem a cloroquina nem a hidroxicloroquina são usadas atualmente contra a malária causada pelo parasita Plasmodium falciparum, que começou a desenvolver resistência aos medicamentos.

Essa é a forma mais letal da doença, a que acomete principalmente populações de baixa renda em países africanos.

“A cloroquina só é empregada hoje para tratar a malária causada pelo Plasmodium vivax, menos letal e responsável por 92% dos casos da doença no Brasil”, conta Dias.

A planta existe no Brasil?

No Brasil, também chamamos algumas plantas de “quina”, mas a farmacêutica Maria das Graças Lins Brandão explica que elas não são a quina verdadeira, do do gênero Cinchona.

As plantas brasileiras são consideradas sucedâneas, “ou seja, usadas como se fosse a quina verdadeira, que não ocorre no Brasil”.

A pesquisadora diz que dados históricos revelam que a coroa portuguesa chegou a oferecer, no século 18, um prêmio em dinheiro para quem encontrasse a quina verdadeira no Brasil.

“Foi daí que surgiu este monte de falsas quinas”, diz Brandão, doutora em química de produtos naturais, professora aposentada de farmacognosia e fitoterapia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“Encontrava-se uma árvore semelhante, com cascas amargas, e nomeava-se como ‘quina’.”

A farmacêutica é também fundadora do Instituto Cayapiá e do Dataplamt, uma base de dados bibliográfica sobre as plantas usadas pelos brasileiros.

“Quando se pesquisa nessa base por ‘quina’ se obtém referências de 54 diferentes espécies de plantas brasileiras sucedâneas, como se fosse a verdadeira”, diz.

De acordo com ela, as “falsas quinas” brasileiras não tiveram papel algum no desenvolvimento das moléculas sintéticas da cloroquina e da hidroxicloroquina.

“Somente as quinas verdadeiras (as cinchonas peruanas), que produzem o quinino”, explica. “As falsas quinas começaram a ser usadas devido à intensa demanda que havia por essas cascas para tratar a malária no Brasil nos séculos 16 até o 20, e o monopólio comercial era da Espanha (a planta é nativa do Peru).”