Ele foi condenado a 27 anos de prisão na Colômbia pela morte e estupro de Nancy Mestre, que tinha apenas 18 anos quando foi morta em 1994.
O caso chocou o país sul-americano — e resultou em uma busca de 26 anos do pai da jovem pelo assassino da filha.
Após o assassinato, Jaime fugiu da cidade de Barranquilla para o Brasil, onde se fixou com nome e documentos falsos. Em Belo Horizonte, passou a viver uma vida confortável sob o nome de Henrique dos Santos Abdala. Ele se casou com uma brasileira e teve dois filhos no Brasil.
Mas a busca incansável de Martín Mestre, pai de Nancy, pelo assassino da filha interrompeu os planos de Jaime. Após investigar o paradeiro do ex-genro por mais de duas décadas, ele o localizou no Brasil e deu as coordenadas à Interpol, que prendeu Jaime Saade em 2020.
Naquele mesmo ano, o Supremo soltou o colombiano e negou a extradição com o argumento de que o crime de homicídio havia prescrito no Brasil.
Na ocasião, o placar foi de empate — um dos ministros, Celso de Mello, estava ausente à sessão em licença médica. Em vez de aguardar o voto de Celso de Mello, os ministros decidiram aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decisão que beneficia o réu.
Com isso, Jaime Saade pôde ficar no Brasil, sem punição pela morte de Nancy Mestre. O governo da Colômbia, que havia pedido a extradição, não recorreu, considerando que não haveria mais chances de trazer Jaime para o país. Com isso, a decisão transitou em julgado.
Mas o pai da jovem não desistiu. Entrou ele próprio com uma ação rescisória, apelando para o tribunal rever a decisão.
Havia a possibilidade de o recurso ser inadmitido sem que os ministros analisassem o pedido, porque Martín não era parte no processo de extradição, mas sim o governo da Colômbia.
No entanto, numa reviravolta, o relator, ministro Alexandre de Moraes, considerou que o pai da jovem tinha, sim, o direito de entrar com a ação rescisória e votou a favor de rever a decisão que impediu a extradição.
Para ele, diante do empate, a Corte deveria ter aguardado o voto do ministro que estava ausente à sessão, em vez de ter optado por negar a extradição. Outros seis ministros acompanharam o voto de Moraes: André Mendonça, Edson Faquin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
Outros três ministros — Nunes Marques, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — discordaram e votaram por manter a decisão de negar a extradição.
Em abril de 2023, a Segunda Turma do STF decidiu por maioria de votos pela extradição do colombiano.
Mas quais os detalhes desse crime que chocou a Colômbia e que foi parar na Justiça brasileira? E como Jaime Saade conseguiu ficar tanto tempo no Brasil sem ser descoberto?
O crime
Nancy, filha mais nova de Mestre, queria ser diplomata e se mudar da Colômbia para os Estados Unidos para cursar a faculdade. “Era uma menina alegre, muito estudiosa. Vivia lendo. Queria estudar Direito Internacional e diplomacia”, conta Martín.
Mas todos os planos da jovem de 18 anos foram interrompidos na madrugada do dia 1° de janeiro de 1994. Nancy, o pai, a mãe e o irmão brindaram o novo ano em casa.
Pouco depois da meia-noite, Martín se despediu da filha, que pediu para continuar a comemoração de Ano Novo com o namorado, Jaime Saade. O rapaz havia ido buscá-la em casa. “Volte antes das 3h da manhã”, pediu Martín à filha. “Cuide bem dela”, pediu ele a Jaime.
Às 6h, Martín acordou sobressaltado. “Assim que acordei já pressenti algo”, conta. Ele foi procurar Nancy pela casa e encontrou o quarto dela vazio.
Saiu pelas ruas da cidade, entrando em discotecas para ver se o casal de jovens estava lá, mas não os encontrou. A ansiedade foi aumentando e, enquanto perguntava pela filha a quem via pela rua, rezava em silêncio para que ela aparecesse sã e salva.
Por fim, decidiu ir até a casa dos pais de Jaime, onde o rapaz também morava. Lá, se deparou com a mãe dele limpando o chão. “Estava escuro e não me dei conta, naquele momento, que eu estava pisando no sangue da minha própria filha. E que a mãe do assassino estava violando a cena de um crime.”
