Crédito, GETTY IMAGES

  • Author, Jim Reed
  • Role, Repórter de saúde da BBC News

Um inquérito público sobre o que ficou conhecido como o maior desastre em um tratamento na história do NHS, o sistema público de saúde britânico, concluiu que as autoridades encobriram o escândalo após exporem conscientemente as vítimas a riscos inaceitáveis.

O relatório final do inquérito, divulgado nesta segunda-feira (20/05), acusa os médicos, o governo e o NHS de permitirem que os pacientes contraíssem HIV e hepatite.

As vítimas estão fazendo campanha pelo pagamento de uma indenização que deve custar bilhões de libras ao governo.

Quem recebeu sangue infectado e quantas pessoas morreram?

Dois grupos principais de pacientes do NHS foram afetados.

Em primeiro lugar, aqueles com hemofilia — e com doenças semelhantes —, que possuem uma condição genética rara que faz com que seu sangue não coagule adequadamente.

As pessoas com hemofilia A apresentam deficiência de um agente de coagulação chamado Fator VIII, enquanto quem tem hemofilia B não apresenta Fator IX suficiente.

Na década de 1970, um novo tratamento — que utilizava plasma sanguíneo humano fornecido por doadores — foi desenvolvido para substituir esses agentes coagulantes.

Mas lotes inteiros foram contaminados com vírus mortais.

Após receberem os tratamentos infectados, cerca de 1.250 pessoas com distúrbios hemorrágicos no Reino Unido contraíram tanto HIV, vírus causador da Aids, quanto hepatite C, incluindo 380 crianças.

Cerca de dois terços morreram mais tarde de Aids. Alguns transmitiram HIV involuntariamente aos seus parceiros.

Outras pessoas — de 2,4 mil a 5 mil — desenvolveram apenas hepatite C, que pode causar cirrose e câncer de fígado.

É difícil saber o número exato de pessoas infectadas com hepatite C, em parte porque pode levar décadas até que os sintomas apareçam.

Um segundo grupo de pacientes recebeu transfusões de sangue contaminado após o parto, cirurgias ou outro tipo de tratamento médico entre 1970 e 1991.

O inquérito estima que entre 80 e 100 pessoas deste grupo foram infectadas com HIV, e cerca de 27 mil com hepatite C.

No total, estima-se que cerca de 2,9 mil pessoas morreram.

Entre elas, está Martin White, que tinha hemofilia. Aos sete anos, ele recebeu um tratamento para coagulação do sangue que mais tarde descobriu-se estar contaminado com HIV.

Crédito, VAL WHITE

Legenda da foto, Martin White recebeu hemoderivados contaminados pela primeira vez quando tinha sete anos

Ele morreu aos 33 anos, depois de desenvolver HIV aos 14.

“O HIV era tão novo que não tínhamos ouvido falar muito dele até então”, diz a mãe dele, Val White, hoje com 77 anos.

Era ela quem aplicava as injeções, e nunca poderia imaginar que o tratamento que estava dando ao filho iria matá-lo.

No entanto, mais de 20 anos depois, ela ainda hoje se sente culpada pela morte do filho.

“Isso destruiu a vida dele”, afirma.

“Grande parte do que sinto é culpa — culpa por que queria ter feito mais. Culpa por ter dado a injeção nele — era eu quem aplicava.”

Por que o escândalo aconteceu?

Na década de 1970, o Reino Unido estava com dificuldade de satisfazer a demanda por tratamentos para coagulação sanguínea, devido à escassez de hemoderivados no país. Por isso, importou dos EUA.

Mas grande parte do sangue foi fornecido por doadores de alto risco, como presidiários e usuários de drogas.

O fator VIII foi produzido reunindo plasma de dezenas de milhares de doadores.

Se apenas um doador estivesse infectado, todo o lote poderia ser contaminado.

As doações de sangue no Reino Unido só começaram a ser testadas rotineiramente para hepatite C a partir de 1991, 18 meses após o vírus ser detectado pela primeira vez.

Crédito, JACKIE BRITTON

Legenda da foto, Jackie Britton, de Portsmouth, foi infectada com hepatite C por meio de uma transfusão de sangue após o nascimento da filha em 1983

O que o inquérito concluiu?

