Em reunião recente na Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, discutiram o fortalecimento da cooperação militar entre os dois países e reafirmaram o compromisso para a garantia da segurança na região do Indo-Pacífico, em meio aos conflitos com a China e a Coreia do Norte.
Mas nos bastidores esse foco na Ásia vem provocando um debate acirrado dentro de uma das forças militares mais icônicas dos Estados Unidos, segundo Jonathan Marcus, ex-correspondente de defesa e diplomacia da BBC, e, atualmente, professor honorário do Instituto de Estratégia e Segurança da Universidade de Exeter, na Inglaterra.
No centro da polêmica está uma das instituições mais sagradas das forças armadas dos EUA, o Corpo de Fuzileiros Navais.
Vários de seus ex-comandantes do alto escalão vêm criticando a atual liderança sobre seus planos para “reinventar” a corporação.
O cerne da questão gira em torno da necessidade de adequar a força para um conflito potencial contra a China — um plano batizado de Force Design 2030.
Praticamente desde sua concepção, esse plano foi alvo de críticas de vários generais aposentados, que foram à imprensa compartilhar suas frustrações, algo atípico nesse meio.
Oficiais do alto escalão aposentados têm se reunido regularmente; falando em seminários e think tanks; além de elaborar sua própria alternativa para um plano que consideram um desastre para o futuro do Corpo de Fuzileiros Navais.
Um crítico proeminente é Jim Webb, ex-secretário da Marinha dos EUA e ex-senador pelo estado da Virgínia, que serviu como oficial da Marinha na Guerra do Vietnã e concorreu à indicação presidencial do Partido Democrata em 2015.
Em artigo no jornal americano Wall Street Journal, ele descreveu o Force Design 2030 como “insuficientemente testado” e “intrinsecamente defeituoso”. E alertou que o plano “levantou sérias questões sobre a sabedoria e o risco de longo prazo de reduções dramáticas na estrutura da força, sistemas de armas e níveis de mão de obra em unidades que sofreriam baixas constantes na maioria dos cenários de combate”.
Mas por que este plano vem atraindo tantas críticas?
Lançado em 2020 pelo Comandante General do Corpo de Fuzileiros Navais David H Berger, o plano visa equipar os fuzileiros navais para um conflito potencial com a China na região do Indo-Pacífico, em vez de guerras de contra-insurgência como Iraque e Afeganistão.
O novo plano prevê fuzileiros navais combatendo em operações dispersas em cadeias de ilhas. Unidades, menores e mais espalhadas, terão um impacto muito maior por meio de uma ampla gama de novos sistemas de armas.
Desembarques anfíbios em larga escala como na Segunda Guerra Mundial ou mesmo mobilizações gigantescas de tropas em terra — como no Iraque — provavelmente serão coisa do passado.
Reduzir o contingente de soldados e renunciar a todos os tanques são os pontos mais impopulares até agora desse novo plano, de tal forma que alguns críticos chegaram a dizer que a força está dando as costas ao seu passado.
Embora tenha laços estreitos com a Marinha dos EUA, o Corpo de Fuzileiros Navais é uma força separada que cresceu dramaticamente na Segunda Guerra Mundial e assumiu um papel proeminente nas recentes campanhas no Iraque e no Afeganistão.
As percepções públicas do Corpo de Fuzileiros Navais são fortemente influenciadas pela experiência da Segunda Guerra Mundial. Qualquer um que tenha visto John Wayne no longa-metragem de 1949, ‘Iwo Jima, o Portal da Glória’, ou a minissérie mais recente, The Pacific, produzida por Steven Spielberg e Tom Hanks, se lembrará das operações anfíbias em larga escala; homens atacando em terra a partir de desembarques e assim por diante.
Mas não é isso o que o novo plano prevê para os fuzileiros navais.
Seu papel tradicional como primeira resposta militar da América, capaz de enfrentar desafios díspares em todo o mundo, é o que os críticos acreditam que pode ser comprometido pelo novo plano com seu foco claro na China e no Indo-Pacífico.
Então, o que exatamente o plano vislumbra?
- Cortar alguns batalhões de infantaria – os soldados de infantaria –
- Substituir cerca de três quartos de suas artilharias rebocadas por sistemas de foguetes de longo alcance
- Reduzir vários esquadrões de helicópteros
O dinheiro para os novos sistemas de armas, totalizando US$ 15,8 bilhões, será financiado pelos cortes que totalizam cerca de US$ 18,2 bilhões.