“A sua filha sofreu um acidente e está na Clínica del Caribe”, disse a mulher.
Martín correu para o hospital e lá encontrou o pai de Jaime. “Sua filha tentou se suicidar e está na sala de cirurgia.” Na sala de atendimento de emergência, médicos tentavam estabilizar o quadro de saúde de Nancy, que estava em coma.
A jovem havia sido levada ao hospital por Jaime, o pai dele e uma mulher que também morava na casa da família. Eles enrolaram Nancy, que estava nua, num lençol e a colocaram na caçamba de uma caminhonete.
“Foi aos poucos que eu comecei a organizar na minha cabeça o que tinha acontecido. Ela foi violentada, maltratada e foi jogada na caçamba de uma caminhonete. Eu disse: ‘Meu Deus, o que fizeram com a minha filha!'”, lembra Martín.
Oito dias de agonia no hospital se seguiriam. A jovem nunca mais recobrou a consciência. “Os médicos me avisaram que ela iria partir. Eu, a mãe de Nancy e nosso outro filho, Martín, nos reunimos no quarto do hospital e ficamos orando e cantando músicas que ela gostava de ouvir quando criança”, conta.
De repente, o coração dela parou de bater.
A fuga
Enquanto os pais de Nancy sofriam no hospital e a polícia investigava o que havia acontecido com a jovem naquele dia 1° de janeiro, o principal suspeito do crime, Jaime Saade, fugia da Colômbia.
“Jaime iniciou a fuga no mesmo dia do assassinato e nunca mais foi visto no país”, diz Martín. A polícia descartou a tese de suicídio. Nancy morreu com um tiro na cabeça, que entrou pela têmpora direita.
Resquícios de pólvora foram encontrados na mão esquerda dela, um indicativo, segundo as autoridades colombianas, de que ela tentou se defender. A jovem era destra e precisaria ter feito um movimento muito improvável, segundo a polícia, para acertar a têmpora direita carregando a arma com a mão esquerda.
A investigação concluiu que Nancy havia sido violentada. Ela tinha ferimentos pelo corpo e, nas unhas quebradas, havia restos de pele – outro sinal de que tentou se defender. Em 1996, dois anos depois da morte da jovem, um tribunal da Colômbia condenou Jaime Saade a 27 anos de prisão por homicídio e estupro.
Segundo a decisão da justiça colombiana, após violentar e atirar na cabeça de Nancy, Jaime teria se desesperado e pedido ajuda ao pai. Eles enrolaram o corpo nu da jovem num lençol e a levaram para o hospital. O pai de Jaime ficou na clínica, enquanto o filho se escondia.
Daquele momento em diante, o foco da vida de Martín se tornou encontrar Jaime, uma caçada que duraria 26 anos. “Eu sabia que poderia demorar, mas sempre soube que encontraria o assassino da minha filha.”
As investigações
Desde a condenação de Jaime Saad, Martín passou a cobrar mensalmente das autoridades respostas sobre as investigações e estabeleceu contatos com a Interpol para compartilhar informações que ele próprio encontrava.
A morte de Nancy mudou para sempre o destino da família. Martín e a esposa se separaram. O único filho vivo do casal se mudou para os Estados Unidos.
E Martín, que é arquiteto e professor, concentrou quase todo o seu tempo e energia na busca por Jaime. Ele ingressou em cursos de inteligência e resgatou conhecimentos que aprendera quando era oficial da Marinha para usar nos seus esforços de investigação.
“Eu criei quatro personagens fictícios, dois homens e duas mulheres, e passei a estabelecer contato nas redes sociais com familiares de Jaime para ganhar confiança e obter informações que pudessem me levar a ele”, contou à BBC News Brasil.
Martín repassava para a polícia colombiana e a Interpol cada detalhe que conseguia obter. Ao longo dos 26 anos de busca, vários delegados diferentes assumiram o caso. “Cada vez que o responsável pela investigação mudava, eu ia até lá com todos os documentos para colocar a pessoa a par de tudo.”
Das conversas que estabeleceu com familiares de Jaime, usando os perfis fictícios, Martin encontrou duas pistas que o levaram a crer que Jaime poderia estar em território brasileiro.