Ao anunciar suas conclusões nesta segunda-feira, o inquérito afirmou que as vítimas haviam sido deixadas na mão “não uma vez, mas repetidamente”.

O relatório diz ainda que a segurança dos pacientes não estava no centro da tomada de decisão, e que o risco de infecções virais em hemoderivados era conhecido desde 1948.

Além disso, o texto destaca que:

– Muito pouco foi feito para impedir a importação de hemoderivados do exterior, que utilizavam sangue de doadores de alto risco, como prisioneiros e usuários de drogas;

– No Reino Unido, as doações de sangue de grupos considerados de alto risco, como prisioneiros, eram aceitas até 1986;

-Só no final de 1985 que os produtos sanguíneos passaram a ser tratados termicamente para eliminar o HIV, embora os riscos fossem conhecidos desde 1982;

– Havia poucos testes para reduzir o risco de hepatite, a partir da década de 1970.

Brian Langstaff, que presidiu o inquérito, disse que houve uma falta de transparência por parte das autoridades e elementos de “absoluta dissimulação”, incluindo a destruição de documentos.

Também foram contadas meias verdades, para que as pessoas não soubessem do risco do tratamento, da disponibilidade de alternativas ou até mesmo se estavam infectadas.

“Este desastre não foi um acidente. As infecções aconteceram porque as autoridades — os médicos, os serviços hematológicos, e os sucessivos governos — não colocaram a segurança dos pacientes em primeiro lugar”, declarou Brian.

É difícil estabelecer os números exatos, mas a Sociedade de Hemofilia acredita que 650 pessoas infectadas com hemoderivados contaminados, ou seus parceiros enlutados, morreram desde que o inquérito foi anunciado em 2017.

Quando as autoridades descobriram sobre o sangue infectado?

Em meados da década de 1970, houve repetidos alertas de que o Fator VIII importado dos EUA apresentava um risco maior de infecção.

Mas as tentativas de tornar o Reino Unido autossuficiente em hemoderivados fracassaram, então o NHS continuou a utilizar suprimentos estrangeiros.

Os ativistas alegam que poderia ter sido oferecido um tratamento alternativo, chamado crioprecipitado, aos pacientes com hemofilia. Este tratamento era muito mais difícil de administrar, mas era produzido a partir do plasma sanguíneo de um único doador, diminuindo o risco de infecção.

Ainda em novembro de 1983, o governo insistia que não havia “provas conclusivas” de que o HIV podia ser transmitido pelo sangue, linha de pensamento que era fortemente defendida pelo ex-ministro da saúde Ken Clarke, ouvido pelo atual inquérito.

No fim de 1985, todos os produtos do Fator VIII passaram a ser tratados termicamente para matar o HIV.

As vítimas do escândalo vão receber indenização?

Aqueles que foram infectados recebem uma ajuda financeira anual do governo. Mas não se chegou ainda a um acordo definitivo sobre a indenização.

No fim de 2022, após uma recomendação do inquérito, o governo efetuou pagamentos provisórios de £100 mil (R$ 650 mil) para cerca de 4 mil vítimas sobreviventes e alguns companheiros daquelas que morreram.

Em abril de 2023, Brian disse que uma indenização provisória também deveria ser oferecida aos filhos e pais das pessoas infectadas.

Ele também recomendou que seja estabelecido um sistema de indenização definitivo.

O custo total provavelmente vai ficar na casa de bilhões.

O governo afirmou que aceitava o argumento da indenização, mas seria “inapropriado” responder antes da publicação do relatório final do inquérito.

Em abril de 2024, os ministros concordaram em apoiar uma emenda do Partido Trabalhista ao projeto de lei sobre Vítimas e Prisioneiros. Isso significa que um sistema de indenização definitivo deve ser estabelecido no prazo de três meses após a legislação entrar em vigor.

O que aconteceu em outros países afetados pelo sangue infectado?

Muitos outros países foram afetados pelo mesmo escândalo, embora alguns —incluindo a Finlândia — tenham usado tratamentos mais antigos até muito mais tarde, em vez de trocar para o Fator VIII, que minimizou as infecções por HIV.

Nos EUA, as empresas que forneceram hemoderivados infectados pagaram milhões em acordos extrajudiciais.

Políticos e companhias farmacêuticas foram condenados por negligência em países como França e Japão.