- Christopher Filley
- The Conversation*
Quem nunca imaginou como se forma uma memória, como se gera uma sentença ou se aprecia um pôr-do-sol, como um ato criativo é realizado ou como um crime hediondo é cometido?
O cérebro humano é um órgão que pesa 1,3 kg e permanece, em grande parte, um enigma. Mas a maioria das pessoas já ouviu falar da massa cinzenta do cérebro, que é necessária para funções cognitivas como o aprendizado, a memória e o raciocínio.
A massa ou substância cinzenta designa, mais especificamente, regiões espalhadas pelo cérebro nas quais estão concentradas as células nervosas, conhecidas como neurônios. A região considerada mais importante para a cognição é o córtex cerebral, uma fina camada de massa cinzenta na superfície do cérebro.
Mas a outra metade do cérebro – a massa branca – muitas vezes é menosprezada. A massa branca fica abaixo do córtex e em regiões mais profundas do cérebro. Nos locais onde está presente, ela conecta os neurônios da massa cinzenta entre si.
Sou professor de neurologia e psiquiatria e diretor do departamento de neurologia comportamental da Faculdade de Medicina da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos. Meu trabalho envolve a avaliação, tratamento e pesquisa de idosos com demência e jovens com lesões cerebrais traumáticas.
Para mim, descobrir como esses distúrbios afetam o cérebro foi o motivo de muitos anos de estudo. E acredito que compreender a massa branca pode ser fundamental para entender esses distúrbios. Mas, de forma geral, os pesquisadores ainda não deram à massa branca a atenção que ela merece.
Tratando de entender a massa branca
Essa falta de reconhecimento, em grande parte, vem da dificuldade do estudo da massa ou substância branca.
Como ela está localizada abaixo da superfície do cérebro, mesmo a mais alta tecnologia de formação de imagens não consegue revelar facilmente seus detalhes. Mas descobertas recentes, possibilitadas por avanços da formação de imagens do cérebro e exames de autópsia, estão começando a mostrar aos pesquisadores a importância da massa branca.
A massa branca é composta de vários bilhões de axônios, que são como longos cabos que conduzem sinais elétricos. Imagine os axônios como caudas alongadas que agem como extensões dos neurônios.
Os axônios conectam os neurônios entre si em junções chamadas sinapses. É ali que ocorre a comunicação entre os neurônios.
Os axônios reúnem-se em feixes ou ramos, que se estendem por todo o cérebro. Se fossem alinhados, seu comprimento total em um único cérebro humano seria de cerca de 136 mil quilômetros.
Muitos axônios são isolados com mielina, uma camada composta principalmente de gordura que acelera em até 100 vezes a sinalização elétrica, ou a comunicação, entre os neurônios. Esse aumento da velocidade é fundamental para todas as funções cerebrais e é uma das razões das capacidades mentais únicas do Homo sapiens.
Embora não haja dúvidas de que os nossos grandes cérebros sejam uma consequência da adição de neurônios ocorrida ao longo da evolução, o aumento da massa branca no processo evolutivo foi ainda maior.
Esse fato pouco conhecido possui consequências profundas. O aumento do volume da massa branca – principalmente das bainhas de mielina que recobrem os axônios – potencializa a eficiência dos neurônios da massa cinzenta para otimizar as funções cerebrais.
Imagine um país onde todas as cidades funcionam de forma independente, mas não são ligadas por estradas, fios, internet ou outras conexões. Este seria um cenário similar ao cérebro sem a massa branca.
As funções superiores, como a linguagem e a memória, são organizadas em redes nas quais as regiões de massa cinzenta são conectadas por ramos de massa branca. Quanto mais extensas e eficientes forem essas conexões, melhor o funcionamento do cérebro.
Massa branca e Alzheimer
Considerando seu papel essencial nas conexões entre as células cerebrais, as lesões da massa branca podem prejudicar qualquer aspecto da função cognitiva ou emocional.
A patologia da massa branca está presente em muitos distúrbios cerebrais e pode ser suficientemente severa para causar demência. A lesão da mielina é comum nesses distúrbios e, quando a doença ou lesão é mais forte, os axônios também podem ser prejudicados.
Mais de 30 anos atrás, meus colegas e eu descrevemos essa síndrome como demência da massa branca. Nessa condição, a massa branca disfuncional não está mais funcionando adequadamente como conexão, o que significa que a massa cinzenta não consegue agir de forma contínua e sincrônica. Essencialmente, o cérebro desconectou-se de si próprio.
Igualmente importante é a possibilidade de que os distúrbios da massa branca influenciem muitas doenças que atualmente acreditamos que tenham origem na massa cinzenta.
Algumas dessas doenças teimam em desafiar a nossa compreensão. Eu suspeito, por exemplo, que lesões da massa branca podem ser críticas em lesões cerebrais traumáticas e nas fases iniciais do mal de Alzheimer.
Alzheimer é o tipo mais comum de demência em indivíduos idosos. Ele pode prejudicar as funções cognitivas e roubar a própria identidade das pessoas. E não existe cura, nem tratamento eficaz contra ele.
Desde que Alois Alzheimer observou as proteínas da massa cinzenta – conhecidas como amiloide e tau – em 1907, os neurocientistas acreditam que o acúmulo dessas proteínas seja o problema central por trás do mal de Alzheimer. Mesmo assim, muitos medicamentos que eliminam essas proteínas não interrompem o declínio cognitivo dos pacientes.
Descobertas recentes indicam cada vez mais que lesões da massa branca anteriores ao acúmulo dessas proteínas podem ser as verdadeiras causadoras da doença. À medida que o cérebro envelhece, muitas vezes ele sofre perda gradual do fluxo sanguíneo, causada pelo estreitamento dos vasos que transportam o sangue do coração. E o menor fluxo sanguíneo causa fortes impactos sobre a massa branca.
É importante observar que existem cada vez mais evidências de que as formas hereditárias de Alzheimer também apresentam anormalidades precoces da massa branca. Isso significa que terapias destinadas à manutenção do fluxo sanguíneo para a massa branca podem ser mais eficientes do que tentar eliminar as proteínas.
Um tratamento simples que talvez seja de ajuda é o controle da hipertensão arterial, que pode reduzir a gravidade das anormalidades da massa branca.
A massa branca e as lesões cerebrais traumáticas
Pacientes com lesões cerebrais traumáticas (LCTs), particularmente lesões moderadas e severas, podem sofrer incapacidades pelo resto da vida.
Uma das consequências mais perigosas dessas lesões é a encefalopatia traumática crônica, uma doença cerebral que se acredita causar demência progressiva e irreversível.
Em pacientes com LCT, o acúmulo da proteína tau na massa cinzenta é evidente.
Pesquisadores reconheceram há muito tempo que é comum encontrar lesões na massa branca em pessoas que sofreram LCTs. Observações do cérebro de pessoas com LCTs repetitivas – como jogadores de futebol americano e militares veteranos, que foram estudados com frequência – demonstraram que os danos à massa branca são evidentes e podem preceder o surgimento de emaranhados de proteínas na massa cinzenta.
Existe entre os cientistas um entusiasmo crescente sobre o recente interesse pela massa branca. Os pesquisadores estão começando a reconhecer que o foco tradicional do estudo da massa cinzenta não produziu os resultados esperados.
Aprender mais sobre a metade do cérebro conhecida como massa branca pode nos ajudar a encontrar as respostas necessárias para aliviar o sofrimento de milhões de pessoas nos próximos anos.
* Christopher Filley é professor de neurologia e psiquiatria do Campus de Medicina Anschutz da Universidade do Colorado.
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