Primeiro, descobriu que um irmão de Jaime mora no Brasil. Depois, desconfiou da menção frequente da família do rapaz à localidade de Santa Marta. Santa Marta é uma cidade costeira da Colômbia, com uma praia chamada Bello Horizonte.
A investigação dele chegou, por fim, à conclusão de que Jaime poderia estar na cidade brasileira de Belo Horizonte, não em Santa Marta, na Colômbia. De posse dessas informações, a Polícia Federal brasileira e a Interpol localizaram uma pessoa com perfil similar ao de Jaime Saade.
A prisão
Os policiais seguiram o suspeito até um café e, depois que ele saiu do estabelecimento, coletaram o copo que ele usou para beber. Queriam verificar se as digitais batiam com as do colombiano condenado pelo assassinato de Nancy. Eram idênticas.
Ao abordarem Jaime, ele apresentou documentos falsos e disse se chamar Henrique dos Santos Abdala. Vivia uma vida tranquila em Belo Horizonte, com a esposa brasileira e dois filhos crescidos. Foi preso pela PF e passou a responder no Brasil por crime de falsidade ideológica.
Pouco depois, o governo da Colômbia entrou com pedido de extradição para que Jaime pudesse cumprir a pena de 27 anos no país.
“Quando o diretor da Interpol me ligou para contar da prisão, eu me ajoelhei no chão e comecei a agradecer a Deus. Meu Deus! Depois de quase 27 anos vai haver justiça”, conta.
“Telefonei ao meu outro filho, Martín, que vive nos Estados Unidos, e à mãe dele, que hoje mora na Espanha, e todos começamos a chorar.” Para Martín, seria questão de meses até Jaime começar a cumprir a pena na Colômbia. Só faltava a autorização do Supremo para a extradição.
Mas algo muito diferente do que ele esperava aconteceu.
No dia 28 de setembro de 2020, Martín recebeu um telefonema de um advogado. O Supremo havia decidido não extraditar Jaime porque o crime que ele cometeu havia prescrito no Brasil – o prazo para prescrição da pretensão punitiva naquele caso, um assassinato, era de 20 anos. Jaime fora encontrado 26 anos depois da morte de Nancy.
Mas o julgamento no STF não foi por maioria, foi um empate. Duas interpretações dividiram os ministros presentes. A lei brasileira veda a extradição se o crime tiver prescrito no Brasil. Mas a legislação também diz que, se a pessoa cometer outro crime posteriormente, o prazo de prescrição do primeiro se interrompe.
Jaime havia cometido crime de falsidade ideológica e falsificação de documentos, já que para viabilizar a fuga, adotou nome e documentos falsos.
Os ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia entenderam que ele poderia ser extraditado, porque a suspensão da prescrição vale, na visão deles, a partir do cometimento do segundo crime.
Já Edson Fachin e Ricardo Lewandowski votaram por não extraditar Jaime, com o argumento de que a suspensão da prescrição só ocorre após condenação e trânsito em julgado do segundo crime.
“Meu cliente, o Jaime, não tinha nem sido denunciado pelo Ministério Público na época que o Supremo estava julgando o caso. A prescrição (da punição para o crime de homicídio) ocorreu no Brasil em 2016 e ele só foi denunciado por crime de falsidade em 2021, portanto seis anos depois da prescrição”, disse à BBC News Brasil o advogado de Jaime, Fernando Gomes de Oliveira.
O ministro Celso de Mello, que poderia desempatar o julgamento, não estava presente no dia. O tribunal, então, decidiu aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decisão que beneficia o réu. Com isso, Jaime Saade pôde ficar no Brasil, sem qualquer punição pela morte de Nancy Mestre.
Para Martín, após 26 anos de busca incessante por Jaime Saade, tudo se resolveu “como se fosse uma partida de futebol”. “Como é que permitem que uma decisão importante como essa, onde se está discutindo justiça ou impunidade, seja decidida por empate, como se fosse um jogo de futebol?”, questiona.
A decisão foi revertida em abril de 2023, quando os ministros brasileiros decidiram que o colombiano seria extraditado.
Fonte: BBC
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