Além dos novos sistemas de artilharia de foguetes, haverá novos mísseis antinavio que podem ser disparados de terra e novos sistemas aéreos não tripulados. O objetivo é equipar e treinar o Corpo de Fuzileiros Navais para um novo tipo de guerra que os combates na Ucrânia já prenunciaram.
O principal fator orientador do Force Design 2030 é o que o comandante dos fuzileiros navais chama de “operações distribuídas”, dividindo grandes forças em unidades menores amplamente espalhadas, mas garantindo que tenham força militar suficiente para fazer uma diferença real.
Esses princípios já estão sendo colocados em prática nas ilhas japonesas de Okinawa, perto de Taiwan, onde os fuzileiros navais ali estacionados passarão por uma reformulação, segundo autoridades americanas.
O especialista militar Mike O’Hanlon, diretor de política externa do think tank Brookings Institution em Washington DC, rejeita a crítica central de que o novo foco na China pode prejudicar as operações da Marinha em outros lugares. Os fuzileiros navais irão para onde forem ordenados, diz ele, e a nova estratégia provavelmente não terá tanto impacto nas operações quanto alguns pensam.
“O que realmente importa a esse respeito é a retirada do Iraque e do Afeganistão nos últimos anos — essa é a grande mudança, independentemente (e principalmente antes) da visão do general Berger ser desenvolvida.”
Muitos analistas insistem que a mudança é essencial para que os fuzileiros navais enfrentem os desafios do campo de batalha moderno.
Frank Hoffman, da Universidade de Defesa Nacional dos Estados Unidos, ele próprio um ex-oficial da Marinha, opina: “Acho que os críticos estão olhando para trás, para um passado glorioso, e falham em ver a imagem estratégica em relação à China e à tecnologia de uma forma realmente decepcionante”.
Embora a retirada dos tanques dos fuzileiros navais tenha atraído críticas específicas, Hoffman acredita que este é o caminho certo. Ainda haverá muitos veículos blindados, argumenta, mas não “os tanques pesados e seus reabastecedores”.
“É uma adaptação para cobrir uma área mais profunda com uma combinação mais precisa de poder de fogo, como estamos vendo na Ucrânia. A força usou seu elemento de aviação para ter esse alcance no passado e agora terá uma combinação de artilharia tradicional e uma ampla gama de mísseis que aumentará a letalidade e a extensão de seu poder de fogo.”
Todos esses são passos que muitos diriam ser justificados pelas lições da Ucrânia.
A utilidade e importância dos veículos aéreos não tripulados (UAVs); artilharia de foguetes; e a capacidade de atacar a grande distância com grande precisão foram enfatizadas na guerra Rússia-Ucrânia e fazem parte dos novos planos dos fuzileiros navais. Mas o campo de batalha previsto é muito diferente — não as florestas e as estepes da Ucrânia, mas cadeias de ilhas que se estendem pela vasta extensão do Oceano Pacífico.
O Force Design 2030 é um programa em evolução. Já houve mudanças e haverá mais. E embora a direção deste programa tenha sido estabelecido, ainda há enormes problemas a resolver, principalmente os desafios logísticos impostos por uma força que provavelmente será distribuída por uma vasta área.
O transporte anfíbio desempenhará um papel fundamental aqui. E como explica Nick Childs, membro sênior das Forças Navais e Segurança Marítima do think thank Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês) em Londres, no Reino Unido, novos tipos de navios serão necessários.
“Confiar apenas em seus grandes navios anfíbios tradicionais os deixaria muito vulneráveis aos tipos de armamento moderno que provavelmente enfrentarão”, diz ele. “Portanto, novos tipos de navios menores em maior número serão vitais, para que o Corpo de Fuzileiros Navais possa operar de maneira mais ágil e dispersa”.
Mas ter mais navios à disposição não será fácil. Os menores podem ser construídos rapidamente e em uma ampla gama de estaleiros, mas não necessariamente no ritmo necessário.
A Marinha dos EUA também precisa de um número significativo de novos navios de guerra, e não se sabe se haverá os fundos ou a capacidade necessária de produção.
É o velho problema de equilibrar recursos financeiros e prioridades estratégicas. E a crise na Ucrânia mostra que velhas ameaças podem reaparecer no momento em que uma força trilhar um caminho inteiramente novo.
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